Belém? "O futuro a Deus pertence", admite Gouveia e Melo

O ex-coordenador da <em>task force</em> mostrou que continua a pensar no combate à pandemia, no trabalho que liderou e no que deve ainda ser feito para vencer o que declarou ser uma guerra. Mas também falou do futuro, de como avalia uma candidatura a Belém, e da visão e coragem que devem ter os líderes.
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Cuidado! Não há vacina que compense a falta de cuidado. Se tivermos cuidado vamos ajudar as vacinas e ter um novo ano muito mais feliz e com menos problemas", sintetizou o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo, ex-coordenador da task force da vacinação em reposta à diretora do DN, Rosália Amorim, que lhe tinha pedido "uma palavra" para deixar aos portugueses para o ano novo de 2022. Eleito a personalidade nacional do ano pela redação do DN, Gouveia e Melo esteve 50 minutos à conversa também com algumas personalidades da audiência convidadas para a tertúlia a celebrar os 157 deste jornal. O combate à pandemia continua a estar no pensamento do vice-almirante que, apesar de se escusar a comentar o trabalho desenvolvido pelos seus sucessores, liderados pelo coronel Penha Gonçalves, até porque, explicou "faziam parte" da sua própria equipa", acabou por deixar uma nota positiva ao processo de "transição" desta missão para o Ministério da Saúde. "Em vez de ficar nas mãos de uma pessoa, está nas mãos de uma estrutura. Não se pode pensar em ter só um Ronaldo. É preciso uma equipa", frisou.

Ainda assim, o vice-almirante deixou alguns conselhos sobre o que deve ser feito para inverter a tendência de aumento do número de infetados desta nova vaga da pandemia, agora agravada com a nova variante da covid-19 Omicron. "A primeira coisa é olhar para o problema e para os dados com objetividade e coragem. Não mimetizar situações de outros países. Estou confiante que termos 88% da população vacinada vai contribuir para estarmos mais seguros. Mas o que temos de fazer é perceber onde está o grosso da pandemia. Se está a atingir mais as pessoas vacinadas ou as não vacinadas. Se for as vacinadas há que vir a 3.ª dose, ou dose de reforço. Se for as não vacinadas, então têm de se vacinar. Temos cerca de 1,2 milhões de pessoas não vacinadas, se aumentarmos o leque de vacinados vamos controlar mais a pandemia. Águas passadas não movem moinhos e neste momento o mais importante é que se tomem as decisões adequadas".

Quanto à vacinação das crianças , o vice-almirante é também pragmático, mas deixou implícita uma crítica. "Às vezes a comunicação tem de ser mais hábil. Vamos imaginar por hipótese que nos miúdos abaixo dos 12 anos que foram internados, que foram bastantes, 250 com menos de 12 anos tiveram pericardite. Se as tivéssemos vacinado todas a percentagem calculada seria cinco crianças. Estamos a falar de uma diferença de 250 para cinco. Estas coisas têm de ser explicadas às pessoas com lógica e com números. Se assim for as pessoas perdem o receio e passam a ter confiança.

O porta-voz da pergunta que todos querem sempre fazer ao vice-almirante foi Carlos Coelho, criativo publicitário presidente da Ivity: " O Sr.º vice-almirante que era um desconhecido representa hoje a credibilidade que todos estávamos à procura no Estado. Uma vez que é um homem de coragem, já pensou em ter a coragem de se candidatar à Presidência da República nas próximas eleições?" Gouveia e Melo sorriu, mas desta vez deixou no ar algum enigma sobre o que está a pensar. "Têm-me aconselhado a dizer que dessa água não beberei, que é uma frase muito forte que não se deve dizer nunca. Tenho uma carreira militar que pretendo continuar. O futuro só a Deus pertence. No entanto queria dizer-vos o seguinte: tentei despolitizar o processo de vacinação enquanto coordenador da task force e as declarações que fiz nesse contexto foi precisamente para evitar que se entrasse numa guerra política. Não sou um ator político. Sou um ator que tem uma missão e a única coisa em que tem de estar focado é nessa missão e não estar a pensar no que vai fazer no futuro. O que posso dizer sobre o futuro? É que ele ainda não está realizado e até lá muita coisa pode acontecer", declarou.

Encontra semelhanças até entre os políticos e os militares no sentido em que "a política é um ato nobre para a resolução de problemas comuns, o que acaba também por ser a missão dos militares". Sobre o "segredo" para uma liderança bem sucedida, destaca três aspetos: "a visão, para resolver os problemas; os valores sólidos, sem os quais não se encontra o caminho certo; e a coragem para se tomar as decisões".

