Divórcio. Os miúdos estão bem, obrigado
O Vasco segura o Vicente ao colo, que depois passa para as mãos da Vitória. Ela alterna entre o sofá e a cozinha, de onde vai pedindo conselhos à mãe, Marta Moncacha, para qualquer coisa de chocolate que está a preparar. Aparece o Duarte, a perguntar se ainda tem tempo para estudar mais um pouco antes da fotografia. O mais velho dos quatro irmãos olha para o bebé e diz que ele está "cada vez mais bonito". Depois de também ele o agarrar, pergunta: "Rui, queres ficar com o teu filho?" Rui Pinto é o padrasto dos três mais velhos. E se há cinco anos alguém dissesse a Marta que a sua vida estaria assim e que aos 42 anos teria um bebé de cinco meses, o mínimo que se pode dizer é que ela talvez se risse. Mais ainda se soubesse que Rui, com quem está casada há dois anos e meio, e com quem vive há quatro, teria tatuadas no braço direito as iniciais dos seus filhos, ou que inventariam a expressão "pai de coração". Agora ele também gravou o nome do Vicente, o seu primeiro filho biológico, irmão do Duarte, de 15 anos, do Vasco, de 12, e da Vitória, de nove. Marta, assistente social, divorciou-se do pai deles há cinco anos, com quem estava casada desde os 26. Foi então que criou o blogue Dolce Far Niente, onde conta muitas das peripécias desta família de seis.
"Eles eram pequeninos. O divórcio foi comunicado com muito cuidado, fizemos questão de estar os dois. Acho que fizemos um bom trabalho, dentro do sofrimento de ambos, porque agora olhamos para eles e não me parece que eles estejam propriamente marcados com a situação", conta Marta. Dessa conversa, recorda ter dito: ""Vamos sempre ser vossos pais, e isso nunca vai mudar." Por palavras que eles percebessem tentámos explicar que a vida deles ia mudar, mas não assim tanto. Íamos gostar deles da mesma maneira. Acho que isto foi a pedra-de-toque."
Inicialmente, como o pai trabalhava fora de Lisboa e tinha de sair muito cedo, eles ficaram a viver com a mãe. "Embora estivesse escrito no papel que ficam com o pai aos fins de semana e um dia por semana à noite, isso nunca foi rígido. Ficavam comigo nos primeiros anos, e depois a coisa mudou, a pedido dele. Legalmente nós nunca chegámos a mudar, mas acordámos entre nós que seria assim. Correu tudo muito bem."
Agora que o pai trabalha fora do país, eles estão com a Marta e o Rui, e muitos dias começam com uma chamada de Skype para o outro lado do mundo. Nalguns fins de semana, mesmo sem o pai, os três vão para casa da madrasta, com cujos filhos os miúdos têm "uma ótima relação". Um deles até já foi a casa da Marta.
"A vida deles é feita de muitas famílias", conclui a mãe, acrescentando que também os seus pais são divorciados e têm, há muitos anos, outras pessoas, "tios" com quem os miúdos cresceram. Questionada sobre a necessidade de reconstruir a noção de família perante os filhos depois do divórcio, responde: "Acho que o facto de eu estar feliz no meu atual casamento faz com que eles percebam que pode funcionar. Agora [acontece] menos, mas eles diziam: "Ah, então, se as pessoas não se dão bem, separam-se." Eu tento desmistificar isso e dizer: "Calma, isto não é logo à primeira discussão." Mas acho que os miúdos apreendem as coisas pelo exemplo, eles agora têm duas pessoas que estão felizes e já estão juntas há uns anos."
Um dia, Marta mostrou no blogue um mural que a Vitória fez no Dia Internacional da Família. Lia-se: "Adoro a família principalmente a minha mãe o Rui e o pai é a melhor família de sempre."
Rui diz nunca ter ouvido a frase sempre temida e associada à figura do padrasto: "Tu não és meu pai." E, insistindo no facto de eles terem essa figura, remata: "Sinto-me pai destes miúdos, no sentido em que lhes dou educação e amor."
"Não acho estes casos raros"
A socióloga Susana Atalaia é investigadora do Instituto de Ciências Sociais e especialista em famílias reconstruídas, como a da Marta e do Rui. No seu doutoramento, analisou a figura do padrasto nelas. Atualmente, no pós-doutoramento, estuda a solidariedade intergeracional face a alguém com quem não temos laços biológicos mas sim de afeto. Confrontada com casos como o de Marta Moncacha, em que ao divórcio se seguem famílias reconstruídas, onde as coisas correm bem em ambos os lados, responde: "Não acho que sejam raros, mas tendemos a problematizar só os casos que correm mal, e portanto é deles que temos conhecimento. Até pela própria origem do estudo em torno destas famílias, que tem muito que ver com a psicologia, e portanto com as pessoas que chegavam aos consultórios dos psicólogos. E também pela estigmatização deste tipo de famílias ao longo do tempo."
Agora, diz a socióloga, as coisas estão diferentes: "As pessoas tendem hoje a pensar de uma outra maneira sobre as novas famílias e portanto a tolerá-las mais. Se for a uma escola primária vai ver uma grande maioria de crianças filhas de pais separados, divorciados, e isso já não constitui um fator de estigma. Nos anos 80 era muito frequente. Era aquela criança: um caso, dois casos em cada escola."
Em 2001, o Censos dava conta da existência de 46 786 núcleos familiares reconstituídos - 1,5% do total de núcleos familiares e 2,7% dos núcleos de casais com filhos. Em 2011, o número subiu para 105 763 núcleos: um aumento 126%. "Estas são tendencialmente as famílias em que existem mais crianças pequenas", continua.
Os ex-cônjuges juntos à mesa
"Para ela foi muito natural perceber que as pessoas quando deixam de estar felizes se separam, e que a família dela é esta. É o lado do pai, o lado da mãe, continuamos a ser todos uma família, mesmo fora dos moldes tradicionais", afirma Susana Madeira, sentada à mesma mesa de Vítor Rafael, seu ex-marido e pai da filha, Marta. Perguntamos se incluem o outro nessa noção de família. Susana olha para o ex-marido e diz: "Sim, eu não choro ao teu ombro e tu não choras ao meu, mas..." Volta-se de novo: "O Vítor foi das primeiras pessoas a quem contei que estava grávida do Luís." E outra vez: "Telefonei-te a ti e aos meus amigos mais próximos, com seis semanas de gravidez."
Estiveram casados entre 2003 e 2007. A filha tinha três anos quando se divorciaram, e mesmo que tal tenha acontecido ainda antes da lei do divórcio de 2008, que impõe como regra o exercício conjunto das responsabilidades parentais (expressão que na mesma lei veio substituir "poder parental", pondo deste modo a tónica na criança), foi assim que sempre viveram.
"Lembro-me de que, na nossa ida à advogada, ela disse: "O que é que eu estou aqui a fazer? Vocês já têm tudo combinado." Foi aquele acerto normal, das quartas-feiras e fins-de-semana, e que nós decidimos alterar para o que nos apetecesse ou o que a Marta entendesse", explica Vítor. Susana continua: "Nós temos instituído os 15 dias, mas eu acho que a criança estar com o pai de 15 em 15 dias e uma quarta-feira durante a semana é completamente ridículo. A outra parte não tem de ficar com o que resta, com o pouco tempo que existe. Optámos por fazer assim: o pai está com a Marta sempre que quer, a Marta está com o pai sempre que quer, e os fins de semana são partilhados ou não."
Nos aniversários da filha, juntam-se todos na festa, normalmente em casa do pai. À mesa estão a Susana e o André, o seu marido, com quem teve o Luís, o filho de 15 meses, o Vítor e a Tânia, a companheira deste, e os pais de ambos que, aliás, vivem os quatro no mesmo prédio. No começo, os avôs tiveram medo. Depois perceberam que não tinham razões para tal. "A tua mãe achava que nunca mais ia ver a Martinha, que ela ia ser um pingue-pongue, como acontece a tantas crianças, que não têm tempo para nada, porque estão a mando das conveniências dos pais", lembra Susana.
Quando um dos dois faz anos, convida o ex-cônjuge e a pessoa com quem este partilha a vida; encontram-se nas festas de amigos comuns frequentemente; sempre que é preciso, os dois sentam-se naquele mesmo café de Lisboa em que nos encontramos, a meio (e muito curto) caminho entre a clínica e o banco onde uma e o outro trabalham, para conversar sobre aquilo que for preciso.
Marta conta coisas à madrasta e ao padrasto que não conta aos pais, dizem os dois, e é aos primeiros que ela chama para a conversa de cabeceira antes de dormir. Susana diz que tem "muito orgulho" no que construíram ao longo dos anos que se seguiram ao divórcio. "A vida é esta loucura, quando se trata de amor, de emoções, é tudo irracional, e se a pessoa não puser de lado certas coisas... Tantas vezes me perguntavam: "Mas eu não percebo! Porque é que vocês se continuam a dar?" Era estranho às pessoas como é que nós continuávamos a ter esta relação, porque era uma coisa tão rara. Mas há um esforço enorme, tem de haver. Não foi agradável, não foi feliz, mas o tempo passa e ela é uma criança feliz, não tenho dúvida nenhuma.
Rui Alves Pereira, advogado especialista em direito da família, presidente da associação A Voz da Criança, e escolhido por Dinis Carrilho, filho de Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho, no processo de divórcio dos pais, depois recusado pela juíza do processo, dá razão à posição de Susana: "Conhece algum divórcio em que as pessoas acordam de manhã e dizem: "Passa aí a manteiga e, já agora, quero divorciar-me." E o outro diz: "Passa-me o sumo de laranja, eu também quero divorciar-me"? Isto não existe. Não podemos tratar de forma racional aquilo que é irracional. Eu costumo dizer: "Separe o papel de mãe do papel de mulher. Se ela estiver bem, os seus filhos estão bem." Os pais têm de ser os primeiros a desejar que o outro esteja bem, porque assim as crianças também estão."
