"Colocamos 16 a 18 cientistas portugueses todos os anos na Antártida"
Regressado há cerca de dois meses do continente gelado no hemisfério Sul, onde estuda o permafrost, ou solo gelado, desde 2000, Gonçalo Vieira fala ao DN do que se andou em Portugal nesta área e do seu fascínio por aqueles locais remotos.
Voltou há pouco tempo da Antártida. Que novidades trouxe?
As novidades têm sobretudo a ver com o conhecimento de todos estes anos. Quando comecei, em 2000, sabia-se muito pouco sobre o permafrost, o solo gelado, na Antártida. Mantemos uma rede de observação de permafrost e alterações climáticas em vários locais na região, e a rede expandiu-se. Hoje temos furos com 25 metros na Península da Antártida, no continente, nas Shetland do Sul, no arquipélago de Palmer, onde há uma base norte-americana, outro junto a uma base argentina, também no continente, nas bases espanholas nas ilhas Livingstone e Deception e no próximo ano vamos fazer um furo com os sul-coreanos na ilha King George. Sabemos hoje quais são as características desse solo gelado, que não é igual em todo o lado, e uma das novidades que temos, não desta campanha, mas destes anos, é que o permafrost da maior parte da península Antártica tem uma temperatura muito próxima dos zero graus Célsius, ou seja, é muito vulnerável às alterações climáticas.
Os investigadores portugueses que participam nestas campanhas ficam em bases de outros países?
Sim. Portugal não tem logística própria lá. O programa polar português freta um avião todos os anos, com capacidade para 60 a 70 passageiros, temos um financiamento para isso. Usamos os lugares disponíveis para investigadores portugueses e estrangeiros, fazemos uma call com os nossos parceiros. Com isso conseguimos negociar lugares em bases ou em navios para os nossos investigadores. Estamos a conseguir colocar entre 16 e 18 investigadores portugueses todos os anos na Antártida.
Houve uma grande evolução na ciência polar em Portugal.
Houve, sobretudo a partir de 2007, com a criação do programa polar português. Há um apoio do Estado, com financiamento continuado e no programa polar há acordos com Espanha, Chile, Coreia de Sul, e outros. Este foi o sexto ano em que fizemos o voo de logística e os programas dos outros países já contam connosco. O programa polar nacional está a fazer dez anos, atingimos a fase de maturidade. Criámos um programa muito forte do ponto de vista científico, estamos a publicar 20 a 30 papers por ano em revistas internacionais, o que é um impacto importante em função do nosso financiamento, que é de cerca de 170 mil euros anuais geridos no IGOT [Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, da Universidade de Lisboa], dos quais 60 a 70 % são para o voo. Não é suficiente para manter um programa polar. Com este orçamento, abrimos pequenos concursos, garantimos que as equipas vão à Antártida, mas elas têm de canalizar financiamento de outros projetos ou de orçamentos plurianuais dos centros de investigação para alimentar a componente científica.
O programa tem de crescer em financiamento para se dar um novo salto?
Sim, estamos a discutir a isso com a FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia]. Temos uma relação muito próxima com a FCT, e estamos a tentar soluções, numa abordagem equilibrada. A ideia é aumentar o financiamento.
O que deu a ciência polar à comunidade científica portuguesa nestes dez anos?
Internacionalização, e houve muitos ganhos na transferência de conhecimento e de tecnologia, colaborações que projetaram os grupos portugueses, que ocuparam nichos importantes na ciência e que publicam hoje em revistas muito mais importantes do que se isso não tivesse acontecido. Há três anos começámos a financiar também projetos no Ártico, este ano temos nove projetos lá.
Também vai para o Ártico este ano?
Sim, em princípio, em Julho, para uma zona de transição onde não há permafrost contínuo, na Baía de Hudson, no norte do Quebeque, numa base do Centro de Estudos Nórdicos, ligado à Universidade de Laval. Há dois anos fizemos lá uma campanha em que utilizámos drones para fazer cartografia de alta resolução do permafrost e este ano vamos fazer comparações com os dados que recolhermos.
Como é viver nessas condições?
Não tem nada de mais. Esta estação no Ártico está numa aldeia, que tem entre dois e quatro mil habitantes. De um lado tem os Inuítes e do outro índios Cree. Nós ficamos em condições como as de uma pensão e vamos diariamente para o campo, de helicóptero. Largam-nos no terreno e vão buscar-nos à hora combinada. Na outra campanha demos palestras a estudantes Inuítes do ensino secundário, que foram lá ao centro. O que fizemos foi tentar mostrar a nossa ciência e o que nós, portugueses, estávamos ali a fazer. Foi interessante e como temos os drones eles ficaram interessados, estiveram a experimentar.
É muito diferente da Antártida?
Sim. Na Antártida não há populações permanentes. O aeródromo que usamos para entrar na Antártida é mantido pela força aérea chilena e o governo do Chile instalou lá uma aldeia, a Villa las Estrellas, que tem uma população de 70 pessoas, com famílias, crianças, uma escolinha. Mas quando vamos para lá, são as férias deles.
Como é trabalhar com tanto frio?
Nós vamos no verão e nessa altura a temperatura ali anda à volta dos zero graus. Se houver mau tempo pode chegar a cinco negativos.
Não tem medo do frio?
Não, medo nenhum [ri-se].
O que o fascina nas regiões polares?
Gosto muito de sítios extremos, não no sentido de morrer de frio, mas dos sítios isolados. Tem a ver com o meu interesse pela montanha. Antes de ir para a geografia já fazia montanhismo e já sonhava com expedições à Antártida. Desde miúdo que queria ser investigador e vi na geografia uma possibilidade de juntar o útil ao agradável. Também por isso queria que Portugal tivesse um programa polar. Sempre me fez muita confusão faltar a bandeira portuguesa nas reuniões internacionais relacionadas com as regiões polares. E agora, há uns tempos que já temos a nossa bandeira nas reuniões internacionais das organizações polares.