A chuva numa floresta de carvalhos (representada numa pintura de Ivan Ivanovich Shishkin, 1832-1898), ilustra o fenómeno petricor.
A chuva numa floresta de carvalhos (representada numa pintura de Ivan Ivanovich Shishkin, 1832-1898), ilustra o fenómeno petricor.

Da terra molhada emana o "sangue dos deuses"

Em 1891, um trabalho científico assinado pelo britânico Thomas Phipson detinha-se sobre um fenómeno tão antigo quanto a nossa relação com o ambiente. Todos já experimentámos o odor adocicado e vegetal que emana do solo após uma breve chuvada.
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Três vezes ao dia, Talos de Creta encetava a ronda à ilha fincada no Mar Mediterrâneo. O gigante talhado em bronze, dotado de asas, protegia o território das investidas marítimas das naus. Talos arremessava rochas aos céus para as ver sucumbir nas águas. A milenar civilização grega blindou com mitos o mundo que a rodeava. Talos, nascido a pedido de Zeus, apresentava um ponto fraco no seu gigantismo alado. Uma única e vital artéria percorria-lhe o corpo, culminando no tornozelo, ali selada por uma cavilha de bronze. Estancava esta o fluido que animava de vida o ente descrito no poema épico do século III a.C., As Argonáuticas.

O descendente de um povo de bronze acabaria por sucumbir às visões de imortalidade oferecidas pela terrível e fascinante Medeia. Do rasgo na artéria vital do gigante verteu sem barragem o fluido etéreo, o Icos. Uma exsanguinação que conduziu à morte de Talos.

O Icos, divino, embora venenoso para os mortais, retinha as qualidades da comida e bebida dos imortais. Ambrósia e néctar ofereciam-lhes os atributos superiores.

No século XX, o Icos grego ganharia um novo estatuto. Na década de 1960, uma dupla de cientistas australianos, Isabel Bear e Dick Thomas, contribuíram para a compreensão de um fenómeno químico e olfativo, o cheiro das primeiras chuvas no solo seco. Bear e Thomas não deixaram órfã de nome a sua descoberta. O odor argiloso que anuncia o fim de um período de tempo seco guarda o nome de petricor. Petra, em alusão a pedra, Icor, numa ligação ao sangue divino dos deuses gregos, ao seu fluido etéreo.

Nas últimas décadas, a influência do petricor  no comportamento humano e animal tem sido detalhada com os contributos da antropologia e da bioquímica. O apelo telúrico a que respondemos quando as primeiras gotas de água tocam no solo arenoso e libertam um delicado odor adocicado e vegetal é tão antigo quanto a experiência humana. Também o é descrito há muito.

A 17 de abril de 1891, um talentoso cientista e violinista britânico, Thomas Lamb Phipson, levou para os seus escritos uma breve nota sobre o fenómeno. Phipson publicou na revista The Chemical News o artigo intitulado Cause of the Odour Emitted by the Soil of a Garden After a Summer Shower (“A Causa do Odor Emitido Pelo Solo de um Jardim Após uma Chuva de Verão”).

No trabalho, o autor sublinhava o seu interesse pelo tema nos 25 anos anteriores e teorizava que o odor se “devia à presença de substâncias orgânicas intimamente relacionadas com óleos essenciais das plantas...” e que essas substâncias consistiam na “...fragrância emitida por milhares de flores, absorvidas pelos poros do solo e só libertadas quando deslocadas pelas chuvas”. Um mês após a publicação do artigo, as notas explicativas de Phipson davam um pulo atlântico e viajavam para as páginas da revista The Scientific American.
Na mesma época, o químico gaulês Pierre Eugéne Marcellin procurava a explicação científica para o “sangue dos deuses” que emanava da terra.

Em abril de 1891, perante a Academia Francesa de Ciências, o investigador apresentou o trabalho impresso nas páginas da publicação Comptes Rendus. Intitulavam a peça as seguintes palavras Sur l’Odeur Propre de la Terre (“Sobre o Odor Puro da Terra”).

A explicação exata sobre o fenómeno teria de aguardar mais de 70 anos, após o estudo empreendido sob a égide da Organização de Ciência e Pesquisa Industrial da Commonwealth, conduzido por Isabel Bear e Dick Thomas e publicado na revista Nature, sob a designação Nature of Argillaceous Odour (“Natureza do Odor Argiloso”).

Em síntese, o petricor forma-se a partir de um conjunto de compostos químicos presentes no solo. Na terra, uma espécie de actinobactéria (Streptomyces) exerce a sua função de reciclagem e mineralização da matéria orgânica, transformando-a em nutrientes para as plantas. Uma atividade de decomposição que propícia a formação da geosmina (do grego “perfume da terra”), um composto orgânico cujo odor espicaça particularmente o olfato humano.

Em certos períodos, a presença de humidade no ar e também no solo acelera a produção de geosmina.  Quando dos céus se soltam as gotas de chuva e o seu inevitável caminho até ao solo há de ocorrer a magia do petricor. As gotas de chuva, entre 1 e 3mm de diâmetro, embatem no solo com uma violência só percetível através do olho de câmaras altamente sensíveis. Um impacto no solo que provoca a formação de bolhas de ar, mensageiras das qualidades odoríferas que se encontram na terra.

Ao rebentarem acima do solo, estas bolhas formam gotículas de aerossóis, com micrómetros de diâmetro. Bailantes, as ínfimas gotículas oferecem à atmosfera o odor a petricor. Um processo filmado em 2015 por cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), nos Estados Unidos, com recurso a uma câmara com capacidade de gravar a alta velocidade. O vídeo disponível online  sob a pesquisa Rainfall can Release Aerosols revela ao olho humano um processo a uma escala microscópica sobre um solo poroso.

A relação entre o petricor e os humanos tem merecido a atenção da microbiologia. Keith Chater, microbióloga britânica, a trabalhar no John Innes Centre, estabeleceu a relação entre o comportamento dos camelos em ambiente desértico e a procura de fontes de água. De acordo com a investigadora, os animais, capazes de detetar água num horizonte longínquo, a mais de 80Km, farejam o petricor a longas distâncias. Em troca, as bactérias produtoras de geosmina viajam à boleia dos camelos, assim se fazendo veículos para o transporte dos esporos.

Do mundo animal para o humano, a antropóloga Diana Young, da Universidade de Queensland, estudou as tradições aborígenes no deserto ocidental australiano. As chuvas sazonais mesclam os odores adocicados das resinas, das folhas do eucalipto, poeiras e fezes de animais. Um odor que as populações locais associam ao verde e à vida no processo a que a antropóloga chama “sinestesia cultural”. Entre as comunidades aborígenes australianas é comum a produção de um perfume natural à base de gorduras animais e vegetais. Um perfume friccionado no corpo numa ligação à terra e à paisagem.

Numa outra latitude, na Índia, o odor a solo molhado há muito que voluteia dentro de recipientes. A perfumaria indiana sintetizou o odor do óleo de sândalo. No Estado de Uttar Pradesh, o matti ka attar emana como “perfume da terra”.

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