Comunidade cigana: "Não está a evoluir como gostaria. Evoluir é tratar as mulheres"
Alcina Faneca derrubou estereótipos sobre a sua comunidade, provou que os ciganos chegam longe se tiverem os meios . Tirou Direito, tal como a irmã, o irmão segue-lhes os passos. Encontrou resistência, sobretudo de "alguns" dos seus. Falará disso na TEDxLisboa.
Alcina Faneca tem sido notícia por ser a primeira mulher cigana inscrita na Ordem dos Advogados, vai fazer um ano em outubro. Tem escritório em Torre de Moncorvo, Bragança, e trabalha em parceria com colegas de Esposende. Gostaria de deixar de ser notícia, sinal de que muitas ciganas seguiriam o seu exemplo, mas teme que as mentalidades ainda demorem muito tempo a mudar. "Não está a ir tão depressa como gostaria", lamenta.
Relacionados
Sempre soube o que queria, é decidida e diz sem rodeios o que pensa. Acredita que o seu testemunho pode fazer diferença. Tem falado em escolas, encontros da autarquia de Torre de Moncorvo e eventos similares. Desta vez, foi convidada a participar na TEDxLisboa, dia 18 de setembro, na Universidade Nova. Hesitou, mas decidiu agarrar mais este desafio. "É um acontecimento de grande dimensão e responsabilidade. Mas se alguém me convidou é porque tenho alguma coisa para oferecer, é porque faz sentido a minha participação".
Falará do seu percurso profissional e pessoal, das dificuldades, da resistência por parte da sociedade, sobretudo por "alguma comunidade cigana", faz questão de sublinhar "alguma". "Quero transmitir às pessoas que, apesar de ainda não haver a mudança que eu quero, é possível estudar e ter um percurso profissional. Eu e outras pessoas conseguimos".
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Estudou na Universidade Católica, no Porto, tirou o mestrado em Direito Criminal, mas vive num meio pequeno e os advogados têm de fazer de tudo um pouco, acaba por trabalhar mais em Direito Civil: heranças, partilhas, etc.
Não pretende elogios, embora muita gente lhe tenha dado os parabéns, ciganos que lhe dizem que é um orgulho e que partilham as suas histórias nas redes sociais. Também não pretende que a causa cigana seja uma bandeira, o que quer é "influenciar mentalidades e tentar mudar o futuro, especialmente em relação às raparigas ciganas". Justifica: "Sei que há muitas que têm vontade de ter uma vida diferente, de serem independentes."
Vidas que conhece, que lhe contaram e ouve depois de cada comunicação. Até conseguiu que "uma menina continuasse os estudos", como era o desejo dela. "Quando participo neste tipo de eventos, é mesmo para conseguir chegar a alguém, nem que seja a uma ou duas pessoas, mas fiz a diferença nessas pessoas".
Considera que a comunidade cigana está a evoluir muito devagar. "Não sou hipócrita, não concordo com o que dizem muitas pessoas, inclusive associações, que a situação está a evoluir. Não está a evoluir como gostaria, evoluir é tratar as mulheres de forma igual, não é defender a igualdade numa palestra e, quando é a altura das mulheres terem as mesmas oportunidades, não as deixam. Isso não é evoluir, é uma mentira. O que se diz e o que acontece são coisas diferentes. Embora não esteja sempre no seio da comunidade, sei o que as pessoas contam, o que se passa. Ficaria muito feliz se as mentalidades tivessem mudado muito, mas ainda há muito trabalho a fazer, muito mesmo", defende.
Grande apoio familiar
Entende que essa tarefa pertence tanto aos ciganos como aos não ciganos. "É um trabalho em conjunto, mas dentro da comunidade, aqueles que se dizem que são diferentes e querem mudar, deviam ter um papel principal em esforçar-se para que isso aconteça. É óbvio que ajuda haver alguém de fora a incentivar, mas com alguém da comunidade cigana é mais fácil chegar às pessoas".
Chegou onde chegou, porque a família tinha meios e a incentivou: o pai insistiu que tinha de tirar um curso superior; a mãe a comprar-lhe livros e a explicar como é importante para uma mulher ser independente. Ela é doméstica e criou quatro filhos, o percurso considerado normal na etnia. Emigraram para França para trabalhar em outras atividades que não a venda, viveram três anos em Paris, onde nasceu Alcina. Regressaram a Portugal, a Torre de Moncorvo, posteriormente o pai criou em Espanha uma empresa de prestação de serviços na área da agricultura.
Desde sempre que os pais estiveram dispostos a tudo para que os filhos continuassem os estudos, desde logo não os retirando da escola, o que acontece sobretudo com as raparigas quando chegam aos 12/13 anos. A advogada até percebe as razões, mas entende que não fazem sentido na sociedade atual. "Têm receio que na escola conheçam alguém que não seja da etnia cigana e que deixem de levar o modo de vida tradicional".