Quando se divorciaram, Susana e Vítor só tinham uma referência do género, e remota. "Almoçavam e jantavam juntos. Já havia filhos do segundo casamento, os filhos todos misturavam-se e passavam férias juntos", recorda Vítor. "Lembro-me de falares disso: "Vais ver que um dia ainda vamos ser como os não-sei-quem."" Um dia, a mãe disse à filha: ""É a tua família, em moldes diferentes dos tradicionais, mas não deixa de ser o teu núcleo familiar, as pessoas que mais te querem. Os pais não precisam de estar casados."
Marina e Luís foram o primeiro namorado um do outro, há 40 anos. Ela teria uns 15 anos e ele "16 ou 17". Viviam-se os tempos depois do Processo Revolucionário em Curso (PREC) e o namoro, então de verão, começou em Sesimbra, onde as casas e os toldos eram próximos. Durou três anos até que cada um fosse para seu lado, mas eles mantiveram o contacto e continuaram amigos. Marina teve um filho, o Francisco, de 22 anos, e viveu com o pai dele 20 anos em união de facto. Luís casou-se, e por volta dessa altura os dois perderam o contacto. Nasceram Guilherme, de 18 anos, e Matilde, de 16.
Ambos se separaram e, passado algum tempo, encontraram-se. Depois de voltarem a namorar, um ano depois estavam a viver juntos. "Foi, pela primeira vez, ter contacto com pessoas de quem eu tinha de cuidar, mas que eu não conhecia. Eles para mim eram uns desconhecidos, eu para eles era uma desconhecida, o Luís para o Francisco era um desconhecido. E tivemos de construir essa relação. Como quando temos um filho, é a mesma coisa, quando nos metem aquele bebé nos braços, nós não o conhecemos. Sabemos que saiu de nós, mas: "O que é que eu agora vou fazer com este ser?"" O advogado Rui Alves Pereira di-lo noutros termos: "Mesmo os filhos biológicos têm de ser adotados afetivamente."
"Exige paciência"
O primeiro quadro da família recomposta - intermitente, pois, como nos outros casos anteriores, dividem o tempo entre o pai e a mãe - de Marina e Luís não foi este, que encontramos ao entrar agora em sua casa. "Foi um caos porque não tínhamos sequer casa para albergar tanta gente. Dormiam os três num beliche, em fatias. Aquilo para eles não foi o melhor começo. A Matilde tinha oito anos e o Gui 10, o Francisco tinha 14", diz Marina, e a recordação traz um sorriso.
"Exige paciência", lança, calmamente, o Guilherme. "À medida que o tempo passa, uma pessoa percebe que vai ter de se adaptar a esta nova forma de família, que não é aquela com que eu nasci. E então acabamos por ter paciência, que é o que, na verdade, se tem de ter sempre com a família." Francisco - que estava em Madrid quando os visitámos - passou a ser o "irmão ainda mais velho" de Matilde. "No princípio foi um bocado estranho, porque ter um irmão... Mas depois fomo-nos habituando e fomos criando uma família, todos."
"Eu sou uma chata, como diz a Matilde, e teimosa, mas ela gosta muito de mim, como disse na festa", conta Marina. A festa a que se refere aconteceu há semanas, e serviu para festejar com os amigos o casamento que celebraram em março, na Costa Rica, onde só foi um grupo restrito. Os miúdos dizem que foi "a melhor viagem de sempre". E, antes que se assuma uma conclusão errada, esclarecem: "Casamento incluído." Luís diz que nenhum deles conhecia a Costa Rica: "Era o país da felicidade, segundo os índices de um estudo qualquer. Era o número um."
Todos eles foram sentindo aquela como uma família ao seu ritmo. "Nunca houve problemas, era mais uma questão de haver muito ou menos relacionamento", conta Luís, lembrando que no começo as diferenças de idades entre os filhos eram mais notórias. "No meu caso, sempre os senti como família, porque para mim bastava que fossem filhos do Luís. Eu acho é que eles não perceberam isso logo. Para mim, são tão filhos como o meu, e saio em salvaguarda e em defesa deles aconteça o que acontecer", explica Marina.
A posição da Igreja Católica
Como os primeiros casamentos de Marta, agora casada com Rui, e de Luís, casado com Marina, 35,9% dos casamentos de 2015 foram celebrados segundo o rito católico . Em relação a situações de divórcio e famílias reconstruídas, D. Ilídio Pinto Leandro, bispo de Viseu e vogal da Comissão Episcopal do Laicado e Família, afirma: "A etapa neste momento, pela reflexão e pela orientação do Papa Francisco, é um acolhimento pleno e um acompanhamento próximo dos casais e dos filhos, e naturalmente possibilitar que todos sejam felizes e todos tenham condições de realizar familiarmente o seu projeto de vida. Não pode passar pela cabeça da prática da Igreja considerar essas pessoas afastadas ou fora da Igreja, pois toda a atitude deve ser de levar a que as pessoas experimentem de novo a abertura, a misericórdia, a compreensão da Igreja."