Desigualdade aumentou e deixou mais 60 mil em risco de pobreza
Não é bonito o retrato a preto e branco que o estudo “Portugal, Balanço Social 2023” faz do país. Mais 60 mil pessoas estavam em risco de pobreza em 2023, face ao ano anterior, diz o relatório da Nova School of Business & Economics, hoje divulgado. E mais 520 mil estariam nessa situação, sem as transferências sociais além das pensões.
Depois de uma recuperação em 2022 dos anos mais negros da pandemia, em que a taxa de risco de pobreza baixou 2 pontos pontos percentuais, no último ano ela voltou a subir para 17% e abrangeu todos os grupos etários, em especial crianças e mulheres. Mesmo entre aqueles que têm emprego, 10% são pobres. Mais lenha para a fogueira: “a desigualdade do rendimento aumentou em 2023, com os 25% mais ricos a deter cerca de 47% da riqueza do país, a comparar com os 25% mais pobres, que detinham apenas 10,8%”. Interrompeu-se uma tendência inversa que se registou entre 2008 e 2020.
Os dados recolhidos na primavera do ano passado também abrangem a população estrangeira a residir em Portugal naquele período. E indiciam que a sua situação, em regra mais desfavorável, influenciou estes resultados. De facto, a análise dos economistas Susana Peralta, Bruno P. Carvalho e Miguel Fonseca permitiu concluir que “o risco de pobreza é mais elevado para os estrangeiros (28,5%), contra os 16,1% da população local”. Os dados também revelam que os desempregados agravaram em 3 pontos percentuais a sua situação de carência face a 2022, sendo que 46,4% deles estão em situação de pobreza. Ainda no campo laboral, constata-se que “o risco de pobreza é quase três vezes maior entre os trabalhadores temporários (20,6%) do que entre os permanentes (7,4%)”.
Tentando contextualizar esta evolução geral pouco animadora, apesar da valorização dos salários mínimos e das pensões nos últimos anos, a economista e autora Susana Peralta aponta, em declarações ao DN, a “relativa deterioração do mercado de trabalho registada na segunda metade de 2023, com um aumento do número de desempregados inscritos nos centros de emprego”. Por outro lado, “o aumento da inflação teve um impacto relevante que se nota, muito em particular, nos indicadores de privação e foi mais severo para os mais pobres”, acrescenta a economista.
Nesta matéria, “verifica-se um aumento na insatisfação económica e nas dificuldades para chegar ao fim do mês da população pobre e da população não pobre, bem como um aumento da prevalência de sobreendividamento entre os não pobres”, indica o relatório. “A percentagem de pessoas pobres com privação ou privação severa aumentou entre 2021 e 2022”. Como explica Susana Peralta, “aumentou a percentagem de pessoas pobres sem capacidade para aquecer a casa, para assegurar uma despesa inesperada, para pagar uma semana de férias, para comer proteínas em dias alternados, para substituir móveis usados, para comprar roupa, para encontros sociais uma vez por mês, ou para adquirir computador”. Mas não se alterou a percentagem de pessoas com atraso no pagamento da hipoteca ou de contas mensais como água ou eletricidade, “o que poderá resultar das medidas de mitigação implementadas pelo governo”, refere o relatório. Na população não pobre, há uma diminuição generalizada da privação, à exceção da capacidade para refeições proteicas em dias alternados, que aumenta em 0,6 pontos percentuais.
O patamar de limiar da pobreza era de 6608 euros anuais e 551 euros mensais em 2022. E não espanta que a pobreza seja “mais comum entre as pessoas desempregadas (41,3%), as famílias monoparentais (29,9%) e os indivíduos com níveis de escolaridade mais baixos (21,9%)”. Também as mulheres têm maior taxa de risco de pobreza que os homens (16,8% vs 15,9%).
Saúde, bem-estar e confiança nas instituições
O cruzamento dos dados do rendimento com os da saúde e bem-estar permitiu também aos investigadores concluir que entre os mais pobres 21,3% consideram que o seu estado de saúde é mau ou muito mau (contra 11,6% nos não pobres), 30% têm um elevado consumo de álcool, ou de tabaco (20%) e 60% fazem pouco exercício. Entre este universo 20% vivem em alojamentos sobrelotados, 40% não consegem aceder a uma consulta de medicina dentária e 16% afirmam que raramente estão felizes. “Um quarto dos idosos pobres vive em casas com o telhado, paredes, janelas e chão permeáveis a água e um quarto vive em alojamentos sem instalações de banho/duche no interior.” Tambem é maior a percentagem de crianças pobres até aos 3 anos sem acesso a 30 horas de creche (82%) face às não não pobres (74%).
Neste contexto não admira que muitos se manifestem pessimistas e um terço acreditem mesmo que a sua situação ainda vai piorar. E também ajudará a explicar uma percentagem enorme de desconfiança deste grupo de pessoas nas instituições: partidos (97%), justiça (84,5%) governo e câmaras municipais (66%), o dobro da manifestada pelos não pobres. “Nestes dados de 2022 e 2023 já se notava um nível de insatisfação que constitui terreno fértil para prosperarem discursos políticos mais extremados”, conclui Susana Peralta, aludindo implicitamente ao cenário político atual marcado pela ascensão a terceira força política de um partido nacionalista de extrema-direita.
A prevalência da pobreza é maior nas Regiões Autónomas, que também têm mais privação material e social e mais desigualdade do que Portugal continental. Na Madeira, a região com piores indicadores, a taxa de pobreza está quase 10 pontos percentuais acima da média nacional, enquanto os Açores está 9 pontos acima.
O relatório da Nova SBE baseia-se no Inquérito às Condições de Vida e Rendimento de 2022 (ICOR 2022), no ICOR 2023 recolhido pelo INE que inquire as famílias sobre as situações de privação, mas também recorre a estatísticas provisórias do INE de 2024 e do IEFP.