Crianças e jovens em risco têm vindo a aumentar
"Apareceram sete polícias: duas mulheres e cinco homens. Disseram que era para levar a Yara. Perguntei porquê e mostraram-me um papel do tribunal, de retirada da minha filha, para a menina ir para uma instituição”. O relato é de Sheila Marques, 27 anos, neste momento sem-abrigo a viver numa tenda, em Lisboa. Naquela altura, em junho de 2021, Sheila estava num quarto, num hostel, com o companheiro e a filha, de apenas sete meses. No entanto, a criança já estava sinalizada, segundo a mãe, ainda antes de nascer. Isto porque quando chegou a Lisboa, vinda de Torres Novas, em 2019, Sheila e o companheiro viviam na rua. “A minha filha começou a chorar muito. Não estavam a querer deixar-me despedir dela. Houve um polícia que me deixou dar um abraço e tranquilizar a menina”, recorda.
Yara foi para uma casa de acolhimento. “No dia a seguir tentei ver o que podia fazer para recuperar a minha filha. O que me disseram foi que me a davam logo que eu conseguisse um trabalho com contrato e uma casa”, descreve Sheila Marques. E assim tentou: “O meu companheiro sempre foi esforçado e, em menos de uma semana, conseguiu arranjar trabalho nas obras do metro, com contrato. Conseguimos arrendar uma casa, em Marvila, só que nunca nos devolveram a nossa filha”.
(Leonardo Negrão / Global Imagens)
Esta criança é só um exemplo entre dezenas de milhares que, todos os anos, são sinalizadas pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Só em 2022, ano do último relatório disponível, foram acompanhadas 74 191 crianças e jovens em risco (um número que tem vindo a crescer desde 2018, ano em que foram acompanhadas 60 493 situações). Destas, 28 396 tiveram processo de promoção e proteção instruído no ano com medida aplicada. Tal como nos anos anteriores, prevaleceram as medidas “Apoio Junto dos Pais” e “Apoio Junto de Outro Familiar”. Nestes casos, os menores não são retirados à famílias mas estas têm acompanhamento por parte das autoridades competentes. Mas, segundo o relatório, 11,1% das crianças e jovens seguidos pelas CPCJ foram alvo de medidas de colocação, que implicam a retirada às famílias de origem.
Os problemas das crianças e jovens em risco, e que foram diagnosticados pelas CPCJ, são diversos e podem ir da negligência (4655 casos em 2022) à violência doméstica (4188), que são os mais frequentes, passando pelos maus tratos físicos, psicológicos, abusos sexuais ou abandono, conforme descrito no “Relatório anual de avaliação da atividade das CCPJ 2022”.
Entretanto, a história de Sheila Marques não fica por aqui. Voltou a engravidar e o companheiro foi preso. “A Yara foi crescendo, nunca me foi devolvida e, neste momento, já tem três anos. A Yasmin nasceu no dia 5 de novembro de 2022. Durante algum tempo fiquei com ela mas perdi a casa que tinha arranjado, porque aumentaram a renda de 530 para 900 euros. Foi quando vim para esta tenda e pedi para a Yasmin ser acolhida na mesma instituição onde está a Yara”, revela. “Na noite que viemos para a tenda estava a chover muito e fiz o melhor que podia ter feito. Só queria proteger a minha filha que, aqui na rua, corria muitos perigos. Ao mesmo tempo, estando as duas na mesma instituição, podem crescer juntas e ter uma ligação de irmãs”.
Sheila vive na rua mas trabalha num restaurante. Só que o magro salário não lhe possibilita pagar uma renda de casa a preços de mercado. A mulher garante que visita as filhas todas as sextas, sábados e domingos. Só que tem medo de as perder para sempre. “Fui ao tribunal e disseram-me que, se não organizasse a minha vida, iria ser aberto o processo para adoção”, diz, com as lágrimas nos olhos.
No caso destas crianças, segundo a mãe, não havia maus tratos nem negligência. Aparentemente, só falta de um teto para viver. “Dizem que estou a usar as minhas filhas para sair da rua, mas não estou. Quero é ter as minhas filhas comigo. Só Deus sabe o quanto eu amo aquelas meninas e estou a entrar num desespero, porque já não sei o que fazer mais”, diz a mulher, que revela, ainda, estar inscrita para atribuição de habitação social, na câmara municipal de Lisboa, há dois anos.
Para Sheila e as duas filhas bebés ainda pode haver esperança, apesar da sua angústia. “A nossa lei o que prevê é que nenhuma criança tenha de ser acolhida por falta de condições económicas ou por ausência de habitação”, avança Guida Bernardo, 39 anos, diretora nacional de programas das Aldeias SOS. “Se há cuidado, afeto, bom trato, tudo será alinhado para que isso não aconteça”.
