Durante vários anos, o combate à corrupção em Portugal ficou prejudicado pela falta de investimento na Polícia Judiciária (PJ). Esta é a visão do diretor nacional Luís Neves, destacada na abertura da conferência do Dia Internacional da Corrupção, celebrado ontem na sede da PJ. “A Polícia Judiciária durante décadas - sublinho, décadas - sofreu um desinvestimento que quase a sufocou silenciosamente. Durante anos, a investigação criminal à corrupção e criminalidade económico-financeira conexa era apontada por elevada pendência, atrasos, incapacidade técnica, burnout”, disse. Para exemplificar a afirmação, deu números: menos de 1000 inspetores, menos de 50% do quadro da investigação criminal preenchido, idade média a rondar os 50 anos, uma década sem contratação de peritos e sem investimento tecnológico. O diretor acredita que combater a corrupção em Portugal deve ser “uma prioridade do país” - mesma opinião partilhada por Rita Júdice, ministra da Justiça, que também fez uma intervenção na sessão de abertura. “Como sabem, foi a primeira incumbência que me atribuiu o senhor primeiro-ministro, logo no discurso de investidura do Governo. Quanto mais não fosse por isso, este tema está sempre na minha agenda. Foi por isso que chamámos “Agenda Anticorrupção” ao plano de ação que propusemos ao Conselho de Ministros, que o aprovou em junho”, afirmou..Segundo Rita Júdice, aproximadamente 50% das 32 medidas já estão “executadas ou em vias de execução”. A ministra ainda anunciou que “em breve” será levado ao Conselho de Ministros o diploma que restrutura o Mecanismo Nacional Anticorrupção e o diploma que reconfigura o regime da perda alargada de bens, o chamado “confisco”. Apesar dos anúncios, a governante afirmou que não bastam investimentos e dedicação na investigação, acusação e condenações. “A luta contra a corrupção só terá sucesso se cada um de nós tomar parte.”.Vários dos intervenientes do dia, divididos em dois painéis, concordam que a corrupção em Portugal é histórica. Para o deputado Sérgio Sousa Pinto (PS), que participou no painel sobre Repressão da Corrupção e Criminalidade, a corrupção está ligada ao regime monárquico do passado, mas também ao nível de desigualdade no país.“Somos uma sociedade de poucas oportunidades, um sociedade pobre, há uma transmissão de privilégio, basta olhar para as faculdades de Direito: estão lá o avô, o pai, o filho, o cachorro”, contextualizou, arrancando risos do público..Já a socióloga Karina Carvalho, membro do Comité de Acreditação da Transparency International, outro aspeto é pouco levado em consideração: o medo. “Eu diria que o medo, esse sentimento tão humano, é um obstáculo para a prevenção e combate da corrupção no país. O medo de falar e sofrer retaliação, o medo de denunciar”, destacou Karina, dando o exemplo das câmaras municipais pelo país, onde considera que o medo é ainda maior..Rui Cardoso, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), vê o medo de outra forma. “Se não houver medo da repressão da pena, não haverá um sistema eficaz. O Estado não pode abrir mão do sistema repressivo, ou é como um jogo de risco em que se pode perder ou ganhar e voltar a jogar. A pena tem um efeito que não é dispensável, e o medo da punição continua a ser essencial”, disse o procurador..Amadeu Guerra, procurador-Geral da República, frisou que é importante existir um estímulo para a utilização do direito premial. “Os mecanismos de exceção previstos na lei para estes casos devem constituir um estímulo efetivo à colaboração dos arguidos, através de comportamentos reparadores ou através de uma colaboração probatória. Será ainda desejável que a aplicação das soluções legais existentes ao nível do direito premial sejam mais utilizadas, com a finalidade de assegurar o efetivo incentivo à denúncia do crime, a colaboração para a descoberta da verdade, a reparação dos efeitos do crime”, disse o procurador-Geral da República..O PRG defende ainda que é preciso “privar os criminosos dos proveitos que tiveram com o crime”, nomeadamente com uma “efetiva recuperação de ativos do crime”..Colaboração premiada e megaprocessos.A colaboração ou delação premiada foi outro assunto bastante discutido durante todo o dia. Rita Júdice, ao falar para os jornalistas, após a sessão de abertura, admitiu que “é um tema que vai ser analisado”. Rui Cardoso é um dos defensores de mudanças na atual legislação, porque as regras vigentes “não têm levado à denúncia colaborativa por parte do envolvidos” e os casos são “pontuais”. O que poderá mudar a situação, na visão do procurador, é a garantia de que o colaborador “vai beneficiar de um prémio substantivo - só a atenuação da pena não é suficiente, precisamos de outro tipo de prémio”. Cardoso relembrou que a atenuação da pena já pode ocorrer em casos de confissão. .Sobre os chamados megaprocessos, que levam anos e costumam atrair grande atenção mediática e da opinião pública, o professor Rui Pereira defende que, nalguns casos, a separação de processos pode levar até a um fim “o mais rápido possível”. Já o advogado Rogério Alves vai mais longe. “Era preciso uma decisão corajosa de irem para o lixo na íntegra os processos que estão a aproximar-se da prescrição, não se consegue chegar ao fim, admitir que não fomos capazes, já se passaram 15 anos. Mas temos medo de fazer as coisas de uma maneira diferente”..Além dos debates em torno da corrupção, o evento também contou com a assinatura do protocolo entre a PJ e o Mecanismo Nacional Anticorrupção..amanda.lima@dn.pt