“Hoje acordei coach”. Repita. Faça um curso de fim de semana. Ganhe uma nova linguagem. Comece pelas redes sociais. Proponha a quem o segue a aceitação “dos sentimentos”, um rumo “em direção ao projeto”. Aconselhe a mudar “o chip”, “a mentalidade”, e aponte o caminho do “engrandecimento pessoal”. Ofereça “novas perspetivas”, “a oportunidade de cada um se entender mais, e melhor”. “Caia sete vezes, levante-se oito” - cite amiúde este provérbio japonês. Recorde que as “oportunidades não batem à porta, sussurram”. Use nomes em inglês e respostas simples para questões complicadas. De vez em quando, recorra a linguagem terapêutica sem fazer a menor ideia do que está a dizer e, por isso, sem imaginar a angústia que pode gerar em quem está fragilizado. Considere-se um mentor de mentalidades e proclame-se especialista em coaching - de relacionamentos, de vida, de carreira. E prometa a conquista de muito dinheiro e imenso sucesso. Garanta que “vamos fazer acontecer”, lembrando que “o crescimento é todo um caminho”, feito naturalmente de sessão em sessão. Pelo conjunto delas, o cliente pagará o seu peso em ouro..Se pretende, pois, mudar de profissão sem esforço, com muito atrevimento e uma boa dose de atração pelo palco, sem conhecimento académico em psicologia ou escrúpulos, repita: “Hoje, acordei burlão.” .“Ausência de estudos, ausência de escrúpulos, atrevimento, a atração pelo palco e a apetência para mudar de profissões sem esforço definem o falso coach. O coaching não é uma fraude, mas muitos dos que se intitulam coaches são uma fraude. E uma praga”. Jaime Ferreira da Silva é psicólogo e um dos primeiros profissionais formados em coaching psicológico em Portugal. Especialista na matéria e presidente do Conselho de Especialidade - Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos, tem analisado o falso coaching em Portugal. “Que não me canso de combater”. .Em 2009, quis ver por dentro o “mercado pirata”. Para isso, matriculou-se num curso rápido, um dos mais conhecidos da Europa. Cem horas de formação, em Paris, por 5 mil euros. Quinhentos euros por hora: “Essa é a única barreira que afasta qualquer pessoa do coaching - o dinheiro”. O grupo fazia lembrar “um albergue espanhol”, diz. Uma dona de casa com quatro filhos, um programador informático, um advogado, um contabilista, uma arquiteta, uma psicóloga polaca e um tripulante de uma companhia aérea. “Naquela altura, o conhecimento desta fraude não era tão profundo. Fui para investigar, saber um pouco mais, e fiquei assustado. Aquela gente propunha-se trabalhar as atitudes, personalidades e comportamento de pessoas, muitas vezes em condições de grande fragilidade, fazendo apenas a renomeação de conceitos”, diz. Ao inconsciente chamavam sombra, aos pensamentos limitantes “sabotadores”. .“Como em todos os movimentos negacionistas, há um pensamento sujeito a um trabalho de receita única. Um processo linear perigoso, que representa a negação da psicologia”. Sendo cada ser humano único, a ausência de um suporte técnico assente no pensamento psicológico impede a capacidade de teorizar sobre a prática. “Essas pessoas não passam de curiosos, de aprendizes de feiticeiro”. .Pisar brasas.Todos os anos chegam à Ordem dos Psicólogos dezenas de queixas de alegada usurpação de título. Entre 2021 e 2023, nove das relacionadas com falsos coachers foram encaminhadas para o Ministério Público. “ Há muita gente atrevida a querer mudar de profissão. Infelizmente, muitos deles escapam ao radar, desde logo porque estão num mercado pirata. Não passam recibo”. Num “negócio” paralelo sem supervisão - “e quando ela existe não passa de ignorantes a supervisionar ignorantes”, diz Jaime Ferreira da Silva -, 25 a 50 por cento das pessoas que recorrem ao life coaching têm necessidades significativas de apoio psicológico. “Frequentemente, ouço histórias dessas. Se bem que a mim só chega a ponta do iceberg. A cada ano recebo pessoas que passaram por essas fraudes”, refere. São indivíduos debilitados que temem a estigmatização e que, por isso, em vez de procurarem psicoterapia, tentam o coaching. “Life coaching é a renomeação fraudulenta de psicoterapia”, diz o psicólogo. Apesar de a melhor informação ser uma tendência, ainda há muitas presas fáceis. .Em 2016, nos EUA, um autonomeado “coach motivacional” instigou os participantes num dos seus encontros a caminhar sobre brasas, embalados pelo mote “Solta o poder que há em ti” (unleash the power within). Resultado: várias dezenas de pessoas no hospital. Mais recentemente, no Algarve, um life coach hipnotizava pessoas com comprimidos. “Há uns dias, soube por uma cliente que uma familiar sua, idosa e a passar por uma depressão, estava cada vez mais descompensada porque um coach a punha a olhar para um ponto negro numa folha de papel”. .O site da Sociedade Australiana de Psicologia conta o caso de Catherine. “Senti-me usada. Foi nojento”. O engano custou-lhe dois mil dólares “e muito constrangimento”. Pouco depois, encontrou o mesmo coach oferecendo conselhos empresariais, prometendo ajudar a ganhar milhares de dólares num dia. O que não é surpreendente, dada a cumplicidade de alguns protagonistas do setor com esquemas em pirâmide. .“Quando recebo pessoas que foram vítimas de más práticas de coaching, as queixas centram-se invariavelmente em dois domínios: incapacidade por parte do coach de compreender a realidade do cliente fora da ‘receita’ aprendida; crença ilusória do coach no processo de mudança como uma trajetória linear sem obstáculos, revelando grande insuficiência de entendimento das variáveis psicossociais presentes em qualquer relação de ajuda”, diz Jaime Ferreira da Silva. .De acordo com o especialista, atendendo a que é significativo o número de pessoas a procurarem soluções para os seus problemas psicológicos através do coaching (em vez da psicoterapia), pela melhor aceitação social do coaching - cerca de 20% da população mundial terá, nalgum momento da vida, problemas de saúde mental -, “são reais e muito sérios os riscos para a saúde pública na prática destes atos psicológicos por indivíduos não habilitados. Numa sociedade mais narcísica, deixou de haver filtro. Cada um pode escrever o que quiser, sem contraditório. Juntando a isto o atrevimento e a capacidade de sedução chegámos a estes burlões, uma versão ‘rebrandizada’ das astrólogas. Como estas, trabalham com pessoas pouco informadas que facilmente comem gato por lebre”. .O crescimento no “coaching de vida”, a partir da perspetiva da experiência vivida de alguém, está em parte alinhado com o crescimento dos média sociais e o nascimento dos influenciadores. Porém, “a abordagem ‘se eu fiz isso, então também pode fazer’ não se compagina com a abordagem individualista necessária para ajudar as pessoas com as suas próprias histórias complexas”, confirma a literatura. .Sinais vermelhos.A Psicoterapia e o Coaching Psicológico são Especialidades Avançadas em Psicologia credenciadas pela Ordem dos Psicólogos Portugueses. “Quem disser que faz coaching sem ser psicólogo é equivalente a dizer que é cardiologista sem ser médico”, avisa Jaime Ferreira da Silva..Sem um background formativo adequado, há um risco potencial do coaching conduzido por neófitos ter consequências graves. Como reconhecer então o perigo? Estar atento aos que prometem transformar uma vida em seis sessões, antes mesmo de saberem quais são as circunstâncias específicas de cada cliente, aos que publicitam serviços baseados apenas na própria recuperação ou experiência, aos que fogem a um contrato claro e formal com o cliente, aos que dão sinais de ausência de um código ético, aos que não apresentam resultados anteriores, aos incapazes de informar sobre os fundamentos adotados e os métodos que utilizam. .O coaching desenvolveu-se de forma assinalável a partir do final dos anos 80 do século passado, na sequência da Black Monday nos EUA e da onda de choque gerada, que levou ao encerramento de milhares de empresas e ao desemprego massivo de executivos. “No rescaldo dessa crise, muitos executivos experientes, entretanto desempregados, converteram-se em treinadores de executivos mais jovens, nascendo assim o coaching como uma alternativa de treino personalizado de competências”, lembra Jaime Ferreira da Silva. .A procura crescente do coaching nos EUA e, progressivamente, no resto do mundo, tornou-o um caso de sucesso, logo atraindo pessoas sem qualificações para a função. .“Genericamente, a prática do coaching abrange duas áreas: o coaching executivo, realizado em organizações e envolvendo o treino de competências profissionais e pessoais de indivíduos e equipas; e o designado “life coaching”, direcionado para ajudar indivíduos na resolução dos seus problemas pessoais, onde encontro a generalidade dos problemas de más práticas”, refere Jaime Ferreira da Silva. .Na formação em coaching, impera hoje um verdadeiro “oeste selvagem”, desde sessões de algumas horas ao fim de semana até formações mais extensas, mas nunca ultrapassando as 60h, o suficiente para habilitar alguém a ser “coach”, independentemente do curriculum académico. “Nestas formações, os (poucos) conteúdos teóricos são, inevitavelmente, oriundos da Psicologia, mas são muitas vezes “renomeados” para esbater a proveniência”. A agenda centra-se no ensino de uma receita única. .“O coaching lida com a saúde, o bem-estar e a performance das pessoas, e por isso exige um sólido background académico em psicologia”. Mas o coach costuma sofrer do efeito Dunning-Kruger, um engano cognitivo a partir do qual pessoas com baixa habilidade numa tarefa sobrestimam essa habilidade: “Quanto menos sabem, mais julgam que sabem”, resume Jaime Ferreira da Silva.