João Lopes tem hoje 54 anos e tornou-se profissional no ciclismo depois do transplante.
João Lopes tem hoje 54 anos e tornou-se profissional no ciclismo depois do transplante.Reinaldo Rodrigues Global Imagens

Da doença às medalhas em Jogos Europeus e Mundiais. Afinal, “há vida depois do transplante”

Este ano Portugal recebe os Jogos Europeus para Transplantados, um dia depois de se assinalar o Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação. São cerca de 500 atletas de 25 países. E a uni-los está o facto de já terem passado por um transplante ou por já terem sido dadores. João e André são da equipa nacional.
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Vinte anos separam na idade João Lopes e André Jorge, mas a distância em termos de espaço, essa, é mais de 1104 quilómetros, de avião uma hora e 45 minutos, precisamente o tempo de Lisboa à Madeira. Mas na doença, nada disto interessa, João e André, hoje com 54 e 34 anos, respetivamente, foram próximos na doença, no que sentiram e até agora nos desafios.

Ambas as histórias começaram com sintomas inesperados e com a rápida falência de órgãos, que os atirou para o internamento, um no IPO de Lisboa, outro nos hospitais do Funchal e depois no de Santa Cruz, em Lisboa. A notícia de que a sobrevivência chegaria pelo transplante, mas que era preciso encontrar um dador compatível, surpreendeu os dois, mas um e outro tiveram a sorte de dadores compatíveis.

No caso de João foi um desconhecido, no de André a própria mãe. Um e outro integram a equipa nacional dos Jogos Europeus para Transplantados - European Transplant Sports Championships, que hoje começam em Portugal, entre provas em Lisboa, no Estoril e em Belas, até dia 28 de julho. E, por isto mesmo, dizem só ter de agradecer a quem se disponibilizou à doação.


Para João, cada vez que participa nos jogos o primeiro pensamento vai para “o [seu] doador”: “Tenho a agradecer-lhe o estar vivo”, disse ao DN esta semana quando se preparava para os jogos, os terceiros em que vai participar e dos quais, nos dois anteriores, um a nível mundial, trouxe várias medalhas.


Para André estes já são os quintos, sendo que em todos arrecadou medalhas. Este ano não sabe o que irá acontecer, mas avisa: “Tenho estado com gripe e com dificuldades na preparação.” Mas, competição à parte, que também existe, salienta que estes jogos são sobretudo para celebrar a vida. “Cada ano que nos reencontramos é mais um ano que estamos vivos, o que é uma alegria muito grande ”, e o desporto tem ajudado como terapia.


João e André jogam este ano em casa. Vão ser oito dias, de 21 a 28, de competição entre cerca de 500 atletas de 25 países em 15 tipos diferentes de desportos: Natação, Atletismo, Ténis, Ténis de mesa, Badminton, Petanca, Bowling, Dardos, Basquetebol 3x3, Padel, Ciclismo, Voleibol, Golfe, Triatlo e Biatlo virtual. Mas serão também certamente oito dias de testemunhos de superação e de convívio, porque todos os que participam já passaram pela experiência da transplantação de um órgão - do coração, fígado, pâncreas, pulmão, rim ou medula óssea - ou pela doação de órgãos em vida.


A equipa nacional integra mais de 30 atletas, dos 18 aos 70 anos, e da organização fazem parte o Grupo Desportivo de Transplantados de Portugal (GDTP) e uma associação de promoção do desporto que tem trabalhado também pela sensibilização para a doação, mas o evento conta também com as Federações Europeias: European Transplant and Dialysis Sports Federation e European Heart and Lung Transplant Federation.

Para o engenheiro João Lopes, residente em Carcavelos, serão uns jogos diferentes, porque além da participação em quatro provas, de ciclismo e natação, também está na organização, como vice-presidente do GDTP.

Mas só o “trazer os jogos para Portugal foi uma vitória”. “Soubemos no ano passado depois dos Mundiais em Perth, na Austrália, e eu já entrei na organização a meio do comboio. O trabalho é muito e somos todos voluntários, mas acreditamos que vão ser dias muito bons, de testemunhos de superação e de grande convívio.”


A história de João nestes jogos começa quando recuperava em casa, do transplante. “Estava a ver a Volta à França de 2018 na televisão. Sempre fui um aficionado do ciclismo, antes do transplante, que foi em 2017, já praticava de forma completamente amadora”, embora reconheça que era a modalidade que distraía os seus pensamentos quando estava no hospital. “Dava comigo a pensar: quando sair vou comprar umas rodas de carbono para a bicicleta”, diz a rir. Mas foi nessa emissão que viu um “anúncio à marca de um imunossupressor que tomava. Voltei atrás e reparei que também se falava de uns jogos mundiais para transplantados e pensei logo: ‘Tenho de descobrir isto’.”


Na busca pela net, encontrou o GDTP e informação, e embora ainda a recuperar decidiu que ia começar a preparar-se. “Em 2019, voltei a andar de bicicleta. Estava para ir aos Jogos Europeus de 2020, em Dublin, na Irlanda, que não aconteceram por causa da covid-19. Em 2021, também não se fizeram os Jogos Mundiais em Houston, nos EUA, e só consegui participar nos Jogos Europeus de 2022, em Oxford”, conta.


