Orestes assassinou a sua mãe, Clitemnestra, e caminha sob a ira das três erínias, personificações da vingança. No rosto de Orestes há pavor, no peito da sua mãe um punhal faz brotar um fio de sangue. Nos cabelos de Alecto, Tisífone e Megera volteiam víboras, quais tentáculos predadores. Em 1862, o pintor francês William-Adolphe Bouguereau, encenou a óleo sobre tela O Remorso de Orestes, quadro evocativo da mitologia grega. As três erínias, deusas do castigo, do rancor e do inominável, fruto da relação conjugal entre Hades e Perséfone, castigam o filho do rei Agamemnon. Alecto, eternamente encolerizada, revela-se castigadora de delitos morais como a ira, a cólera e a soberba. Alecto espalha pestes e maldições. No ano anterior à criação artística de Bouguereau, Alecton singrava nas ondas oceânicas. À corveta a vapor da marinha francesa era-lhe entregue o carácter simbólico da justiça da personagem mítica que lhe servira de batismo. Em novembro de 1861, nos mares entre os arquipélagos da Madeira e das Canárias, Alecton teve um encontro breve com uma criatura mítica, um “monstro”, o teuthus de Aristóteles no século IV a.C., uma criatura mais tarde efabulada em manuais de história e de ciências naturais, habitante das regiões abissais marinhas, matéria-prima para obras ficcionadas..A criatura abissal foi descrita pelo zoólogo norte-americano Clyde Roper: “Os olhos hipnotizantes com uma íris escura proeminente, são os maiores do reino animal. No centro da coroa de braços está a boca formidável da criatura, com um bico forte como o de um papagaio e uma língua áspera e dentada chamada rádula (...) Os braços poderosos, grossos como a coxa de um homem, ostentam fileiras de ventosas circulares com dentes afiados (...) O mesmo acontece com as pontas em forma de taco dos tentáculos muito mais finos, mas musculosos, que podem prender a presa como as mandíbulas de um enorme alicate”. As palavras anteriores vertem de um artigo publicado na revista Popular Science, assinado por Arthur Fisher. A peça intitulada “He Seeks the Giant Squid” (“Ele Procura a Lula-Gigante”) recorda o trabalho de Clyde Roper do Museu de História Natural em Washington D.C., uma autoridade no estudo da lula-gigante (Architeuthis dux) e um dos investigadores responsáveis por subtrair a esta espécie marinha a sua condição de monstro mítico..A lula-gigante é um cefalópode, o segundo maior invertebrado da Terra, apenas superado pela lula-colossal (Mesonychoteuthis hamiltoni), esta última habitante do oceano Antártico. A lula-gigante distribui-se por todos os oceanos, movendo os seus corpos de 13 metros de comprimento, no caso das fêmeas, a 1000 metros de profundidade. O gigantismo da Architeuthis dux fá-la ter apenas como espécie predadora, o cachalote..Em 1861, o encontro do navio Alecton com o cefalópode gigante fincara um outro marco na afirmação da ciência. Das águas do Atlântico, o Alecton não levou para solo francês apenas o relato da lula-gigante nas palavras do capitão Frédéric Bouyer, transportou também uma prova física do encontro. Catorze quilos da carne da lula-gigante foram entregues a um museu para observação. Um naco de um animal que atinge o peso de 300 Kg. Nas águas ao largo de Tenerife, a lula-gigante de cor vermelho-tijolo e com dez metros de comprimento, debateu-se um par de horas face aos disparos de mosquete e ao lançamento de arpões desde o Alecton. O “grande corpo parcialmente submerso à superfície”, assim descrito por um vigilante da corveta francesa, citado num artigo de 1941 do Natural History Magazine, soçobraria à ira das investidas francesas. Ainda em 1865, o ilustrador Pierre Lackerbauer entregou às páginas do livro do naturalista francês Alfred Moquin-Tandon, Le Monde de la Mer (O Mundo do Mar), uma representação do encontro do navio Alecton com o gigante marinho. A imagem efervesceria nos espíritos de romancistas da época..No século XIX, até ao encontro do Alecton com a Architeuthis dux, a comunidade científica mantinha-se cética em relação à existência de tal criatura marinha. O registo mais realista da possibilidade de uma hipotética lula-gigante datava do século XVII, quando um animal em decomposição fora encontrado na costa da Islândia. Na primeira metade do século XIX, partes do corpo de lulas-gigantes deram à costa na Dinamarca. Em 1802, o naturalista francês Denys-Monfort, publicou uma narrativa que sumariava os relatos de tais animais. Em Histoire Naturelle des Molusques Terrestres et Fluviatiles (História Natural dos Moluscos Terrestres e Fluviais), Monfort faz a analogia entre a lula-gigante e o Kraken, soberbo ente marinho da mitologia nórdica. Num exercício de imaginação, afirmou que dez navios britânicos desaparecidos numa noite de 1782 teriam sido atacados e afundados por um cefalópode gigante..Em 1850, o zoólogo dinamarquês Japetus Steenstrup analisou os relatos de décadas anteriores, assim como as porções de corpos de animais marinhos em decomposição que davam à costa do seu país natal. Japetus concluiu tratar-se de lulas-gigantes. “Confesso que, até ver e medir este membro enorme, duvidei da precisão de algumas observações iniciais (...) A existência de cefalópodes gigantes não é mais uma questão em aberto (...) Mais do que nunca aprecio o valor do ditado: ‘A verdade é mais estranha do que a ficção’”, escreveu o naturalista britânico Henry Lee no seu livro de 1874, The Octopus (O Polvo). O cientista observara no ano anterior um tentáculo de lula-gigante exposto no Museu Britânico, em Londres. Nos Estados Unidos, a lula-gigante surgiu documentada a partir de 1870 em artigos do zoólogo de Yale, Addison Emery Verrill..The Octopus de Henry Lee enveredava o leitor na escrita ficcional em torno de moluscos marinhos. As letras da segunda metade do século XIX maravilharam-se com as descrições de criaturas abissais. Em 1870, o francês Júlio Verne entregava a sua escrita ao livro 20 Mil Léguas Submarinas (no original, Vingt Mille Lieues Sous les Mers), mergulhando o submarino Nautilus, engenho movido a eletricidade, nas profundezas oceânicas. O capitão Nemo e a sua tripulação protagonizaram episódios junto dos navios naufragados na Batalha de Vigo no século XVIII, na barreira de gelo da Antártida, junto ao cabo telegráfico transatlântico e na mitificada Atlântida. Um périplo sob a superfície oceânica que não dispensou uma batalha com um cardume de lulas-gigantes. Verne inspirara-se nas ilustrações e descrições decorrentes do encontro do Alecton e olhava para a obra anterior de um seu conterrâneo. Em 1866, o escritor gaulês Victor Hugo entretinha os seus leitores com a obra Os Trabalhadores do Mar (Les Travailleurs de la Mer), livro dedicado à ilha de Guernsey onde o autor d’ Os Miseráveis entregara parte dos 15 anos em que viveu em exilio. Em Os Trabalhadores do Mar, o protagonista combate um polvo gigante, um símbolo da Revolução Industrial. No referido livro, Victor Hugo adicionou uma palavra à língua francesa, pieuvre (polvo)..Sobre a ainda misteriosa lula-gigante escreveu o já referido Arthur Fisher nas páginas da revista Popular Science: “provavelmente sabemos mais sobre os dinossauros do que sobre este gigante dos oceanos”. À ciência coube esperar até 2004 para obter a primeira fotografia de uma lula-gigante no seu habitat natural. Em setembro daquele ano, o japonês Tsunemi Kubodera, do Museu Nacional Científico de Tóquio, captou uma imagem de um exemplar vivo de lula-gigante ao largo das ilhas Ogasawara, no Pacífico Norte.