Pedido de perdão às vítimas não será apenas "uma questão de palavras"

Relatório sobre abusos exprime "dura e trágica realidade", referiu o presidente a Conferência Episcopal Portuguesa. "Não toleraremos abusos nem abusadores", destacou o bispo D. José Ornelas.

O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) afirmou esta segunda-feira que o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja "exprime uma dura e trágica realidade: houve, e há, vítimas de abuso sexual provocadas por clérigos e outros agentes pastorais".

"Pedimos perdão a todas as vítimas: às que deram corajosamente o seu testemunho, calado durante tantos anos, e às que ainda convivem com a sua dor no íntimo do coração, sem a partilharem com ninguém", acrescentou o bispo D. José Ornelas.

"É uma ferida aberta que nos dói e nos envergonha", disse em conferência de imprensa em Lisboa, na Universidade Católica Portuguesa. José Ornelas assegurou que o pedido de perdão da igreja às vítimas destes abusos não se vai ficar pelas palavras.

"Nas vossas vidas atravessou-se a perversidade onde nunca devia ter estado. O vosso testemunho é um alerta e um pedido de ajuda a que não queremos nem podemos ficar surdos", afirmou, dirigindo-se às vítimas.

D. José Ornelas disse que "nada pode reparar o sofrimento e a humilhação que foram provocados" às vítimas. "Mas estamos disponíveis para vos acolher e acompanhar na superação das feridas que vos foram causadas e na recuperação da vossa dignidade e do vosso futuro", sublinhou o também bispo de Leiria.

Poucas horas depois da apresentação do relatório Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, que aponta para 512 testemunhos validados de um total de 564 recebidos, o que aponta, por extrapolação, para um mínimo total de 4.815 vítimas, afirmou que "o relatório hoje publicado exprime uma dura e trágica realidade: houve, e há, vítimas de abuso sexual provocadas por clérigos e outros agentes pastorais, no âmbito da vida e das atividades da Igreja em Portugal".

Relatório assinala, prosseguiu, "várias consequências destes crimes que podem ter estado na origem de dramas e sofrimentos incomensuráveis que marcaram vidas inteiras".

"Os abusos de menores são crimes hediondos. Quem os comete têm de assumir as consequências dos seus atos e as responsabilidade civis, criminais e morais daí decorrentes. É preciso que reconheçam a verdade sem nada esconder, que se arrependam sinceramente, que peçam perdão a Deus e às vítimas", continuou o bispo. "Que procurem uma mudança radical de vida com a ajuda de pessoas competentes, na certeza de que o caminho da justiça encontrará sempre lugar no coração bondoso de Deus", prosseguiu José Ornelas, reconhecendo que o estudo da Comissão Independente apresenta um "número muito maior" do que aquele que tinha sido apurado até agora.

Assembleia Plenária Extraordinária da Conferência Episcopal marcada para 3 de março

"Pedimos desculpa por não termos sabido criar formas eficazes de escuta e de escrutínio interno e por nem sempre termos gerido as situações de forma firme e guiada pela proteção prioritária dos menores", admitiu.

Considera, no entanto, que "a mudança está a acontecer".

"Se é certo que a Igreja não pode tolerar os abusos, que são uma total contradição da nossa identidade e do nosso modo de agir, também é verdade que a vida da Igreja em Portugal não se encerra nesta questão", disse. "Há muitas pessoas e instituições eclesiais a dedicar-se aos mais frágeis, aos mais necessitados e aos mais pobres, e a realidade dos abusos não pode fazer esquecer o imenso bem, tantas vezes silencioso, de sacerdotes, religiosos/as e leigos/as empenhados em tantas situações, a quem queremos dar uma palavra de conforto e coragem".

Depois de analisar detalhadamente o relatório, a Conferência Episcopal Portuguesa "procurará encontrar os mecanismos mais eficazes e adequados para fomentar uma maior prevenção e para resolver os possíveis casos que possam ocorrer com celeridade e respeito pela verdade".

"A tolerância zero para com os casos de abusos tem de ser uma realidade em toda a Igreja", destacou. "Por isso, não toleraremos abusos nem abusadores", reforçou.

Nesse sentido, apontou para a Assembleia Plenária Extraordinária da CEP, já agendada para 3 de março, em Fátima, admitindo que nessa ocasião "será possível apontar medidas concretas a desenvolver".

José Ornelas deixou ainda um agradecimento à Comissão Independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, sublinhando o "trabalho técnico fundamental" feito que "ajudará a definir, com maior rigor, uma estratégia para o futuro que procure impedir a repetição de quaisquer tipos de abusos, complementando com a ação que já tem vindo a ser desenvolvida pelas Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis e pela Equipa de Coordenação Nacional destas comissões".

O presidente da CEP deixou ainda o apelo para que se continue a ""dar voz ao silêncio" dos mais frágeis, contribuindo para uma cultura de transparência, não só na Igreja, mas em toda a sociedade, fazendo jus à identidade e missão da Igreja em favor da segurança e do bem das crianças, adolescentes e adultos vulneráveis".

Após a declaração, o bispo D. José Ornelas afirmou que a CEP não tem, para já, acesso sobre casos individuais. "Não antecipo cenários sem saber do que se está a tratar".

Admitiu que um dos dados que o impressionou foi o facto de 77% das pessoas que testemunharam perante a comissão independente não terem comunicado os abusos às comunidades diocesanas.

"Não é um processo acabado, é um processo iniciado", sublinhou.