Hoje assume que “não tinha noção do que eram estes jogos, mas fui encontrar pessoas muito competentes nas várias modalidades e com um nível de competição elevado”.


Ele próprio, na primeira participação, conseguiu uma Medalha de Prata na prova de estrada de ciclismo e dos Jogos Mundiais, na Austrália, em 2023, trouxe nova medalha, desta vez de Bronze e em natação. O que irá alcançar este ano, não sabe. Sabe que o lema dos jogos “é o fazer-nos sentir que sobrevivemos e que ainda nos conseguimos superar. E isso é fantástico”, porque quem passa pela experiência de um transplante “não esquece”.


Em poucas dias, uma hepatite matou-lhe a medula


João tem na memória o dia 29 de novembro de 2016, aquele em que decidiu ir ao médico de família por estar a ficar amarelo e que o referenciou logo para a Urgência do Hospital de Cascais. Aqui foi-lhe diagnosticada uma Hepatite autoimune, da qual nunca soube a origem. No mesmo dia, disseram-lhe que ia ter alta e que seria tratado em ambulatório, mas as suas plaquetas desceram abruptamente para 60 mil, quando o mínimo são 150 mil, e ficou internado, nos Cuidados Intermédios.


“Em poucas horas passei de casa para os cuidados intermédios de um hospital e depois para uma enfermaria”, recorda. Foram 23 dias internado, sempre com níveis do organismos a descerem, até que vai para o IPO de Lisboa, onde lhe fazem transfusões de sangue e uma biópsia à medula, para verem como estava a funcionar.Dois dias depois “dizem-me que tinha uma aplasia medular severa. A minha hepatite tinha matado a minha medula, que tinha deixado de produzir células”, recorda.


Inicia um tratamento imunossupressor, que deveria ser de três meses, para ver se a medula funcionava, mas, “a meio, a hematologista diz-me que não vê melhoras e que me ia indicar para um transplante”. Foi muita informação para processar, a sorte é que lhe encontraram um dador rapidamente.


João deveria ser transplantado em setembro, mas a operação foi adiada. “A minha medula deu sinais de funcionar em agosto e os médicos acharam que deveriam aguardar, mas foi falso alarme”. Um ano depois, a 29 de novembro de 2017 João volta a ser internado para o transplante. Tudo tem corrido bem, sabe que o futuro é incerto, mas acreditou sempre que melhores dias virão e diz a quem possa estar a passar pelo mesmo que o faça também.


De nadador à hemodiálise e daqui ao transplante de rim

André Jorge tinha 26 anos quando apareceu a doença e foi transplantado. Hoje, 34 anos ganha medalhas nos jogos europeus e mundiais

André vive no Funchal, é técnico superior de Desporto na Direção Regional da Madeira, e antes disto era treinador de natação. A sua relação com a doença nem sempre foi fácil e assume que, aos 26 anos, quando lhe foi dito que tinha uma Nefropatia IgA, se foi abaixo. “A minha pergunta era: ‘Porquê eu? Se fui sempre regrado, se procurei sempre uma vida saudável?’.”


Aos 13 anos, começou a fazer natação e não mais parou, até 2016 quando surgem os primeiros sintomas severos. “Fadiga extrema, alteração do sono, não conseguia dormir, ia constantemente à casa de banho e decidi que tinha de ver o que era. Fui ao médico, que me mandou fazer exames e que, quando recebeu os resultados, me chamou com urgência. Dois dias depois estava a fazer hemodiálise”.


Olhando para trás, recorda que “na adolescência tinha tido alguns sintomas que foram desvalorizados. Tinha a pressão arterial elevada, mas associavam ao meu nervosismo, houve uma altura em que a minha creatinina estava mais alta do que devia, mas também passou despercebido, e quando fui ao médico já estava em situação crítica”.


Fez hemodiálise um ano, mas os médicos consideraram que o transplante era a melhor solução. A mãe ofereceu-se para lhe  doar o rim e a 24 de janeiro de 2017 fez o transplante no Hospital Santa Cruz, em Lisboa. Correu bem e continua assim, agora tem de tomar cuidados redobrados. Mas acima de tudo tem de manter “uma disciplina mental que [lhe] permita fazer tudo para continuar vivo e não [se] prejudicar”.


Por isso, assim que pôde voltou ao desporto, começando pela “caminhada, depois pela corrida ligeira e mais tarde pelo ginásio. Só no final disto voltei à natação, quando senti que o meu corpo estava preparado para treinos na água com mais intensidade, mas sem chegar ao nível do que fazia”.


Dos Jogos Europeus anteriores trouxe quatro Medalhas de Ouro e cinco de Prata, em bruços e livres, dos Mundiais quatro de Ouro e quatro de Prata. O desporto é essencial na sua vida. “É uma maneira de me manter ativo e saudável, de fazer algo que goste e não pensar na parte mais complicada da doença e do transplante”. E enquanto conseguir treinar “irei tentar participar sempre”.

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