Em casos como o de Sheila Marques, “não havendo, no imediato, habitação, o que pode acontecer é um acolhimento transitório, muito balizado, até que haja uma casa para a família”, prossegue Guida Bernardo. “Tudo isso será avaliado pelas entidades como a Segurança Social, o tribunal e as instituições que ficam com as crianças. Quando a ausência ou negligência tem a ver com estas questões de falta de dinheiro todo o acolhimento é transitório, muito curto, só para a família se organizar. Não se retiram as crianças para a vida”, analisa a diretora nacional de programas das Aldeias SOS.
Viver numa casa de acolhimento
Quando uma criança, ou jovem, é sinalizado e retirado à família ainda vai, na maior parte das vezes, para uma casa de acolhimento. O DN visitou a Aldeia SOS de Bicesse, Cascais, onde funcionam quatro casas de acolhimento. “Neste momento temos um total de 24 crianças. Em cada casa há vários cuidadores que organizam a rotina para que seja terapêutica e reparadora do trauma que estas crianças e jovens sofreram”, explica Miguel Esteves, diretor técnico da Aldeia SOS de Bicesse. “A rotina, em termos de estrutura física e do cuidado, mantém um cariz familiar. No nosso modelo a criança pode ir tomar o pequeno-almoço de pijama, não vai de tabuleiro, num refeitório”, acrescenta Guida Bernardo.
O que se pretende é que estas crianças e jovens, apesar de retirados das suas famílias biológicas para um ambiente institucional, tenham “uma vida o mais próxima possível do que é normativo. Temos seis cuidadores para cada seis crianças, por casa, que trabalham por turnos. Ou seja, há sempre dois cuidadores presentes. À semelhança de um contexto normativo, em que as crianças normalmente têm dois cuidadores - os pais - aqui também temos dois cuidadores na hora do pequeno-almoço, quando eles voltam da escola ou ao preparar o jantar”.
(Leonardo Negrão / Global Imagens)
Nas Aldeias SOS são acolhidas crianças sozinhas ou irmãos. “Acolhemos meninos de todas as idades e dos dois sexos. A Segurança Social quando faz estes pedidos de vagas, muitas vezes pede-nos, quando são grupos de irmãos, para os acolhermos. Somos das casas com maior possibilidade de termos irmãos juntos”, continua Guida Bernardo. E dá um exemplo: “Chegámos a ter sete grupos de irmãos. Isso é muito positivo para evitar a rutura familiar das crianças. Se nós tivermos casas de acolhimento que segregam por sexo o que acontece é que, se houver irmãos, ficam separados. Nas Aldeias SOS, por princípio, mantemos os irmãos juntos”.
As crianças que estão acolhidas nas Aldeias SOS - existem três, em Bicesse, Gulpilhares e na Guarda - vivem um dia a dia em todo idêntico à de uma que esteja inserida na sua própria família. “Durante a semana acordam, tomam o pequeno-almoço e vão para a escola. A escola é central e fundamental em todo este processo. Eles apanham o autocarro, da carreira, para irem para a escola. Tentamos, ao máximo, que estes jovens tenham uma vivência absolutamente comum. Não há a carrinha da instituição que vai levar e buscar, a não ser que seja necessário para uma atividade diferente, como por exemplo quando eles vão para o futebol, ao final do dia. Depois é preciso ir buscá-los, por um lado porque já não há transportes, e por outro porque fica de noite e torna-se perigoso eles andarem sozinhos na rua”, explica Miguel Esteves, diretor técnico da Aldeia SOS de Bicesse.
“Grande parte do dia é passado na escola. Ao final do dia eles regressam a casa. Se não tiverem outras atividades, fazemos os trabalhos de casa e eles têm tarefas a desempenhar, mediante a sua capacidade e grau de autonomia”, prossegue, exemplificando: “Pode ser desde pôr a mesa ou levantar a mesa, tratar da louça para pôr na máquina e até aprender a confecionar as refeições. Isto é importante em termos da sua autonomia futura”.
Caso não regressem à família de origem, sejam adotados ou inseridos numa família de acolhimento, os jovens podem ficar nas casas de acolhimento até aos 25 anos. “Não conheço nenhum exemplo sequer próximo do Estado português. Na maior parte dos países chega aos 18 anos e acabou. Nós podemos ir até aos 25, desde que estes jovens estudem ou trabalhem”, avança Rui Godinho, diretor da Infância, Juventude e Família da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).
A Santa Casa também tem soluções de acolhimento residencial, apesar de estar a fazer mais uma campanha para angariação de famílias de acolhimento. “Só na área metropolitana de Lisboa há mil crianças com medidas de promoção e proteção e que têm medidas de colocação. Historicamente, são medidas de acolhimento residencial. Em Portugal não temos muito a cultura do acolhimento familiar. Uma criança quando está em perigo, em Portugal, quando é retirada à família de origem, por defeito vai para uma casa de acolhimento”.
