Centenas de vítimas de tráfico, mas faltam provas para condenar

Pagam milhares a um passador para chegar a Portugal. Os intermediários colocam-nos na agricultura, pagando-lhes menos do que recebem das empresas, com péssimas condições. Os imigrantes têm medo de denunciar.

Um grupo de nepaleses a trabalhar na apanha de morangos numa herdade de Almeirim sobreviveu meses em regime de escravatura. Pagaram milhares de euros para chegar a Portugal, mais 250 euros quando assinavam um contrato. Ganhavam três euros à hora, viviam em camaratas de oito pessoas, sem luz nem água canalizada, com uma casa de banho para mais de duas dezenas de pessoas.

Pagavam 55 euros pela dormida e 60 pela alimentação, deslocavam-se a pé à aldeia, longe da propriedade, para comprar galinhas. Estavam ilegais e os documentos eram cativados pelos intermediários, uma empresa inscrita nas Finanças como prestadora de serviços. Fugir ou denunciar não era hipótese.

Eram 23 pessoas e a situação foi conhecida porque uma investigação desencadeada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) levou ao desmantelamento da rede que promovia a vinda de imigrantes para trabalhar na agricultura.

Foram considerados vítimas de tráfico humano e os três arguidos, dois nepaleses e um português, condenados a penas de 14 e 13 anos de prisão efetiva.

Aconteceu em 2016, um ano excecional no que diz respeito ao desmantelamento de redes de tráfico de seres humanos, com as operações Pokhara (SEF), Katmandu 1 e Katmandu 2 (PJ), cada uma delas com mais de duas dezenas de vítimas. A regra é sinalizar centenas de vitimizações mas que depois é difícil provar. No ano passado apenas se deram como provadas 5,9 % das 219 vítimas sinalizadas por tráfico de seres humanos.

As sinalizações são feitas na grande maioria pelas autoridades e confirmadas como "presumíveis vítimas" pelo Observatório de Tráfico de Seres Humanos (OTSH). A grande dificuldade é provar que se trata de tráfico, desde logo através do testemunho de quem é explorado, segundo os peritos no terreno.

Em Portugal, em 2020, foram confirmadas 13 pessoas em 219, das quais 155 para exploração laboral (dados da OTSH). As restantes 67 não se confirmaram e há 105 casos em investigação.

Em 2019, confirmaram-se 44 vítimas em 261 sinalizações; tantas quantas as que foram indicadas em 2018 pelas autoridades e pelas ONG. Em 2017, foram confirmadas quatro vítimas num total de 150 sinalizações. O ano de 2016 foi excecional: 228 vítimas e 108 confirmadas, ainda, assim, menos de metade (47,3 %).

Estes imigrantes têm a proteção das autoridades portuguesas se colaborarem na investigação, nomeadamente a possibilidade de ficarem no Centro de Acolhimento e Proteção de Vítimas de Tráfico Humano e a obtenção da autorização de residência. A maioria acaba por deixar o país, o que não aconteceu aos 23 nepaleses escravizados na herdade de Almeirim, que as autoridades retiraram das condições em que viviam em julho de 2016.

2 mil euros/mês ao traficante

As condições em que os imigrantes viviam são descritas no acórdão do processo judicial, que decorreu no Tribunal de Santarém. Resultou da operação Pokhara (cidade nepalesa) do SEF, com a GNR e a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), que se deslocaram à propriedade para cumprir os mandatos de detenção. Os dois nepaleses que geriam o negócio já tinham comprado bilhetes de avião para deixar o país. Envolveu duas empresas, a Herdade dos Morangos, em Poços Negros, Almeirim, em cujos túneis (estufas amovíveis) trabalhavam os imigrantes. Viviam num anexo junto à propriedade, cujo sócio-gerente era Pedro dos Santos Vital, condenado a 14 anos de prisão. A Estimamundo era gerida por Nabin Giri, igualmente condenado a 14 anos. As empresas foram obrigadas a dissolverem-se, com a publicação obrigatória em dois jornais, um nacional e outro regional. Há um terceiro condenado, Upendra Raj Paudel, que apanhou 13 anos. Foram ainda condenados a indemnizar 14 imigrantes entre 2500 e 8 mil euros, dependendo do tempo que eles trabalharam.

A sentença, proferida a 21 de setembro de 2017, motivou o recurso dos três arguidos. O Tribunal da Relação de Évora confirmou as penas de prisão. Mas não ficou provado o crime de auxílio à imigração ilegal.

A Estimamundo apresentava-se como prestadora de serviços e assinara dois contratos, um em 2015 e um em 2016, com a Herdade dos Morangos, para fornecer no mínimo 81 trabalhadores.
Os nepaleses chegaram a Portugal através de um passador no Nepal a quem pagaram milhares de euros - estima-se que entre 10 e 15 mil euros. Entraram no país em períodos diferentes e sem visto de entrada. Tinham a promessa de que iriam ganhar um bom salário e obter a autorização de residência.