Recordou o modelo que utilizou na tas force, a "liderança consentida", que pressupõe que todo o grupo seja convencido do objetivo e da forma de o alcançar. "A liderança acontece naturalmente e os milagres acontecem", sublinhou.

Assumiu que tem uma "forte esperança" que a sociedade até melhore com a experiência da pandemia. "Este processo tirou de nós coisas muito importantes enquanto sociedade. Não nos podemos esquecer do que nos uniu para alcançarmos o que conseguimos no processo de vacinação. Temos de ter confiança em nós, sem isso ninguém vai longe. Muitas vezes destruímo-nos a nós próprios. Aquela ideia de que o estrangeiro é que é bom... parece que nós não somos capazes. Sou totalmente contra essa ideia. Sou muito ambicioso, mas uma ambição de grupo, enquanto povo, enquanto nação e sermos cada vez melhores. Há um problema cultural, de facto, e esse tem de ser reinventado".

Com a sua nomeação para Chefe de Estado-Maior da Armada adiada desde que saiu da task force por causa de "equívocos" entre o governo e o Presidente da República, o vice-almirante refutou comentar a atual situação da Marinha, com boa parte dos seus navios inoperacionais, mas não se furtou a falar no futuro. E no seu entender é no mar que reside parte importante dele. "Portugal tem um ativo estratégico muito importante que é o mar. É talvez o último dos seus ativos estratégicos, que terá uma grande importância geoeconómica e geopolítica muito grande. Temos de ter cuidado, senão podemos ser espoliados devagarinho desse último ativo estratégico. Gostaria de desenvolver e de ajudar a desenvolver políticas que contribuam para que esse ativo estratégico não nos seja retirado", afiançou. Gouveia e Melo apela que se passe da "retórica à ação" neste objetivo.

"É preciso desenvolver tecnologia e oportunidades de emprego. Não é a buscar baldes de água salgada. Os jovens são atraídos quando há oportunidades" afirmou, acrescentando, depois em resposta a uma outra questão da audiência que "é preciso criar sistemas que permitam aos jovens progredir". "O problema é que somos um país que fica contente com um Sebastião em cada área. Temos um Ronaldo e ficamos contentes. Vivemos nesta fantasia que é meia dúzia de pessoas que representam o país. É completamente diferente fazer isso do que ter uma estrutura que tenha centenas de milhares de pessoas com qualidade e que se consiga com elas fazer o impulso fortíssimo que é preciso para a economia. E é isso que temos de pensar, como é que vamos criar um sistema que permita a jovens ativos e inteligentes progredir". Considera que "muitas vezes os nossos sistemas tentam abafar a qualidade para normalizar no meio, na média, as pessoas. Nós temos de valorizar as pessoas que saem da média em todas as áreas da sociedade. Se fizermos isso de uma forma progressiva e constante é o tal nutriente bom que depois gera uma sociedade mais vigorosa".

Desafiado pelo pneumologista Filipe Froes a caracterizar o estado em que encontrou o Sistema Nacional de Saúde, o vice-almirante, afirmou ter visto "um sistema um bocado pulverizado e que, por estar disperso precisa de uma articulação mais forte, o que veio a acontecer com o processo de vacinação em que todos os atores são importantes", salientou, recordando os contactos que fez logo de início com as Ordens dos Médicos e dos Enfermeiros.

A Saúde é, aliás, a par com a Defesa, duas áreas que, na sua opinião, mereciam mesmo um "pacto de regime". "Para o estado-nação a Saúde é extremamente importante e deve ser olhada como uma causa de Regime. Tal como a Defesa e as Forças Armadas. Para se viver em paz e segurança temos de ter sempre alguém que nos defenda. Ao contrário do que se pensava com o fim da guerra fria, o mundo está muito instável, não se caminha para a paz global".

Com dezenas de personalidades de vários quadrantes da vida pública portuguesa sentadas na audiência, a tertúlia, subordinada ao tema "Renovar, Recuperar e Reinventar" teve como palco a sala Almada Negreiros, no edifício DN, na Avenida da Liberdade, construído especificamente para o jornal e que durante décadas foi sede do Diário de Notícias. "Um dia especial em que voltamos a uma casa que para nós é mágica", afirmou a diretora do DN, Rosália Amorim, evocando mais de século e meio de "liberdade e muita criatividade". Além da personalidade nacional, foi anunciada a escolha da redação do DN para "Personalidade Internacional" do ano - Joe Biden, um distinção entregue a Andrew Sisk, ministro-conselheiro da embaixada dos EUA.

Se os 157 anos de história do DN têm uma profunda ligação a Lisboa, coube ao autarca da cidade a intervenção inicial. Carlos Moedas falou de um jornal "ancestral entre os seus pares", que "ultrapassou regimes, eras, personalidades", de "um legado e uma memória feita e refeita todos os dias". Foi o mote para sublinhar a importância de uma imprensa livre e independente, algo que, recordou, aprendeu ainda na infância. "Antes de ser autarca, antes de ser europeísta, antes de ser político, engenheiro, fui e serei sempre filho de um jornalista", lembrou o presidente da câmara de Lisboa: "Sabem que o meu berço não é de ouro, mas cresci rodeado de uma coisa muito mais preciosa, que eram as palavras, os títulos dos jornais, as notícias, as entrevistas, as reportagens, a máquina de telex que o meu pai usava para enviar as notícias para Lisboa"."A vontade de mundo que eu tinha entrava em casa através dessas páginas. Lembro-me desses tempos que despontaram a minha consciência cívica, a vontade de conhecer o mundo", evocou o autarca social-democrata, lembrando a sua "primeira memória laboral": "Ir com o meu pai às duas da manhã ao Diário do Alentejo, ele com as mãos cheias de tinta, o meu avô era o tipógrafo" e ali ficavam a corrigir as gralhas. "Assim se escrevia liberdade", acrescentou, referindo que a "evolução da liberdade de imprensa é gémea da evolução do regime democrático".

O antigo comissário europeu falou igualmente de outra dimensão. "O meu pai ensinava-me sempre como ler o jornal, como procurar as pistas para perceber os desafios do futuro. São os jornalistas que frequentemente vivem primeiro os desafios que as restantes profissões encontrarão no futuro. Foi assim com a revolução digital, com as redes sociais", referiu o autarca, que disse ver nos jovens jornalistas "de certa forma, a mesma vontade que o jornalista alentejano dos anos 70 tinha ao sair da redação do Diário do Alentejo".

"Ouvir os jornalistas, ouvir a comunicação social, escutá-los com atenção tornou-se para mim indispensável", garante o presidente da Câmara de Lisboa, para quem um "decisor político que menospreze ou até despreze o jornalismo é, além de pouco recomendável enquanto companhia, pouco eficaz enquanto líder". Mesmo que equilíbrio seja difícil, dos "excessos de cumplicidade" à hostilidade, mas "são tão importantes para a democracia".

Para Moedas o maior desafio que hoje enfrenta o jornalismo passa por combater o simplismo, "ser capaz de ver o que os outros não veem e não se deixar anestesiar por ideias claras e precisas, que normalmente são falsas". E deixou um desafio: "Continuem a dar-nos as pistas sobre o futuro, continuem a combater o populismo, continuem a lutar para ir além do que parece simples".

Já o discurso de encerramento coube ao ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital, que para ilustrar o "testemunho vivo e quotidiano da nossa história" que é um jornal com 157 anos, puxou pelos... números. "O DN tem exatamente mais 100 anos do que eu" - foi o pretexto para recuar um século para evocar o que viveu e leu no jornal um cidadão que tenha nascido no ano da fundação do DN (1864) e daí passar aos últimos 57 anos. "Nasci num país com 30% de analfabetos, em que a esperança de vida pouco passava dos 60 anos, um país que estava em guerra, isolado internacionalmente, um país onde emigravam todos os anos 150 mil pessoas, um país pobre, fechado", que depois "conheceu o fim do regime, a descolonização, esteve à beira de uma guerra civil, reconquistou a democracia, construiu um Estado de Direito, conquistou a liberdade de imprensa, um Estado Social, educou toda a população". "Passámos por tudo isto em paz, fomos capazes de construir coletivamente", sublinhou. "Este país existe há 900 anos. É a nossa mais bela conquista coletiva, este país que nós fizemos é o sinal que nos poder dar maior confiança", exortou o ministro, antes de concluir - "Acho que devemos a nós próprios este reconhecimento: somos capazes do melhor".

Pelo meio Marcelo Rebelo de Sousa (que ontem foi submetido a uma operação cirúrgica) deixou uma mensagem em vídeo (publicada na íntegra na página anterior), sublinhando que tão ou mais importante que os 157 anos de passado, são mais "157 anos de aposta no futuro".

Naquele que foi o primeiro evento 5G da comunicação social em Portugal, foi ontem anunciado que o Diário de Notícias, Jornal de Notícias e O Jogo irão abrir todos os conteúdos informativos até ao próximo dia 3 de janeiro.

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