Ciência escreve-se no feminino para resolver enigmas da saúde humana
Artur Machado/GIobal Imagens

Ciência escreve-se no feminino para resolver enigmas da saúde humana

De uma possível solução para a doença de Parkinson a um diagnóstico simples para a apneia do sono, os projetos de quatro investigadoras portuguesas na área biomédica foram distinguidas pelas Medalhas de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência. Em 20 anos da iniciativa foram já premiadas 69 profissionais.
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Até que ponto a apneia do sono acelera o envelhecimento?

O projeto de Laetitia Gaspar visa conseguir diagnosticar a apneia do sono através de uma análise ao sangue. A doença não está diagnosticada em quase 90% dos casos, mas está associada a risco cardiovascular e diabetes e aumenta na menopausa.

Fazer uma espécie de radiografia integral à apneia do sono é o que propõe a investigadora Laetitia Gaspar. Para quê? Confirmar se a apneia do sono acelera o envelhecimento - já que se julga estar associada a doenças graves - e encontrar meios rápidos de diagnóstico e de tratamento. A investigadora de 31 anos viu o seu projeto, no âmbito do Centro de Neurociências e Biologia da Universidade de Coimbra, distinguido pelos Prémios L’Orèal, que destaca mulheres na ciência.

A síndrome da apneia obstrutiva do sono é um distúrbio respiratório caracterizado pelo breve, mas frequente, bloqueio das vias respiratórias, o que interrompe parcial ou totalmente a respiração. Estima-se que 936 milhões de adultos vivam globalmente com este problema de saúde, sendo que 80% a 90% dos casos não estão diagnosticados e permaneçam, por isso, sem tratamento.

“Quais são as alterações promovidas pela apneia do sono que podem acelerar ou agravar o processo de envelhecimento? Será que as pessoas com esta síndrome envelhecem mais depressa? E poderá o tratamento reverter ou atrasar este processo?”. Estas questões dão continuidade a investigações anteriores, que têm indicado haver “uma relação entre a síndrome da apneia obstrutiva do sono, o processo de envelhecimento e o desencadear de várias doenças – como a hipertensão, as doenças cardiovasculares, a diabetes e a depressão, entre outras – observadas quando esta perturbação do sono não é tratada”, disse ao DN a investigadora doutorada em biologia experimental e biomedicina.

Apesar da potencial gravidade dos efeitos da apneia do sono, a maioria das pessoas está apenas desperta para os sitomas mais visíveis que são o ressonar, o cansaço e perda de concentração, aponta a investigadora. Laetitia Gaspar acrescenta que “ainda não é claro como pode esta doença conduzir a alterações neurodegenerativas, depressão ou mesmo cancro, mas é uma pista a prosseguir”. Acredita-se que a apeneia do sono pode estar relacionada com a demência, na medida em que prejudica a limpeza do chamado “lixo celular” que ocorre durante o sono e que afeta a função cognitiva e a formação de memórias, disse Laetitia Gaspar ao DN. A investigadora refere ainda que a apneia nas mulheres aumenta significativamente após a menopausa, porque deixa de existir a proteção muscular oferecida pelos estrogénios.

O sonho da investigadora é que o projeto, premiado com 15 mil euros, permita encontrar biomarcadores que possam ser identificados, por exemplo, numa análise de sangue. “Se conseguirmos ter indicadores da presença da doença no sangue estaremos a mudar completamente o panorama do diagnóstico e monitorização da resposta ao tratamento da apneia do sono. Poderíamos diagnosticá-la através de uma simples análise no sangue”

“Pretendemos estudar diferentes tipos de alterações relacionadas com o processo de envelhecimento em amostras de sangue de doentes com apneia do sono, em comparação com indivíduos sem a doença”, explica a investigadora, que irá também avaliar como estas alterações respondem ao tratamento com máscara de pressão positiva continuada, o tratamento mais comum no contexto da apneia do sono. A investigadora prossegue o seu trabalho no grupo de Neuroendocrinologia e Envelhecimento, no contexto da Apneia do Sono, e no grupo de Terapias Génicas e Estaminais para o Cérebro, em terapia génica. Na sua área de estudo, as mulheres são já a esmagadora maioria, “mas o cenário muda nas posições de topo”, refere Laetitia. A seu ver, ainda estamos em processo de mudança de mentalidade e ainda existe um estigma de a mulher ser mais emotiva, insegura e ter menos perfil de liderança.

Cláudia Deus

Um só gene pode fazer a diferença na Doença de Parkinson

E se a solução para a doença de Parkinson estiver num só gene sobre o qual possamos intervir e, assim, melhorar a qualidade de vida dos que sofrem desta patologia neurodegenerativa? É a proposta da investigadora Cláudia Deus.

De um modo mais científico, esta é a pergunta a que a investigadora Cláudia Deus quer responder: “Será possível ativar o gene Nrf2, cuja função está diminuída em doentes com Parkinson, usando vesículas nanométricas libertadas pelas nossas células e modificadas com RNA mensageiro sintético que codifica para este gene?

Partindo das conclusões de estudos seus anteriores de que o gene Nrf2 se encontra diminuído em vários pacientes com esta doença e que ele consegue regular mais 250 outros genes na célula, “se conseguíssemos aumentar a expressão desse gene – através de um fármaco por exemplo – possivelmente teriamos efeitos benéficos para os pacientes”, resumiu Cláudia Deus em declarações ao DN. Essa é a esperança que vai nortear o projeto de investigação premiado pela L’Orèal e que será desenvolvido no Instituto Multidisciplinar de Envelhecimento, Universidade de Coimbra, onde Cláudia, de 37 anos, se doutorou em Biologia Experimental e Biomedicina. “Estou muito otimista”, disse a investigadora, mãe de duas crianças de 4 e 5 anos de idade, o que considera mais um “desafio” a somar aos preconceitos culturais e estereotipos em torno da condição das mulheres na ciência.

A doença de Parkinson é uma doença neurodegenerativa que afeta o sistema nervoso central, causando uma progressiva deterioração e perda das células cerebrais responsáveis pelo controlo dos movimentos - os neurónios dopaminérgicos. “Embora não seja completamente conhecido o mecanismo exato associado à perda destas células cerebrais, há evidências de que a disfunção mitocondrial e o stress oxidativo são componentes fisiopatológicos importantes e que se manifestam ainda antes do aparecimento dos sintomas motores”, explica a investigadora que tem “o bichinho da ciência” desde criança.

Em estudos anteriores, Cláudia Deus já demonstrara que as alterações metabólicas e mitocondriais características da degeneração dos neurónios dopaminérgicos observadas em doentes com Parkinson também estão presentes nas suas células da pele. Por isso, e dada a complexidade de fazer testes nos tecidos cerebrais, vai ser na pele que os testes serão feitos, disse ao DN. A investigadora acredita que “a ativação do gene Nrf2 poderá ser alcançada usando RNA mensageiro sintético (mRNA), uma tecnologia recente e que esteve na base de algumas vacinas da COVID19”.

“Queremos testar as vesículas extracelulares como um novo “meio de transporte e entrega” para entregar o mRNA sintético codificando para o gene Nrf2 em células. “Se este sistema de entrega inovador for bem-sucedido poderá alterar a progressão da doença de Parkinson”. Em paralelo, Cláudia propõe-se investigar os efeitos deste sistema na disfunção metabólica e mitocondrial associada a esta doença, usando células isoladas da pele dos próprios doentes de Parkinson e, pela primeira vez, em neurónios dopaminérgicos gerados a partir das células desses mesmos doentes.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a prevalência da doença de Parkinson duplicou globalmente nos últimos 25 anos, afetando mais de 8,5 milhões de indivíduos. Em Portugal serão perto de 20 mil pessoas a padecer de uma doença sem cura nem meios de diagnóstico precoce.

Perceber como os parasitas atuam em animais e humanos

Encontrar modelos para perceber como os parasitas afetam os órgãos de animais e humanos, causando doenças como a leishmaniose canina - uma doença incurável que afeta 12% dos cães em Portugal - é a aposta de Sara Silva Pereira.

Sara Silva Pereira quer entender como os parasitas interagem com os tecidos e causam danos à saúde no contexto de inúmeras doenças parasitárias, incluindo aquelas que chegam aos seres humanos pelo contacto com animais infetados (zoonoses) e cujo impacto na saúde humana é particularmente relevante em zonas onde há estreita ligação entre humanos e animais, como acontece nas economias agrárias ou nos locais com uma indústria pecuária forte.

Para tal, a investigadora doutorada em parasitologia pela Universidade de Liverpool propõe-se desenvolver modelos tridimensionais de vários órgãos e tecidos de diferentes espécies animais - como o cérebro, o coração ou o tecido adiposo - que imitem os ambientes microscópicos dos tecidos reais, de forma controlada, para poder estudar detalhadamente várias doenças parasitárias. “No nosso laboratório temos já um modelo de vasculatura artificial que usamos para estudar a forma como alguns parasitas se agarram aos nossos vasos sanguíneos e, neste projeto, vamos adaptá-lo para o tornar mais complexo e versátil, aplicável a novos contextos”.

A investigadora de 30 anos vai dedicar-se especificamente ao Trypanosoma congolense, um parasita tropical que infeta o gado bovino, e pode gerar uma doença cerebral aguda muito grave, devido à interação dos parasitas com um tipo específico de células do sistema imunitário – as células T CD4+. “Vamos desenvolver um modelo ou sistema que imita a barreira hematoencefálica do gado bovino, de forma a conseguirmos investigar como a doença acontece e, com essa informação, procuraremos descobrir formas de tratar ou, pelo menos, reduzir a sua gravidade.”

Outro dos objetivos é alargar este sistema para poder estudar outras doenças causadas por parasitas da mesma família – a família dos Trypanosomatidae, protozoários responsáveis por várias doenças em animais e zoonoses, como a Leishmaniose, a doença do Sono e a doença de Chagas. Doutorada com apenas 24 anos, Sara fez o pós-doutormaneto no Instituto de Medicina Molecular – Universidade de Lisboa. Desde 2023 lidera o laboratório “Interações Parasitas-Vasculatura” no Centro de Investigação Biomédica da Universidade Católica Portuguesa. É também professora auxiliar convidada na Faculdade de Medicina da mesma instituição. Conjugar liderança, investigação, ensino e família nem sempre é fácil, admite. Exige trabalho contínuo e até já teve de levar a filha de 3 anos para o laboratório “porque as células não sabem as horas”.

Como os epitélios podem continuar a ser barreiras protetoras

Doenças inflamatórias e o cancro alteram os epitélios, que são barreiras protetoras do organismo. A ideia de Mariana Ossawald é compreender como os epitélios reagem e como podem manter a sua estrutura.

As perturbações de forma ou organização dos epitélios acontecem em inúmeras patologias, incluindo cancro e doenças inflamatórias, pelo que compreender como é que os epitélios conseguem responder às interferências a que estão sujeitos e manter a sua forma é uma questão fundamental da biologia. Mariana Osswald, bióloga de 35 anos, vai desenvolver o projeto no âmbito do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto.

Embora o termo epitélio seja pouco conhecido, dá nome a um dos tipos de tecidos estruturais do nosso organismo, que revestem a superfície dos vários órgãos humanos - e animais em geral –, incluindo a pele e os órgãos internos dos vários sistemas do corpo, desde o digestivo ao respiratório. Os tecidos epiteliais formam uma barreira protetora que controla as substâncias que entram e saem do organismo – por exemplo, impedem a perda excessiva de água e a entrada de organismos indesejados (patogénicos) - e desempenham outros importantes papéis, entre os quais o controlo da temperatura e o desenvolvimento do organismo. Para manterem estas e outras funções essenciais, os epitélios necessitam de manter a sua forma e propriedades. O projeto de Mariana vai centrar-se especificamente no estudo de uma rede de proteínas que regula a forma e as propriedades mecânicas das células – a actomiosina. Vão recorrer a técnicas inovadoras, incluindo microscopia de super-resolução e ablação de estruturas subcelulares por microcirurgia laser.

Mariana Osswald doutorou-se em biologia básica e aplicada, na Universidade do Porto e é nesta instituição que continua a trabalhar, com funções de investigadora no i3S e de professora auxiliar convidada no ICBAS – Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar. Para Mariana, uma carreira em investigação é desafiante, competitivo e exigente. “Por um lado, a precariedade do trabalho pode tornar complicado o acesso ao subsídio associado à licença de maternidade. Por outro, não é simples estar meses afastada do laboratório e manter a competitividade e produtividade necessárias para concorrer à posição seguinte com sucesso. Por fim, o impacto que criar um filho tem no tempo disponível para a investigação não se restringe à duração da licença”, refere a investigadora, exemplificando que este tipo de razões pode explicar estatísticas que indicam que algumas cientistas optam por não ter filhos, por adiar esta decisão ou por mudar de profissão.

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