Diretor clínico do Santa Maria quer Medicina Interna valorizada para travar crise nos hospitais

É das especialidades "absolutamente essenciais" num hospital, mas foi a que ficou com mais vagas em aberto no processo formativo de 2023, nomeadamente em dois dos maiores hospitais do país. O diretor clínico de Santa Maria diz que é um alerta para o sistema de saúde e defende a criação de um estatuto próprio para o internista nos hospitais.

Quem é o seu internista?". Este é o mote da campanha que a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna lançou agora em dezembro, para assinalar o mês que é dedicado a esta especialidade médica. E não poderia vir mais a calhar, olhando para os resultados do último mapa de vagas para a formação de jovens médicos, já que foi a especialidade que registou maior número de vagas por preencher, entre as seis em que tal aconteceu.

A informação divulgada na semana passada pelo Ministério da Saúde dava conta que das 235 vagas lançadas a nível nacional para Medicina Interna (MI) 67 ficaram por preencher - destas, 42 pertenciam à região de Lisboa e Vale do Tejo, atingindo dois dos maiores hospitais do país, nomeadamente o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), que não conseguiu preencher oito das 13 vagas que tinha, e o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC), que ainda obteve pior resultado, de 14 ficou com oito em aberto.

O DN contactou as duas unidades para perceber que repercussões poderão existir caso esta tendência de escolhas se mantenha, e a preocupação no CHULN é notória, em relação à unidade e à Saúde em todo o país - no CHULC não houve ninguém disponível para responder.

O diretor clínico do Lisboa Norte, Luís Pinheiro, ele próprio médico internista, considera que "este perfil de escolhas é um problema transversal e sistémico, o que adensa a nossa preocupação, porque a Medicina Interna é uma especialidade absolutamente basilar para o funcionamento dos hospitais. É uma especialidade abrangente, que assegura a maioria dos internamentos não programados e o funcionamento dos serviços de urgência. Portanto, qualquer sinal que aponte para uma menor atratividade desta especialidade para os jovens médicos deve ser, acima de tudo, uma preocupação para a resposta em saúde no país".

A Sociedade Portuguesa de Medicina Interna define o médico internista como aquele que "dedica a sua atenção à pessoa como um todo" e que se "distingue por ser o perito na abordagem clínica exaustiva de cada doente, agudo ou crónico". Na verdade, sublinha a SPMI, "o internista é o verdadeiro gestor do doente" e, por isto mesmo, Luís Pinheiro diz estar na hora de se começar a valorizar o papel da especialidade dentro dos hospitais. Até porque, a manter-se esta tendência de escolhas por parte dos internos, daqui a uns anos - como dois, três ou quatro - estará "em risco a capacidade de resposta clínica às necessidades do doente complexo, que é aquele que a Medicina Interna agrega".

"Sem internistas as pessoas terão piores cuidados de saúde"

No que toca às repercussões que pode vir a ter na unidade o facto de oito vagas terem ficado em aberto, Luís Pinheiro explica que "não são imediatas, mas que quando se pensa em termos dos elementos que renovam os corpos clínicos das instituições, naturalmente que esta tendência também colocará em risco a nossa capacidade de resposta". E sublinha: "Se não houver internistas as pessoas vão ter piores cuidados".

Como diz, "infelizmente, o problema não é só da nossa unidade". O sinal que foi dado agora neste mapa de vagas, e que tem vindo a ser dado já nos anos anteriores, mas numa dimensão menor, é o de que "a MI não está a ser vista pelos jovens médicos como uma especialidade interessante e atrativa", diz o médico. "Houve outros hospitais na região Sul, como Vila Franca de Xira e Santarém (ambos com cinco vagas) que não conseguiram preencher nenhuma", destaca. O mesmo aconteceu em outras unidades de Lisboa e Vale do Tejo - como o Hospital Fernando da Fonseca, na Amadora, que das oito vagas ficou com seis por preencher, ou como o Beatriz Ângelo, em Loures, que das seis ficou com 3 em aberto - ou como outras da região Sul, Alentejo e Algarve, como Portalegre ou Faro.

A situação exige respostas "já para amanhã no sentido do que pode vir a acontecer no futuro", afirma Luís Pinheiro, defendendo: "Claramente, é necessário inverter esta tendência. É preciso dar visibilidade à Medicina Interna e ao que faz de bom. Falo de uma discriminação positiva", porque, argumenta, neste momento, "o que está a passar para os jovens médicos é que a MI é uma especialidade com dificuldades e sem particular interesse do ponto de vista privado".

No entanto, afirma, "é o pilar de qualquer hospital. Esta é a sua matriz e é preciso a valorização deste papel, que é o que tem faltado, não só especificamente a nível institucional, mas também na forma como está a MI posicionada no sistema de saúde nacional".

O médico ressalva que com isto não quer dizer que "somos melhores do que os outros, mas que somos diferentes e essenciais". Por isso, quando fala de "discriminação positiva" fala de se repensar "em termos organizacionais o papel que a especialidade deve ter nos hospitais", um papel que "tem de ser mais relevante", embora tal "não passe só pelas instituições, mas também pelas estruturas reguladoras e científicas, como a Ordem dos Médicos e as sociedades científicas".

Uma componente atrativa seria a valorização do trabalho do internista na atividade de urgência, que faz parte da sua matriz original, mas, neste momento, a importância deste papel não é assumido com o necessário caráter diferenciador.

Luís Pinheiro relembra que a MI é uma especialidade "exclusivamente hospitalar e maioritariamente de internamentos, embora com uma componente grande de consulta, e que por toda a sua especificidade tem de merecer uma diferenciação positiva". E, na sua opinião, não seria assim tão difícil uma solução: "Bastava permitir aos hospitais que tal pudesse passar pelo reconhecimento de um estatuto próprio para a especialidade, como, por exemplo, aproximado ao que já é dado ao conceito de cuidados intensivos e cuidados intermédios, em termos de organização interna das unidades, quer em termos de horários quer das suas atividades. Isto já daria maior flexibilidade em relação ao tempo passado no hospital, porque o que acontece agora é que um internista passa uma grande parte do seu tempo no hospital, mas este acaba por não ser contabilizado".

Outra componente que poderá atrair mais internos "é a valorização do trabalho na atividade de urgência, que faz parte da sua matriz original, mas, neste momento, em termos hospitalares praticamente são só quase os internistas a assumir a atividade da urgência geral médica e isso não é assumido com o necessário caráter diferenciador".

O diretor clínico concorda ainda que as escolhas refletidas nos mapas de vagas dos últimos anos, e neste em particular, demonstram claramente uma mudança na "maneira como os jovens médicos veem a prática da medicina ao pretenderem especialidades mais focadas e com resultados mais imediatos, mas isso também tem a ver com a evolução da sociedade e nós teremos todos de nos adaptar", conclui.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG