Em 2040, Portugal pode ser um país atrativo, com bom desempenho económico, um tecido social equilibrado e participativo e com um SNS próspero, tecnológico, bem gerido e sustentável, o que nos aproximaria de um "Cenário Unicórnio". Ou pode ser um país estagnado, marcado por uma realidade dicotómica, com grandes desigualdades e instabilidade, com serviços de saúde para elites e um SNS degradado -- com uma clivagem entre "saúde para ricos" e "saúde para pobres" -- num acesso labiríntico aos cuidados de saúde, o pior dos cenários, o "Minotauro"..Pelo menos, esta é a conclusão a que chegou um grupo de 24 jovens médicos, homens e mulheres, uns do internato geral, outros do internato da especialidade e mais alguns que acabaram a especialidade recentemente, do Norte, Centro e Sul do país, e todos a fazerem carreira clínica, que alguns ainda acumulam com a da investigação e da academia..Jovens médicos que a Ordem reuniu em dois fins de semana para que os mais novos na carreira, e que, à partida, estarão no ativo em 2040, pudessem refletir, debater e propor soluções para a Saúde e para o SNS para um futuro que não está assim tão distante, 2040. O resultado final, e para se evitar o cenário mais negativo, integra 40 recomendações, que vão desde o reforço da natalidade e dos cuidados pré-natais, passando pela inclusão de nova tecnologia no SNS, pela gestão com modelos diferenciados até à ética..O trabalho foi apresentado no 25.º Congresso da Ordem dos Médicos, que foi organizado pela Secção Regional do Sul (SRS), sob o mote: "Que cenários para a Saúde em 2040?", e vai ser publicado em livro e terá uma versão também em e-book..O objetivo, explicou ao DN Jorge Penedo, vice-presidente da SRS e coordenador da iniciativa, "não foi fazer mais um diagnóstico da atual situação, diagnósticos andamos a fazer há muitos anos, o que quisemos foi fazer algo diferente, com maior enfoque nos caminhos que podem ser percorridos, definindo prioridades e medidas concretas a executar. Uma coisa é certa: podemos estar de acordo em tudo, mas temos de priorizar, se não o fizermos dificilmente conseguimos fazer alguma coisa"..E à pergunta sobre o cenário deque estamos mais perto, Jorge Penedo afirma: "O país está equidistante dos dois cenários. Temos capacidade e potencialidade para fazer, e bem, porque há profissionais muito competentes e em termos tecnológicos também já temos disponibilidade para nos mantermos avançados, mas a questão é que para chegarmos a um cenário unicórnio não basta termos só os profissionais e alguma tecnologia é preciso um conjunto de funcionalidades e de competências. Se isto não existir, poderemos caminhar para um cenário mais Minotauro". Dois caminhos a serem percorridos em 18 anos, como se pode atingir um e desviar do outro? Os jovens médicos exemplificam. .O país caminhará para este cenário se houver estagnação económica, falta de investimento na saúde e se se mantiver a degradação do SNS, explicam os jovens médicos. E isto resultará em que "uma parte considerável da população não tenha acesso ao sistema de saúde", como houve menos preocupação com a prevenção da doença também haverá menos qualidade de vida e mais descompensações de doenças crónicas, mais prevalência e agravamento das doenças mentais, tal como mais incidência de doenças infecciosas"..O país assistirá "a uma redução da esperança média de vida" e a "um sistema de saúde a duas velocidades e com níveis de acesso e de qualidade diferentes. Há uma divisão clara entre sistema de saúde para pobres (que têm como única alternativa o SNS) e sistema de saúde privado para todos os que podem pagar", explicam..Por outro lado, este contexto permitirá que "o setor privado da saúde continue a florescer à custa da degradação do SNS e "a população em geral tem cada vez menos acesso à saúde, pois os meios e os recursos ao serviço do SNS são cada vez mais escassos. Os tempos de espera aumentam, a tecnologia existe, mas a falta de investimento no setor público faz com que as ferramentas tecnológicas não sejam utilizadas e rentabilizadas da melhor forma. O êxodo de médicos do público para o privado, que já se fazia sentir, aumentou exponencialmente, dadas as difíceis condições de trabalho no SNS. Enfrenta-se, por isso, uma crise vocacional dos médicos e dos profissionais de saúde, existindo cada vez menos jovens a quererem enveredar por estas opções de carreira". Chegámos à realidade em que, no setor privado "os médicos são em maior número e cada vez mais diferenciados", enquanto no setor público, "o médico é cada vez mais um "tarefeiro"/indiferenciado, tendo ainda, muitas vezes, de executar tarefas de outros profissionais devido à falta de recursos"..Como há muitos anos, Portugal vive a frequente situação de ter de importar cuidados de saúde de outros países, por falta de capacidade do SNS para responder às necessidades em saúde da população e, de acordo com a visão de um dos jovens médicos do grupo dos 24, o relato de um dia no SNS, em 2040, poderia ser assim: "Ontem foi um dia difícil no hospital. Recebemos na urgência mais um doente com uma neoplasia pancreática. Chama-se Noah. Veio magro, asténico e ictérico. Parece 2021. É uma pena que ainda não utilizemos marcadores salivares nos cuidados primários para identificação de fatores de risco e diagnóstico precoce, mas estes tornaram-se uma arma perigosa na mão das seguradoras. A seguradora exigiu este teste para renovar o seguro, mas não o renovou após o resultado. É inadmissível! Para piorar a situação, o empregador teve acesso a esta informação e o Noah acabou desempregado pouco depois. Angustia-me que tenha tido a perceção da sua degradação sem ter qualquer maneira de recorrer a cuidados de saúde atempadamente. Internámos e pedimos meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Foram rápidos, mas Noah continua a aguardar cirurgia. O robô até era bom, em 2025, quando foi comprado com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mas avariou e não há dinheiro para o reparar. Os cirurgiões que operavam sem robô foram para o privado ou para o estrangeiro. Continuamos a formar muitos médicos, mas exportamos mais. Infelizmente, o fosso entre público e privado está mais fundo do que nunca em Portugal"..Mas se o país fizer o caminho para um "Cenário Unicórnio" a visão e o relato de um outro jovem médico é bem diferente, para os doentes portugueses e até estrangeiros, como "Nesta semana, recebemos no serviço mais um grupo de doentes estrangeiros para cirurgias eletivas. Este ano marca o décimo ano de crescimento consecutivo nesta área de turismo de saúde. E tem sido possível alargar o tipo de cuidados, bem como os países de origem dos doentes. Na prática temos tido mais doentes, mas felizmente a tecnologia tem-nos ajudado a acompanhar este crescimento, sem sobrecarga para a equipa. Estamos particularmente entusiasmados com o pool de doentes dos PALOP que estamos a conseguir tratar remotamente. Os doentes e as famílias agradecem este impacto positivo nas suas vidas. Nos últimos anos houve várias alterações no SNS. Além de hospitais, foram criados centros de saúde virtuais direcionados para o doente. Nestes, o doente está no centro do sistema. Há cada vez mais dados medidos à distância através de wearables e dispositivos simples de usar pelos próprios. A capacidade de processamento de dados permitiu-nos transitar para um acompanhamento à distância. E o aumento da literacia em saúde reduziu os tempos de espera nas urgências, os centros de saúde foram reforçados de meios e o foco passou a ser a prevenção primária. Os novos hábitos de vida mais saudáveis, permitiram diminuir drasticamente a prevalência de doenças evitáveis. A triagem pré-hospitalar é feita online com base num algoritmo que define que os doentes menos graves não são observados no hospital, mas sim virtualmente ou no próprio domicílio, se necessário. A hospitalização é cada vez mais domiciliária e a medicação entregue nesse contexto". O mesmo jovem continua: "Durante a tarde, reuni com a equipa de investigação do fundo de investigação Unicórnios.pt em articulação com os parceiros internacionais da área médica e das ciências da computação para monitorizar os progressos do ensaio ABC de fase Ill. Este é o nosso primeiro ensaio a decorrer em modelos humanos virtuais e estamos expectantes quanto ao resultado. Quem diria há cinco anos que poderia vir a dedicar metade do meu tempo à área da investigação computacional? Enfim, tudo isto só foi possível devido a uma boa aplicação dos fundos europeus. Finalmente, conseguimos setorizar tarefas entre público e privado, permitindo-nos trabalhar de modo mais eficiente, complementar e equilibrado. Há 20 anos não acreditaria que isto fosse possível"..Os cenários estão traçados a questão agora é o que vai fazer Portugal? Jorge Penedo não duvida que "há uma unanimidade em torno da imperiosa necessidade de se começar já hoje a construção de um futuro "unicórnio", reforçando que temos "capacidade e potencialidade, mas é preciso que tenhamos também capacidade para materializar o que este cenário implica"..Ou seja, e como revela o relato dos jovens médicos, "trabalhar numa conjuntura enquanto país que aponte para o crescimento económico e desenvolvimento tecnológico, para a evolução social, no sentido de um maior foco na prevenção e em estilos de vida saudáveis, o que traduziria menor pressão sobre o sistema de saúde e mais capacidade"..A partir daqui, a aposta tem de ser na prevenção e no bem-estar -- que se reflete numa cultura de envelhecimento ativo -- sendo esta estratégia transversal aos cidadãos, aos prestadores e aos gestores do sistema de saúde". Esta opção faria com que "o sistema de saúde apostasse numa organização de cuidados mais próximos, essencialmente virtuais -- que passariam a ser a norma, com base em centros de proximidade que podem atender física ou virtualmente os doentes. As farmácias estariam integradas no sistema e representariam um contínuo da prestação de cuidados", indicam. Mas não só. "Os hospitais tornar-se-iam centros de elevada especialização, mais centralizados, na medida em que só respondem a casos de doença aguda e grave. Todas as outras doenças são geridas nos centros de proximidade e os serviços de urgência atenderiam apenas situações de emergência". Ao mesmo tempo, "o trabalho do médico estaria facilitado, permitindo-lhe também focar-se na investigação e hiperespecialização. E toda esta evolução permite uma medicina mais personalizada e integrada"..Este é o cenário do futuro ideal e para que tal aconteça há, à partida, uma certeza para este grupo de jovens médicos: "Não se consegue resolver a saúde só com a saúde. É preciso trabalhar em articulação com os restantes setores da sociedade". Idealmente, as mudanças deveriam chegar aos currículos da medicina, que deveriam passar a integrar outras áreas, como engenharia, economia, física, sociologia, psicologia, entre outras, de forma a dotar a medicina de uma maior abertura e capacidade de integração." E nas recomendações deixadas por estes médicos, a prioridade máxima será trabalhar no sentido de "aumentar a natalidade e inverter o suicídio demográfico"..Depois, é preciso "melhorar o nível de cuidados materno-infantis, cuidados mais diferenciados e com melhor acesso". Segue-se "a criação de um rede de cuidados preparada para a longevidade e para as doenças crónicas" e "a aposta forte nos cuidados de proximidade, menos hospitalares e mais ambulatórios"..A quinta recomendação vai para a introdução de novos modelos de cuidados com base na oferta que traz e trará "a evolução tecnológica", nomeadamente através da monitorização à distância, com novos dispositivos portáteis e maior conectividade e "as instituições e redes devem reorganizar-se para uma resposta adequada a um envelhecimento com maior qualidade de vida"..Recomendam também que a "saúde dos próximos anos deve melhorar os resultados, valorizando a visão do doente sobre aquilo que ele considera relevante para si. Claro que importa tratar mais doentes, mas há que perceber que se tem de acrescentar qualidade de vida.".Outra recomendação a medição do que "fazemos, avaliar e criar valor. Esta mudança tem de se refletir no modelo de financiamento do sistema", porque "o que importa não é só a perceção, mas sim a materialização desses resultados". Por outro lado, é preciso que os médicos desenvolvam mais competências, porque "o mundo da gestão e da saúde terá de ter novos atores e novos especialistas. O tempo do amadorismo já não é mais aceitável", referem. Defendem ainda que se deve trabalhar para uma sociedade mais saudável, com um consumidor mais informado dietas, exercício, tempos livres, viagens, cultura, ambiente: tudo em nome de mais saúde..Entre muitas outras recomendações, o grupo destaca que o importante é o país trabalhar para "um sistema de saúde ajustado à realidade", associado à evolução das ciências e à digitalização, ao mesmo tempo que se trabalha também "um Sistema Nacional de Saúde, que potencie público, privado e social, porque o que importa para fortalecer o SNS é enquadrá-lo verdadeiramente neste sistema..A última recomendação vai para uma "revisão da ética". "Importa realçar que o aparecimento de muitos dos novos desafios irão fazer surgir novos conflitos entre ética, ciência e medicina", sendo preciso "estar atentos, debatê-los e olhar com novos olhares, ainda que sustentados nos valores essenciais da ética". O balanço final é o de que a Saúde em Portugal "tem futuro", mas é preciso estabelecer prioridades e limites", lê-se no documento.