Foram colocados na Herdade dos Morangos através da Estimamundo, com a qual assinaram um contrato de trabalho por 530 euros mensais (o equivalente ao salário mínimo em 2016), sujeitos a descontos, mais 1,70 euros/dia de subsídio de refeição. Pagavam, aquando da assinatura, 200 ou 250 euros, valor que diziam ser para a Segurança Social.

Na prática, os imigrantes recebiam 3,06 euros à hora. Os documentos que assinaram estavam em português, uma língua que desconheciam. A Herdade dos Morangos pagava 4,5 euros/hora mais IVA, oito horas diárias, cinco dias semana, por cada trabalhador, à Estimamundo.

"Iniciavam o trabalho às 06h30 e terminavam às 15h30, cerca de sete horas e meia horas por dia. Folgavam, por vezes ao domingo", refere o acórdão. Quem controlava as horas e debitava o dinheiro eram Nabin Giri e Upendra Raj Paudel. Os imigrantes receberam sempre quantias mensais diferentes, nunca sabendo quanto iam ganhar, e o subsídio de refeição nunca lhes foi pago.
O anexo onde dormiam não tinha janela, o chão era de cimento sem revestimento, não havia eletricidade nem água, muito menos saneamento básico e esgotos. Tinham dois duches que não funcionavam por não haver água canalizada. Tomavam banho com baldes de água fria. A água que utilizavam era desviada do sistema de rega das estufas, inclusive para beber. Não havia armários e a roupa permanecia em malas e sacos.

O tribunal provou o crime de tráfico de seres humanos, concluindo que os intermediários, a Estimamundo, ganhavam pelo menos dois mil euros/mês, mais os 200 a 250 euros iniciais, só com as despesas da dormida (55 euros mensais) e da alimentação (entre 40 e 60 euros). Iam uma vez por mês à exploração agrícola levar batatas, arroz, cebolas, lentilhas e massa.

Formação superior

As vítimas relataram um clima de medo, com ameaças e privações, pressão psicológica, angústia, sentindo-se desamparadas e algumas com depressão. Obtiveram, posteriormente, a autorização de residência em Portugal e permanecem no país (trabalhando e estudando), ao contrário do que acontece com a maioria das outras vítimas. Mas Sónia Lopes, coordenadora da delegação da equipa multidisciplinar especializada, que os acompanhou na altura, referiu que era "um grupo especial". Muitos com curso superior, e essa será uma das razões por que testemunharam.

Os arguidos nepaleses também tinham formação superior. Aos 20 anos, Nabin tirou um curso de Informática no Nepal, onde deu aulas no ensino básico. Emigrou para Israel, onde esteve cinco anos, foi motorista num lar até vir para Portugal. Começou por trabalhar num minimercado, acabando por abrir uma loja por conta própria. Vendeu-a para comprar um restaurante, que vendeu para criar uma empresa de prestação de serviços, de recrutamento para a agricultura. É casado e tem dois filhos.

Upendra concluiu o ensino secundário no Nepal, acabando por estudar em Inglaterra, onde se formou em Gestão. Foi gestor/supervisor numa empresa farmacêutica até emigrar para Portugal, por ter dificuldades na sua legalização no Reino Unido. Trabalhou no minimercado de Nabin, antes de ser administrativo da Estimamundo.

Maior operação do país

Há dois anos, em dezembro de 2018, foi desmantelada uma outra rede, naquela que foi considerada a maior investigação no país pelos crimes de tráfico de seres humanos e auxílio à imigração ilegal - a operação Masline ("azeitona" em romeno), cuja rede operava na zona do Baixo Alentejo. Oito pessoas responderam em tribunal.

As autoridades identificaram 255 cidadãos do leste Europeu a trabalhar nos olivais. "Estavam sujeitos a condições degradantes de trabalho, alojamento e salubridade", referem os documentos da detenção. Pessoas que eram recrutadas nos países de origem, goradas nas promessas que lhes fizeram e que viviam em "alojamentos sem as mínimas condições de segurança, higiene e limpeza", entende o SEF.

Apenas recebiam quando e o valor que os arguidos entendiam e, uma vez que estavam em situação irregular, pois não eram titulares de visto adequado para exercício de atividade laboral, "tinham receio de recorrer às autoridades". Já não se encontram em Portugal.

Lucros de 7,4 milhões de euros

Os arguidos obtiveram lucros de 7,4 milhões de euros. Foram acusados, entre outros, pelos crimes de auxílio à imigração ilegal e 58 (tantos quantos as vítimas) de tráfico de seres humanos. A sentença, em dezembro de 2020, ditou penas de prisão efetiva apenas a um arguido - Florin Adamescu apanhou quatro anos e nove meses. Foi condenado pelo crime de auxílio à imigração ilegal, caindo o crime de tráfico humano.

Outros cinco homens - Rafira Rusu, Constantin Rotaru, Catalin Rusu, Stepanhita Pahomi e Sergiu Gutu - foram condenados a entre um ano e seis meses e três anos e seis meses de pena suspensa. Angela Basarab e Mihaela Rosu foram absolvidas. As empresas, a Verde Prioritário e a Semelhantajuda, propriedade de dois dos arguidos, foram condenadas a uma multa de 75 mil euros cada. Recorreram.

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