Vidas diferentes do tradicional. Alcina pode não ter ouvido comentários diretamente, ou os seus pais, mas percebe que a sua história não seja indiferente a ninguém, para bem e para o mal. As maiores resistências vieram da parte da comunidade cigana, "alguma comunidade cigana", faz questão de sublinhar. "Vi de tudo um pouco, pessoas que me davam os parabéns e outras que não acreditavam nas nossa capacidades. Alguns comentários negativos, mas isso para nós não fazia diferença".
Torre de Moncorvo não é uma cidade com muitos ciganos, na escola era a única, também não existe uma segregação habitacional como em outras localidades. Portanto, cresceu entre "senhores" e "senhoras" mantendo sempre o convívio com a família cigana.
No seu percurso escolar, na sua vida profissional, no dia-a-dia, não tem sentido descriminação. Mas assistiu a discriminação com outros ciganos. "E não gostei nada", algumas vezes interveio". O que tem a certeza é que as pessoas devem ter as mesmas oportunidades, independentemente das suas características, nomeadamente a raça. Continuará a lutar para que respeitem os direitos da sua etnia, defendendo também que cumpram os seus deveres.
Tradição que faz sentido
Alcina Faneca cumpre as tradições com as quais concorda, o ritual do casamento, o luto quando morre um familiar, a longa espera junto aos hospitais quando alguém adoece. E usufrui da liberdade que lhe é permitida na sociedade portuguesa, diz ela que tem o melhor dos dois mundos. Viveu sozinha para poder tirar um curso superior (as ciganas solteiras têm de andar sempre acompanhadas de um membro masculino da família), tirou a carta de condução para ser mais independente, tem uma carreira profissional para ser autónoma.
Vive no interior do país, no distrito de Bragança, o que é uma dificuldade acrescida para quem quer seguir os estudos superiores. Depois de ter concluído o 12.º, na escola de Torre de Moncorvo com uma boa classificação, teve de mudar para a segunda cidade do país. Os dois irmãos mais novos seguiram-lhe os passos, para também estudar Direito na Universidade Católica. A irmã mais velha, 32 anos, não quis continuar a estudar, "por opção", sublinha Alcina Faneca. A de 25 anos já concluiu o mestrado, o mais novo, 18 , entrou, agora, para a universidade. Três irmãos em Direito?
Ri-se pelas escolhas idênticas, não pode responder pelos irmãos, ela sabe a razão da sua. "Era muito pequena, não fazia ideia do que era esta área, acho que foi pelo sentido de justiça. Ouvia comentários sobre os ciganos que não gostava, que alguém tinha feito isto ou aquilo por ser cigano. Fiquei com isso na cabeça e queria mudar alguma coisa, para que as pessoas fossem tratadas da mesma forma em situações similares".
Tem escritório próprio há um ano e, até agora, só teve um cliente da sua etnia, "onde as coisas funcionaram como estava a espera, como deviam".
Continua sobre as escolhas dos irmãos: "A minha irmã talvez tenha sido um bocadinho por influência minha, mas também gosta, o mais novo foi igual". A irmã quer seguir magistratura, um sonho que partilha com Alcina.
A gravidez atrasou o caminho para ser juíza. Nasceu a Vera, agora com 3 anos. "Desde muito jovem que quis ser juíza, mas com o nascimento da minha filha é mais complicado, teria que ir para Lisboa, e ela é ainda muito pequena. Durante uns anos serei advogada, mas no futuro gostava de frequentar o Centro de Estudos Judiciários". Casou aos 25 anos com um cigano, festa rija de vários dias como manda a tradição, com muita dança e música à mistura, enfim, alegria. Para Alcina não era obrigatório casar dentro da sua comunidade, mas reconhece que não é prática comum. "Atualmente já é mais aceitável mas sei que é difícil, é algo que ainda não aceitam muito bem". Na sua família, "um senhor" ou "uma senhora" seriam igualmente bem aceites.
As coisas não resultaram entre o casal e acabaram por se separar. Os céticos da comunidade que lhe apontaram o dedo por ter estudado e ser independente, talvez tenham visto aqui matéria para continuar com as críticas, nada com que a família se preocupe. "Nunca nos importámos com aquilo que pensam".
Os pais aceitaram bem a separação, era o que tinha de ser dado as coisas não terem corrido bem entre o casal. "O importante para eles é que eu e a minha filha estejamos bem. Sou independente, tenho o meu trabalho, não sofri, claro que é complicado sobretudo quando há uma criança, mas estou muito feliz e bem".
céuneves@dn.pt
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal