"Escolhi Alfama para o início desta visita por ser o bairro mais antigo de Lisboa, que foi habitado pelos vários povos que para cá vieram e todos eles com uma ligação à escravidão. Os fenícios, os visigodos, os mouros. Aliás, próximo da rua de São João da Praça existiu um mercado escravo”, começa por dizer Rui Fernandes, guia turístico. Acompanhamos a visita guiada, de mais de três horas, pelas ruas do centro da capital onde houve presença escrava. Chama-se The Slave Trade in Lisbon - A Historical Walking Tour e foi conduzida em inglês, mas também está disponível em português..Percorremos as ruas estreitas de Alfama e somos conduzidos até ao Chafariz d’El Rei. Rui mostra uma ilustração de um quadro do século XVI. “Há vários negros representados, porque os artistas da época gostavam de os incluir nas suas pinturas, dado que faziam parte da vida da cidade”. Muitos “eram aguadeiros, por exemplo, e vinham aqui abastecer-se”..O caminho leva-nos até ao Campo das Cebolas, onde o guia aponta para a Casa dos Bicos, “das poucas construções quinhentistas ainda existentes” e aproveita para falar da Rota da Índia e de como vinham mercadorias, sobretudo especiarias - “a pimenta preta era a mais valiosa” -, misturadas com escravos, nas naus do século XVI. “Muitos escravos não resistiam à viagem devido à forma como eram transportados, por vezes num espaço mais pequeno que o de um caixão”..Mesmo em frente, aponta para o local onde agora se localiza um parque de estacionamento. “Aqui ficava o antigo mercado das Portas do Mar onde havia as Casas do Mal Cozinhado. Eram os locais onde mulheres negras faziam uma espécie de papa e fritavam peixe para dar de comer aos africanos escravizados, dado que estes estavam impedidos de entrar nas tabernas e nas casas de pasto”. É também neste local que Rui Fernandes fala do Memorial às Pessoas Escravizadas, projeto que venceu o Orçamento Participativo de Lisboa em 2017, e que esteve previsto, inicialmente, ser instalado no Campo das Cebolas. “Se aqui estivesse obrigaria todos os meus colegas a falar sobre o assunto”..O DN contactou a Câmara Municipal de Lisboa para saber quando e onde será colocado o memorial, sete anos após ter sido aprovado. “Ao longo do tempo foram sendo tidos em conta e avaliadas propostas de localização que acabaram por serem consideradas ‘não adequadas’ na sequência de pareceres negativos”, avança o executivo..“Recentemente, numa reunião ocorrida já no final de junho entre a autarquia, representada pela vereadora Joana Oliveira Costa, e os representantes da Djass - Associação de Afrodescendentes, foi feito um ponto de situação e apresentada uma solução concreta por parte da CML mas que não mereceu a concordância da Djass”..Essa localização seria junto à Agência Europeia para a Segurança Marítima, no Cais do Sodré. “Perante essa realidade, ficou acordado a possibilidade de dar início a um novo processo para avaliação de uma outra localização do Memorial na Ribeira das Naus”..Ainda no Campo das Cebolas, Rui aproveita para falar de outra marca da Lisboa dos tempos da escravatura: a Igreja da Conceição Velha. “Esta igreja foi dada à Ordem de Cristo no séc. XIII para substituir a Igreja da Conceição dos Freires e estava ligada ao batismo dos escravizados que chegavam a Lisboa”. Ali, antes do terramoto de 1755, “existia também o túmulo de Dona Simoa Godinho, que era uma senhora negra do séc. XVI casada com um fidalgo português, dona de escravos e de fazendas em S. Tomé”..O tour avança em direção a um dos pontos nevrálgicos da história da escratura em Portugal, que se intensificou com a expansão marítima portuguesa. “Era aqui, junto ao Paço Real, que desembarcavam os escravos e onde estava montado todo o aparato fiscal relacionado com o comércio de escravos mas também com o comércio de especiarias, ouro, todas as mercadorias que chegavam a Portugal”..Os escravos eram avaliados. A dentição, a musculatura, o tom da pele. Mulheres mais claras eram mais caras. Já os homens mais negros eram mais valorizados, por isso ser associado a um maior vigor físico. “Havia um responsável, designado por almoxarife, que tinha a responsabilidade de fazer a seleção dos cativos: decidir a sua distribuição, quem iria ficar na corte real, quem iria ser dado como oferta a outros nobres e quem iria ser vendido em mercados, que eram essencialmente o mercado do Pelourinho Velho - onde se situa a atual rua do Comércio - e o mercado de São João da Praça, em Alfama”. .Rui Fernandes nota que, naquela época, havia “corretores de escravos, como hoje em dia temos corretores de imóveis”. De facto, segundo o Gabinete de Estudos Olisiponenses, “em 1552, existiam em Lisboa doze corretores e sessenta mercadores de escravos, e em 1672 três corretores ainda exerciam o ofício, desconhecendo-se o número de mercadores”. Ainda na Praça do Comércio, Rui Fernandes faz referência ao rei D. José e à sua estátua equestre, e também ao Marquês de Pombal “que fez as primeiras reformas relativas à escravatura”..Continuamos o caminho pela Rua Augusta e é feita nova paragem no Rossio. Ali podemos observar a estátua de D. Pedro IV, I do Brasil, avô paterno da princesa Isabel, que acabou por assinar a Lei Áurea, em 1888, que extinguiu a escravidão no Brasil..O percurso termina no Largo de São Domingos, junto à igreja com o mesmo nome. “Aqui foi o local onde se estabeleceu a confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos”. Aqui, os escravos “podiam seguir o culto católico, dado que estavam impedidos de frequentar as mesmas igrejas que os senhores”, conclui.