De “Rainha dos Ares” a “Rosa de Tóquio”, a tragédia de Amelia Earhart
A 26 de setembro de 2006, a notícia ecoou. Aos 90 anos morria a americana Iva Ikuko Toguri, filha de imigrantes japoneses que, na década de 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, protagonizara uma história com contornos de mito urbano entre as tropas norte-americanas destacadas no Pacífico Sul. Em 1941, Toguri visitou o Japão num momento de má fortuna. A nação asiática atacou a base naval americana de Pearl Harbor, no Havai. À californiana foi-lhe cerceado o regresso ao seu país natal. Na antena da Rádio Tóquio, Toguri iniciou uma participação no programa The Zero Hour, em emissões de propaganda nipónica orientadas para a desmotivação das tropas Aliadas estacionadas no Extremo Oriente. Os programas emitidos em língua inglesa por um coletivo de mulheres japonesas aludiam a perdas significativas das tropas americanas e à saudade da família distante. Regressada aos Estados Unidos, Toguri enfrentou seis anos de cadeia. Nunca se provou o seu objetivo deliberado de prejudicar as tropas americanas.
A voz sedutora de Toguri, a toada prazenteira que emprestava às suas emissões, criaram o mito entre os militares. Toguri era a “Rosa de Tóquio” (“Tokyo Rose”, no original).
No mesmo período, uma outra norte-americana, alimentava desde o final da década de 1930 as manchetes da imprensa internacional. A 2 de julho de 1937, Amelia Earhart, pioneira da aviação dos Estados Unidos, desaparecia nas águas do Oceano Pacífico. Um mês antes, a mulher que ficara conhecida como a “Rainha dos Ares” iniciara um voo mundial. Propôs-se percorrer 47 000Km em torno da Terra numa rota equatorial. No troço final da jornada, o rádio a bordo do avião Lockheed 10E Electra emudeceu. Earhart e a sua tripulação aproximavam-se da Ilha Howland, um atol desabitado. Nunca alcançaram aquele território.
O mistério em torno do desaparecimento espicaçou teorias várias e lendas. Uma das histórias inverosímeis situava Amelia Earhart a par de Iva Ikuko Toguri entre as mulheres do coletivo “Rosa de Tóquio”. Capturada pelos japoneses, a piloto operaria a partir do País do Sol Nascente nas emissões endereçadas às tropas americanas.
Por anos, nenhum vestígio da tripulação do Lockheed Electra, ou da própria nave, deram notícia de si, não obstante os esforços da Guarda Costeira e Marinha americanas, assim como os de inúmeras investigações paralelas. Earhart ostentava o estatuto de lenda americana.
Na sua curta vida batera inúmeros recordes de voo, concretizara um voo transatlântico a solo em 1932, criara a sua marca de roupa e de malas, palestrava e assumira o cargo de editora-adjunta da revista Cosmopolitan. Nas páginas da revista fundada em 1886, Earhart incentivou as mulheres americanas a abraçarem profissões no campo da aviação. No final da década de 1930, Amelia era uma heroína.
No ano de 1941, Gerald Gal- lagher, oficial britânico, afirmou ter encontrado um esqueleto na minúscula Ilha Gardner, atual Nikumaroro pertencente ao Kiribati. As ossadas repousavam sob a sombra de um coqueiro. Não muito longe, a areia guardava aquilo que se assemelhava a pequenos destroços da fuselagem de um avião. Gallagher convenceu-se ser o esqueleto de Amelia Earhart. Um estudo na época negou a prova, apontando-a como o esqueleto de um homem.
As décadas seguintes não dariam, contudo, descanso às ossadas da Ilha Nikumaroro. Em 1998, uma análise aos ossos por parte de uma equipa de antropólogos forenses, determinou tratar-se dos restos mortais de uma mulher caucasiana. Já em 2007, uma expedição norte-americana deslocou-se à Ilha Nikumaroro em busca de artefactos e ADN identificáveis. A busca terminou com um punhado de objetos com origem incerta.
A história de Amelia Earhart iniciou-se longe dos atóis do Pacífico, em 1897, numa cidade do estado do Kansas. Aos 11 anos, Earhart viu um avião decrépito numa feira estadual, uma “coisa de fios oxidados e madeira, sem qualquer atrativo”, como se lhe referiu. Ainda jovem, Amelia mantinha uma coleção de recortes de jornais sobre mulheres de sucesso em carreiras tidas como masculinas no cinema, na advocacia e na engenharia mecânica.
Mais tarde, Earhart prescindiria do curso universitário em detrimento de treino na Cruz Vermelha. Como enfermeira, em 1917, integrou um destacamento em Toronto, no Canadá, de apoio aos soldados que regressavam dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. Em dezembro de 1920, Amelia entrou pela primeira vez no cockpit de um avião. A viagem de dez minutos sobre Long Beach, na Califórnia, prendeu a jovem aos céus para o resto da sua vida.
Amelia poupou 1000 dólares e iniciou a formação como piloto de aviação em 1921. Teve como professora Anita Snook, uma pioneira na conquista do firmamento. Em maio de 1923, Earhart tornou-se a 16.ª mulher a obter uma licença de voo da Fédération Aéronautique Internationale. A carreira sobre as nuvens da jovem, então com 26 anos, foi meteórica. Cinco anos volvidos, em 1928, Amelia foi recebida pelo presidente dos Estados Unidos, Calvin Coolidge.
Nas semanas anteriores concretizara um voo transatlântico inspirada na travessia oceânica do pioneiro da aviação Charles Lind- bergh. A aviadora limitara-se a manter o registo de voo. O avião fora pilotado por Wilmer Stultz e Louis Gordon.
Ainda em 1928, Amelia lançou-se num voo solitário. Foi a primeira mulher a completar a viagem aérea de ida e volta sobre o continente norte-americano. Na mesma época, envolveu-se com as The Ninety-Nines, organização de mulheres-piloto que prestavam apoio moral e suportavam a causa feminina na aviação.
Em fevereiro de 1931, Amelia contraiu casamento com George Putnam, editor e explorador americano, sem que tal significasse um interregno nas suas viagens globais. Poucos meses após o matrimónio, Earhart lançou-se na sua maior empresa, o voo a solo sobre o Atlântico. A 30 de maio de 1932, a aviadora partiu da Terra Nova rumo a Paris. O Lockheed pilotado por Amelia deter-se-ia em solo da Irlanda do Norte, após 15 horas de viagem sem escalas. No local, a norte da cidade de Derry, existe presentemente um espaço expositivo, o Amelia Earhart Centre.
Janeiro de 1935, Amelia Earhart sagra-se a primeira pessoa a efetuar o voo a solo do Havai para a Califórnia. As águas do Pacífico que consagravam os esforços aéreos da pioneira da aviação seriam o seu carrasco dois anos mais tarde. Após uma primeira tentativa gorada, a 1 de junho de 1937, Amelia e três outros tripulantes partiam para o seu voo mundial. A viagem decorreu sem sobressaltos desde os Estados Unidos, rumo à América do Sul, a África, mais tarde em direção à Índia e ao Sudeste Asiático. A 29 de junho, a equipa comandada por Earhart chegou à Nova Guiné. Daí, a 2 de julho, o “pulo” final, sobre o Pacífico, contaria com uma escala na Ilha Howland. A história subsequente é sabida: após 3000Km de viagem o Lockheed Electra eclipsou-se.
31 de janeiro de 2024, o dia em que soa a notícia vinda das águas do Pacífico. Uma equipa norte-americana da empresa Deep Sea Vision anuncia uma descoberta no fundo marinho a oeste da Ilha Howland. Após 90 dias a vasculhar perto de 13 000Km2 de oceano, um robô subaquático captou uma imagem que aguardou quase 90 anos. A equipa da Deep Sea Vision crê que a imagem devolvida pelo fundo marinho corresponde ao perfil do Lockheed Electra.
Há muito que a teoria do afundamento do avião preside sobre as restantes hipóteses para o desaparecimento da nave. Facto que não obsta à contínua vaga de teorias sobre a tragédia de Earhart. Em 2006, o National Geographic Channel apresentou, no documentário Undiscovered History, a hipótese de uma nova vida de Earhart, na figura de Irene Craigmile Bolam, banqueira nova-iorquina. Devaneio que valeu a Bolam uma indemnização.