Depois da morte da minha irmã mais nova, assumi o papel de detetive inscrevendo-me num serviço de encontros online para poder ler o perfil que ela tinha postado. Mas tudo o que fiquei a saber é que ambas tínhamos o mesmo sabor favorito de gelado..Então escrutinei fotografias antigas, analisando o seu rosto em busca de pistas. Mas ela tinha o mesmo aspeto de sempre. Aquilo que ela estava a pensar quando alguma coisa na sua cabeça fez o clique era algo que eu não iria ficar a saber agora..Numa noite fria de janeiro, Stephanie tinha saltado do 27.º andar do edifício de escritórios onde trabalhava. Eu estava grávida de oito meses e meio na altura e a centenas de quilómetros de distância, o que significava que viajar podia ser arriscado, mais ainda com a carga emocional. Assim, não acompanhei os meus pais no percurso que estes fizeram entre o dentista da minha irmã e o gabinete do médico legista, com as radiografias necessárias para a identificar. Não assisti à sua cremação..A morte dela aos 30 anos não parecia real e, portanto, uma parte de mim decidiu que não o era. E outra parte de mim deve ter acreditado que resolver o mistério - quem era ela, realmente? - podia trazê-la de volta. Afastei uma explicação óbvia para o meu comportamento: era mais fácil para mim pesquisar nos factos do passado do que viver as emoções do presente, em que corria o risco de ser esmagada pela dor, pelo arrependimento e pela culpa..Dezassete meses depois, visitei o arranha-céus onde ela morreu. Duas das colegas da minha irmã encontraram-se comigo no exterior das portas giratórias. Abraçámo-nos e apoiámo-nos entre nós num silencioso grupo de três.."Onde é que ela caiu?", perguntei. Uma pergunta horrível, mas eu precisava de saber..Elas apontaram sem hesitação em duas direções diferentes, em seguida olharam, impotentes, uma para a outra. Tinha sido a meio da noite, justificaram. Uma delas apontou para um nicho exterior, dizendo: "O sócio-gerente deixou flores ali.".Sentei-me e toquei a superfície lisa enquanto advogados, executivos e secretárias surpreendidos se desviavam de mim. Era um dia de sol de junho. O chão não me deu qualquer pista..Tirei fotografias com o telemóvel, apontando para baixo, para cima e afastando-me para apanhar uma vista panorâmica. Olhei para dentro do edifício, para o balcão de segurança onde estava sentado um homem de uniforme e perguntei: Quem é que a encontrou? Um guarda? O que poderá ele saber?.Sete meses mais tarde, passado o segundo aniversário da morte dela, procurei novamente o nome da minha irmã online, apesar de já saber o que iria encontrar: o seu obituário no jornal local, um artigo que a mencionava numa revista jurídica, comentários de professores sobre o tempo dela de estudante de pós-graduação em História da Arte..Mas desta vez havia algo de novo, um blogue que eu nunca tinha visto, as palavras brancas sobre um fundo cinzento, páginas e páginas cheias da narrativa traumatizada de uma testemunha involuntária..Naquela noite fatídica, aquela mulher tinha cumprimentado a minha irmã com um aceno quando esta passou o seu cartão de acesso, um pouco depois da uma e meia da manhã. Onze minutos depois, ela vislumbrou o último momento da vida de Steph através das enormes janelas de vidro da entrada do edifício. Ela tinha corrido para o frio invernoso, enxotando os espectadores atordoados..A funcionária da empresa de segurança tinha o cabelo castanho caído abaixo dos ombros e aproximadamente a minha idade. Ela tinha incluído o nome completo da minha irmã na sua entrada mais recente. Daí ele ter surgido na minha busca..De repente, pintei sobre a minha imagem mental de um homem mais velho, reservado, de barba. Em vez disso, estava ali uma mulher, uma semelhante, cuja eloquência e dor me deixaram sem respirar. Estávamos ambas a analisar a mesma tragédia de perspetivas totalmente diferentes. Para minha surpresa, ela catalogava emoções que se amontoavam também dentro de mim: a solidão, a sensação de ser escolhido para um filme de terror sem fim, a desconexão de um mundo onde coisas como esta não acontecem..Mas os posts também ofereciam uma promessa emocionante: informação. A vigilante tinha uma narrativa sobre a minha irmã que até agora me tinha sido inacessível. Aqui estava um meio, finalmente, que me podia ajudar a entender..Encontrei-a no Facebook e escrevi uma mensagem. "Não consigo exprimir o quanto significou para mim ouvir a sua história", escrevi, com o coração aos pulos dentro do peito. "Talvez, se entrarmos em contacto uma com a outra, consigamos encontrar um pouco de paz." Partilhei o meu endereço de e-mail..A resposta dela veio na hora: "Dizer que fiquei aliviada por receber a sua mensagem é dizer pouco. Nos últimos dois anos quis entrar em contacto consigo, com a sua família, mas nunca tive coragem. Tenho quase a certeza de que o facto de ter escrito o nome completo de Stephanie foi uma tentativa, não tão subconsciente assim, de chegar até vós, na esperança de que me encontrassem.".Demos início a uma correspondência frenética. Demasiado tímida para fazer perguntas no início, dei-lhe a informação que ela procurava desesperadamente, histórias que dessem vida à minha irmã e deslocassem o foco para longe do horror que ela tinha testemunhado naquela noite..Depois de vários e-mails, as memórias foram aparecendo às catadupas. Como Steph tocava piano e violoncelo e tinha uma voz operática. Como ela gostava de fazer bolos para eu comer. Como, uma vez, tínhamos ido as duas a um festival de chocolate e, lá chegadas, percebemos que vínhamos com um dia de atraso, o que nos fez rir até mais não poder dentro do carro..Durante dois anos, os meus amigos haviam-me incentivado a partilhar as minhas memórias felizes. Sempre que o tentava, a minha garganta fechava. Com esta vigilante, no entanto, encontrei a minha voz. Era, se não fácil, pelo menos certo, de alguma maneira. Eu tinha duvidado de tudo o que pensava que sabia sobre a minha irmã, mas com a nossa troca de e-mails percebi que tinha uma certeza: Steph não teria querido que a funcionária da empresa de segurança, escalada para o lugar errado na hora errada, vivesse uma vida desgraçada por causa do seu último ato..Vários dias depois, pedi hesitantemente aquilo que tinha imaginado desde que encontrei o blogue - um relato em primeira mão do que tinha acontecido naquela noite. "Sinto-o como parte da história dela, o fim da sua vida, e eu quero entendê-la da melhor forma possível", escrevi, envergonhada do meu desejo. "Lembro-me claramente do dia em que ela nasceu e a fui visitar no hospital (eu tinha 5 anos). Acho que quero saber a história da sua morte também.".Tal como tudo o resto, ela compreendeu. Nós tínhamos o problema oposto: ela conhecia a morte. Eu conhecia a vida. Agora poderíamos fundir as nossas respetivas metades..Escolhendo cuidadosamente as palavras, ela narrou a morte da minha irmã, avisando que a vida real é muito mais horrenda do que os filmes. "Embora eu queira ajudar, não quero ir tão longe para o outro lado que acabe por não ajudar nada", escreveu ela. A sua mensagem chegou enquanto eu estava numa plataforma do metro em Washington, DC..Li a mensagem por partes, com um bloqueio no cérebro. "Isto aconteceu mesmo", pensava. "Ela fez realmente isso. Ela foi-se embora de verdade." O comboio passou e eu fiquei ali..Mesmo enquanto as lágrimas caíam sobre o meu casaco, senti-me estranhamente aliviada. Lidar com o presente, contra o qual eu tinha lutado durante tanto tempo, foi-se transformando em sobrevivência. E, a princípio, isso deveu-se em grande parte à funcionária da empresa de segurança que me tinha tinha trazido até aqui..Esperava que ela conseguisse recuperar um dia, embora duvidasse de que eu alguma vez o fizesse. Ainda assim, tínhamo-nos guiado uma à outra através da escuridão sufocante, fornecendo pontos de luz que somente a outra podia oferecer..E agora descobrimos que podemos dizer tudo. Ela tornou-se uma animadora poderosa, impulsionando-me para a frente e apoiando-me quando, no quarto aniversário da morte da minha irmã, neste ano, pela primeira vez escolhi mimar-me em vez de sofrer. Contei-lhe que tinha comprado um casaco roxo em homenagem à jovem mulher perdida que tanto gostava de fazer compras.."Eu consigo imaginar que há uma enormidade injusta de culpa com que não deverias viver, mas que provavelmente está aí, por isso, gostares de ti própria e homenageá-la é saudável", escreveu ela. "No próximo ano será um par de sapatos e, no seguinte, maquilhagem. Eu não sei nada sobre maquilhagem, por isso ficas por tua própria conta, ah, ah.".Começámos a assinar os nossos e-mails com "bjs" e "muito amor". E era sentido..Oito meses depois de nos termos encontrado uma à outra online, conhecemo-nos pessoalmente no exterior do edifício onde ela ainda trabalhava. Soprava um vento frio. Não tendo ainda entrado ao serviço, ela vestia um top de alças cor-de-rosa e assegurou-me que não estava com frio..Vi tatuagens a espreitarem debaixo do tecido. Caminhámos um quarteirão até um café: chá quente para ela e chocolate quente para mim. Ela falou-me sobre a sua família e sobre como tinha adquirido uma paixão por tricô durante os turnos noturnos..De volta ao gigante cinzento e envidraçado cujos contornos tentei memorizar a cada visita, ela apontou para o local que as colegas da minha irmã se limitavam a adivinhar. Sentei-me, desta vez no lugar certo, beijei a minha mão e assentei-a delicadamente no chão..A ausência estava no ar, mas a presença também. A minha vigilante permanecia nas proximidades. Ela tinha prometido que estaria lá todo o tempo que eu precisasse dela, que iria salvaguardar a nossa ligação invulgar para sempre..Com um abraço de despedida, prometi-lhe o mesmo..Redatora da revista Science, vive em Filadélfia..Exclusivo DN/The New York Times