O presidente da Conferência Episcopal revelou que tinham estimado investir cerca de "200 mil euros" na comissão independente.

"É natural que isso possa subir ou descer, não sei. Posso garantir que não faltámos à comissão com aquilo que era necessário. Tudo aquilo que nos foi pedido para que a comissão tivesse os meios necessários foi disponibilizado. Penso que isso está claro para todos. Nestas coisas vale bem a pena gastar uns tostões. É uma realidade que nos penaliza, não é fácil tratá-la. Vi, tantas vezes, o desgaste emocional que isso causa nos próprios investigadores. Mas não podemos deixá-la como está, não nos resignamos nunca a isso", afirmou José Ornelas.

Sobre se vão prolongar a comissão, o bispo respondeu que a Conferência Episcopal tem feito um caminho colegial e que tudo será certamente analisado. "Temos várias perspetivas que temos de estudar", disse.

"Uma coisa é certa: temos no terreno comissões diocesanas e a coordenação nacional destas comissões. Esta comissão tinha uma tarefa específica, que termina agora a sua função, não se esgota aqui. Isto tem de ter sequências", referiu. "Há outras instituições deste país com as quais, eventualmente, vamos ter também de trabalhar em parceria", acrescentou.

"Abusadores de menores não podem ter cargos dentro do ministério"

O bispo D. José Ornelas referiu que "não se sente alheado" a esta realidade de abusos sexuais na Igreja, mas afirmou: "Sinto que algumas coisas não me chegaram e deveriam ter chegado."

"Certamente, uma das indicações que será necessário dar é que casos destes devem ser comunicados a quem toma decisões sobre eles", afirmou.

Disse ainda que hoje a realidade dos seminários "é bastante diferente", mas há ainda "muito por fazer".

Questionado sobre se a Igreja Católica está disponível para expulsar as pessoas identificadas como abusadoras, D. José Ornelas recordou as palavras do Papa. "O que o Papa diz e isso também é muito claro para nós, abusadores de menores não podem ter cargos dentro do ministério. Isso é muito claro".

"Desde que seja provado que uma pessoa é abusadora, não tem lugar" na Igreja, reforçou.

O presidente da CEP, no entanto, não foi claro sobre o que acontecerá aos clérigos ou outros membros da igreja sobre os quais recaiam suspeitas e cujos nomes possam constar da lista de abusadores que a igreja ainda não recebeu, mas recusou qualquer processo de "caça às bruxas".

"Não temos ainda essa lista, havemos de recebê-la e tratá-la convenientemente. Esses processos são tratados na via própria, daquilo que são os princípios legais portugueses (...). Temos um processo na igreja, em que o bispo faz uma investigação prévia para saber a plausibilidade", explicou. "Uma vez que seja possível que isso tenha acontecido, tem de ser comunicado à Santa Sé e de lá virão as indicações e instaurar um processo que leva o seu tempo, mas não é assim tão demorado", disse.

Sublinhou também que, tal como no Ministério Público, o princípio subjacente à condução do processo na igreja é do "segredo de justiça como base, para que as coisas não sejam tratadas na rua, mas sejam tratadas com dignidade para todos".

Questionado sobre se os abusos sexuais vão ser debatidos na Jornada Mundial da Juventude, D. José Ornelas considerou que "hoje não se faz nenhum evento para jovens e adolescentes sem que esta dimensão esteja presente".

"Não vivo para a imagem, para fazer um teatrinho não me punha com este trabalho todo. Nenhum de nós", afirmou.

"Isto cai como uma nódoa em pano limpo. Somos uma igreja que comete, cometeu e, certamente, cometerá erros", reconheceu José Ornelas.

Pedido de perdão às vítimas não se ficará pelas palavra

Na conferência de imprensa, o bispo garantiu que o pedido de perdão às vitimas de abusos sexuais na igreja católica não será apenas "uma questão de palavras". Este é um momento "doloroso, mas libertador".

"Já falámos disso evidentemente. Estão em vista já várias ideias, mas acho que tem toda a razão. Isto não pode simplesmente ser uma questão de palavras. As palavras têm o seu lugar e se são autênticas significam uma 'vontade de'. Só o facto de termos instituído esta comissão é na tentativa de fazer jus a esse sofrimento que foi infligido a tanta gente e de uma forma grave que complicou as suas vidas. Isso tem de estar presente. A forma de o fazer tem várias coisas e isso vai ser tratado para que seja uma coisa em comum da igreja em Portugal", disse o bispo.

Garantindo que o tema está "em cima da mesa" e que será tratado "nos próximos tempos", o representante dos bispos portugueses evocou a sua própria experiência de contacto com vítimas, para descrever o momento.

"São momentos dolorosos, mas também libertadores e é nesse sentido que acho que é importante para nós todos como sociedade e como igreja que passemos por este momento, que não é fácil, mas sobretudo que seja libertador e que seja justo minimamente para estas pessoas para que se possa criar ao seu redor e para o futuro um mundo em que tenham dignidade e onde possam saber que não foram elas as culpadas disto e que não podem viver com essa mácula interna para a vida. Outros é que são a censurar por causa disso", disse.

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica recebeu 512 testemunhos validados relativos a 4.815 vítimas desde que iniciou funções em janeiro de 2022, anunciou hoje o coordenador Pedro Strecht, que referiu ainda que esta comissão enviou para o Ministério Público 25 casos.

Notícia atualizada às 19:22

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