"Desde que a mãe Maria partiu foi um grande vazio"
Maior que muitos santuários, duas igrejas, uma catedral, um convento, dois lares de idosos. Terras e oliveiras em redor, onde se perdem imagens de santos e lápides com mensagens de agradecimento por "milagres". Veem-se idosos, uns vestem hábito preto , outros de branco ou roupa comum. Silenciosos, arrastam os corpos, um homem pede um cigarro. A oração do terço junta seis pessoas. Parece uma cidade fantasma o império construído por Maria da Conceição, conhecida pela Santa da Ladeira do Pinheiro, o Santuário de Nossa Senhora das Graças. E já nem os primeiros domingos do mês atraem multidões como nos anos anteriores à sua morte, em 2003. É local de culto da Igreja Ortodoxa Búlgara Alternativa.
"Era gente de todo o lado, vinham camionetas, pessoas de fora, aqui nunca demos muita importância." Recorda Palmira Pereira, de 75 anos, há 54 a viver em Meia Via, em Torres Novas, nas traseiras do santuário. Nunca lá foi. "Mas também não me chateavam, gostava de os ouvir cantar. O meu marido, que é sacristão, foi lá, para ver como era."
Maria da Conceição dizia já em criança que lhe apareciam santos, que aos 29 teve leucemia e curou-se ao ver mover a estátua dos Senhor dos Passos, o que a Igreja Católica Romana nunca reconheceu. Mas arrastou multidões, incluindo do estrangeiro, romanos e ortodoxos, muitos dos quais mostravam o seu reconhecimento com dádivas em dinheiro, estátuas de santos, lápides e outras ofertas. Conta-se que ela levava aventais com notas para depositar no banco. Comprou terrenos e construiu o Santuário da Nossa Senhora das Graças, mesmo à saída de Torres Novas, parque religioso que culminou com a inauguração da catedral, em 2000.
Um fenómeno de crença popular nascido em Portugal nos anos 1960 e que viria a ser reconhecido pela Igreja Ortodoxa portuguesa, na pessoa do bispo João Miguel. A Santa da Ladeira foi mais tarde apadrinhada pela Igreja Ortodoxa Polaca, que a excomungou pouco antes da sua morte. Tornou-se, então, lugar de culto da Igreja Ortodoxa Búlgara Alternativa, uma facção deste ramo dos católicos que surgiu após a queda do regime comunista na Bulgária, em 1989.
"Um grupo de pessoas separou-se da igreja oficial, consideravam que estava muito ligada ao regime comunista. Durante dez anos teve influência, mas nunca foi reconhecida. Neste momento não tem expressão, haverá umas três ou quatro igrejas", afirma o padre Gotze Hristov, o representante da Igreja Ortodoxa Búlgara em Portugal. Esteve na Ladeira do Pinheiro, "por curiosidade", não lhes reconhece representatividade. Nem ao bispo Estêvão Costa, quem assumiu o controlo de toda a atividade do santuário após a morte de Maria da Conceição, a 10 de agosto de 2003. "Sei que foi ordenado bispo pela Igreja Ortodoxa Búlgara Alternativa e que enviou depois uma carta em que se desvinculava da igreja oficial. Nunca falei com ele."
O bispo Estêvão Costa não comenta as afirmações do padre. "Não dou entrevistas. Estou desiludido e escaldado." Acrescenta que o culto está bem vivo : "Continua como dantes, a haver liturgia aos domingos e aos dias de semana. Vem muita gente, sobretudo nos primeiros domingos do mês, ortodoxos e não ortodoxos. Somos uma igreja aberta ao mundo." Há a oração do terço às terças e quintas-feiras à tarde, só que começa no pátio do convento e termina na catedral. A que acompanhamos teve um padre, uma freira, dois membros do "exército branco" - seguidoras da "santa" e que não pertenciam ao clérigo, além de outras duas mulheres.
Maria da Conceição, de 72 anos, tem o mesmo nome da "vidente", uma "graça divina". Faz parte do "exército branco", mas prefere orar em recolhimento. "Não há como negar, desde que a "mãe Maria" [como lhe chamavam] partiu foi um grande vazio, vêm algumas pessoas, nada que se compare ao que era". Divide a sua devoção entre Nossa Senhora de Fátima e a Santa da Ladeira, "é continuação da mensagem de Fátima", diz. Chama ao bispo João "pai João".
Aldeia natal é crítica
Oriunda de uma família de baixos recursos de Riachos, outra aldeia de Torres Novas, a Santa da Ladeira instalou-se no casal Garcia Mogo, Meia Via, propriedade de "um doutor da terra", onde a família trabalhava e hoje se ergue o santuário. Conta Joaquim Lisboa, de 79 anos, sentado ao sol, em Riachos. "Eu morava ao pé dela, ali na Rua do Saragoça, gente pobre. Foram depois para o casal Garcia Mogo, não pagavam renda, trabalhavam lá. O meu pai também lá andou, a tomar conta das ovelhas. Depois a Conceição começou a dizer que tinha visões, era uma aldrabice. O marido dela - o primeiro que morreu num acidente de moto, era o próprio a dizer que era tudo uma falsidade."
Assim não entendiam os milhares que a seguiam. "A mãe Maria era uma grande senhora, por intermédio dela houve muitos milagres, se não fosse ela não estava aqui há muitos anos." Porquê? "Cada vez que estava doente não precisava de me queixar, ela dizia logo que eu não estava bem", acredita Maria Lúcia Silva, de 69 anos, uma das freiras mais antigas e que vive no convento. O irmão também lá vive.
A Maria da Conceição do "exército branco" começou a ir à Ladeira do Pinheiro em 1976. Depois do 25 de Abril, quando o local volta a ganhar dimensão, precisamente com o apoio dos ortodoxos. As instalações do santuário foram encerradas entre 1972 e 1974 e vigiadas durante quatro anos pela GNR. Período de tempo em que a Santa da Ladeira foi detida, alvo de processos judiciais, submetida a exames médicos para provar a sua insanidade mental.
"Maltratada mas tudo venceu", congratula-se a Maria da Conceição residente. "Tinha três filhos quando comecei a vir e quis mudar-me para cá. A "mãe Maria" perguntou a Nossa Senhora que lhe respondeu que eu precisava de ter mais um filho. Nasceu o meu mais novo e vim, tinha ele 21 meses, o mais velho 14 anos. O meu marido também veio", conta. Mais tarde chegou um irmão e até os pais ali residiram. Muitas famílias ali viviam e trabalhavam. A "santa" tinha fama entre os crentes de acolher os pobres, sobretudo órfãos, ela não teve filhos. Houve um lar para crianças e que fechou em 2004, depois de notícias sobre alegados abusos e maus-tratos.
É a Fundação Maria da Conceição e Hugo Horta (o segundo marido) que gere todo o espaço e os lares de idosos. O mais antigo com capacidade para 50 pessoas, que pagam entre 800 e 850 euros (acamados) por mês. Entrámos no mais novo, o Lar da Sagrada Família, boas instalações com 60 camas e cujos utentes pagam mais dez euros. É uma Instituição Particular de Solidariedade Social, mas o Estado não comparticipa.