(Leonardo Negrão / Global Imagens)
Rui Godinho admite: “Embora as casas de acolhimento estejam muito melhores que no passado, não é o ambiente normal para uma criança crescer. Por isso estamos a desenvolver um programa de acolhimento familiar, até porque a lei diz que é [a solução] preferencial”. Neste momento, a SCML tem 90 famílias em bolsa para acolhimento. Um número insuficiente para todas as crianças que precisam. Por isso, a maioria fica no acolhimento residencial que, na SCML, tem várias vertentes. “Há oito anos houve um projeto de grande qualificação das casas de acolhimento. Temos casas com menos crianças; nenhuma tem mais de 12. E os cuidadores são, na sua maioria, técnicos superiores. Estamos a lidar com crianças cuja maioria tem sequelas psicológicas ou problemas de comportamento graves”, observa Rui Godinho. “Neste momento temos 220 crianças e jovens em acolhimento residencial, 151 em acolhimento familiar e 350 em autonomia. Criámos respostas de autonomia para os adolescentes, que são muito melhores”.
Esta oferta de autonomia para os jovens mais velhos traduz-se em “apartamentos com três jovens, a partir dos 15 anos, e uma equipa de supervisão. Se calhar, na semana em que eles entram no apartamento a equipa vai lá todos os dias; passado um ano pode ir só uma vez por semana”. Nestes casos “os jovens estudam ou trabalham. E muitos, através do trabalho, acabam por organizar a sua vida no sentido de se autonomizarem”.
Outra resposta da SCML são “residências autónomas para jovens com alguma debilidade física ou cognitiva, sem suporte familiar e que nunca vão conseguir ser completamente autónomos”, prossegue Rui Godinho. “Colocamo-los em apartamentos de autonomia mas com uma equipa de apoio 24 horas. Os técnicos não estão dentro da casa, mas estão muito perto, no mesmo prédio. Temos cinco apartamentos e é muito fácil: se há uma questão às duas da manhã, o educador está lá e em cinco minutos resolve o que for preciso”.
Existe, ainda, a “Equipa de Integração Comunitária”, que consiste em “termos miúdos que já têm competências para viver sozinhos, mas com uma mentoria. Temos um técnico para cada 12 jovens. Eles arrendam um quarto, vivem com os colegas ou com a namorada, e nós acompanhamo-los em meio natural de vida. Alguns estudam, outros trabalham e autonomizam-se”.
Por fim, a SCML tem resposta para os jovens provenientes de centros educativos , onde estiveram porque cometeram crimes sendo menores. “Temos uma casa de transição, para estes miúdos que estiveram em centros educativos e têm regras muito exigentes. Além disso, temos um regime de supervisão intensiva, que consiste neles cumprirem metade da medida em meio natural, ou seja, por exemplo, em vez de estarem dois anos num centro educativo, estão lá um ano e no outro ano já estão num apartamento, em regime aberto”.
Famílias de acolhimento
Quando uma criança é retirada à família biológica tem, ainda, a solução de ir viver com uma família de acolhimento. “Estas famílias não podem estar inscritas para adoção e têm de ser idóneas. Fazemos uma seleção mas, antes disso, fazemos reuniões de esclarecimento com as famílias que mostrem interesse”, explica Guida Bernardo, diretora nacional de programas das Aldeias SOS. No caso desta instituição, ainda só estão a ser preparadas famílias de acolhimento no distrito da Guarda. Já a SCML tem famílias de acolhimento em toda a região metropolitana de Lisboa. “No resto do país, a Segurança Social tem protocolos com outras misericórdias e IPSS e sabemos que este modelo está a ser implementado”, afirma Rui Godinho.
Cristina Portela é família de acolhimento há um ano, de uma criança de dois. “Sempre tive a ideia de adotar uma criança, mesmo antes de ter sido mãe. Aliás, tive dificuldade em ter filhos, mas tenho três. Entretanto, divorciei-me e esse projeto da adoção ficou suspenso”, começa por contar a nutricionista. “Mais tarde, surgiu uma campanha da Santa Casa e decidi avançar para este projeto de ser família de acolhimento, até porque os meus filhos também queriam muito participar e estavam sempre a perguntar quando é que tínhamos um bebé em casa”. Quando a criança chegou tinha alguns comportamentos muito próprios. “Batia, instintivamente, porque era algo que fazia, e gritava. E não era propriamente uma criança maltratada, era só uma questão de não haver estrutura familiar”. Com o tempo, o comportamento mudou e está mais tranquila. “O objetivo é dar-lhe a oportunidade de partilhar valores de família que de outra maneira não teria. Dar-lhe competências como a confiança e a partilha”, adenda a nutricionista.
(Carlos Pimentel/Global Imagens)
As crianças ficam na família de acolhimento o tempo que for preciso, “até que tenham um projeto de vida definido”. “Se for para voltar para a família de origem, por exemplo, começamos a trabalhar o mais depressa possível as competências da família”, explica Rui Godinho. “É muito gratificante”, finaliza Cristina Portela.