Carnaval. A festa de quatro dias que começa a ser preparada mal acaba o último desfile

Até terça-feira, os cortejos e as festas de Carnaval vão animar o país. Para que a folia saia à rua há muito trabalho feito nos bastidores, por vezes com meses de antecedência, sempre com um elo às localidades onde se realizam as festividades
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Sentado num confortável apoio de esferovite, António Costa aguarda pacientemente que o funcionário da Gate7 lhe passe uma última camada de betume de pedra. Segue-se um período de secagem e depois o trabalho final de pintura. Os últimos retoques nas proeminentes bochechas são dados pelo escultor Bruno Melo, dono da empresa e um antigo rei do Carnaval de Torres Vedras, o "mais português de todos".

A uma semana do arranque das festividades - a abertura do recinto será esta madrugada pelas 03.00 depois do corso noturno -, a azáfama dos armazéns da câmara e na empresa de Bruno Melo contagia qualquer visitante. As caricaturas dos políticos (nacionais e internacionais) exigem o esforço de quem lá trabalha de forma que os traços sejam exageradamente aprimorados, ou não estivéssemos a falar de caricaturas. "Para o desenho numa impressora 3D são dois dias, mais um de montagem, outro de escultura, ainda mais um de fibra, três dias para o acabamento e um para a pintura", descreve Bruno Melo, que amanhã, dia do primeiro cortejo, ainda dará uns últimos retoques nas caricaturas.

Afinal, o que é que o Carnaval de Torres Vedras tem de diferente de outros realizados em Portugal, para se autointitular o "mais português de todos"? César Costa, quadro da empresa municipal que promove a festa, é simples e conciso: "O nosso é genuíno, não temos importações, é festejado com a espontaneidade das pessoas." Uma espécie de empreendedorismo popular, tal como o próprio explica: "Resistimos sempre aos estímulos do exterior, sobretudo do Carnaval brasileiro. Em Torres Vedras, são os grupos de mascarados que fazem a festa popular." Neste ano, a organização conta com quase 50 grupos, que desfilarão no domingo e na segunda-feira. Ao todo, serão 2200 pessoas vestidas das mais improvisadas formas a desfilar pelas ruas, intervaladas por vários carros alegóricos, desde a Taça Eiffel, numa alusão à vitória no Euro 2016, ao Zekemon, um carro que mistura a coleta de impostos com a febre da caça aos Pokémons, que assolou os mais jovens, e não só, durante o ano passado. A "geringonça" - nome dado à coligação parlamentar que apoia o governo, composta por PS, PCP, BE e PEV - também será caricaturada.

No fundo trata-se de manter uma simplicidade que remonta aos temos das festas do Entrudo. Com uma população essencialmente rural, pobre, o improviso reinava no Entrudo. "Como não havia dinheiro para comprar ou mandar fazer grandes máscaras, os homens vestiam a roupa das mulheres", acrescenta César Costa. Tão simples. E assim se mantiveram durante muito anos, até que, em 1923, houve necessidade de criar a figura do rei e da rainha do Carnaval. Nessa época, a emancipação da mulher ainda era uma miragem. A casa, os filhos ocupavam-lhe o tempo. Por isso, foi necessário uma vez mais improvisar: dois homens, um é o rei, o outro veste-se de mulher, e está encontrada uma rainha. "O que se mantém até hoje", sublinha César Costa.

Daí que, em Torres Vedras, não há ensaios, escolas de samba, coreografias e afins. Pelas estreitas ruas da cidade vão desfilar milhares de pessoas que, simplesmente, se juntarão para festejar o Carnaval. A vê-las estarão, segundo a estimativa, 350 mil pessoas, que se deslocarão a Torres Vedras durante os dias de Carnaval. A folia rende à economia local nove milhões de euros, segundo um estudo do Instituto Politécnico de Leiria referente aos anos entre 2011 a 2014. No fundo consegue-se juntar o útil do dinheiro ao agradável da folia e os comerciantes agradecem.

Ovar. Nesta Aldeia, tudo começa em outubro

Enquanto preparam a máquina de fazer bebés e dão os últimos retoques nas cegonhas, os Garimpeiros espreitam o Benfica na televisão. Aqui, no pavilhão da associação, na Aldeia do Carnaval, em Ovar, é quase como se estivessem em casa. Há comida, bebida, um grande ecrã. Afinal, desde outubro que esta central das operações carnavalescas se tornou uma segunda casa. "Inicialmente vínhamos duas a três vezes por semana, agora é todos os dias à noite", conta ao DN Renato Oliveira, de 44 anos, membro do grupo há 26.

É isto que acontece com quase todos os 20 grupos apeados e quatro escolas de samba que desfilam em Ovar amanhã e na terça-feira. Quando acaba um Carnaval, já estão a projetar o próximo. "E em novembro começam a trabalhar a sério", diz Alexandre Rosas, vereador da Cultura. Como vem sendo hábito, muitos até tiraram férias nas últimas duas semanas. "Este é um movimento social muito importante para o concelho. É organizado há mais de meio século. Está muito enraizado."

A Aldeia, localizada na zona industrial, permite às associações - anteriormente espalhadas pela cidade - pensar em comunidade e colaborar, mas ainda se mantém o secretismo. "Sobretudo até à escolha da maquete", ressalva Renato Oliveira. Cada grupo tem um pavilhão, onde constrói os carros, faz as roupas, ensaia as coreografias. E em cada um há um bar, que ajuda a suportar as despesas. Para financiar o investimento - cerca de 13 mil euros - os Garimpeiros têm ainda as quotas, o merchandising e uma ou outra festa. Sem esquecer o apoio da câmara municipal, que é comum a todos.

Gabriela Furtosa herdou da mãe a paixão pelas lides carnavalescas. Tem 42 anos, desfila desde os 6 e é presidente do grupo de passerelle Bailarinos de Válega, que vai representar uma "parada" com canhões, majoretes e banda. Enquanto monta os casacos, que depois passam para o decalque e para as mesas dos bordados, diz ao DN que "quem não sabe, aprende". "Nós ensinamos." A direção começa a trabalhar em julho, mas o resto do grupo só lá para janeiro. "Quanto mais massacramos, menos força se leva para a rua. Queremos chegar à avenida a bombar."

Hoje, a noite é das escolas de samba, que percorrem a Avenida Sá Carneiro a partir das 22.00. Campeã em 2015, a Costa da Prata desfila com 210 elementos. Tânia Reis, 41 anos e membro do grupo há 31, conta ao DN que o tema é a "celebração da vida" - o dia dos mortos no México. Aquela que é a única mulher na bateria diz que a Aldeia veio facilitar bastante a vida às associações. "Há grupos que nos ajudam com as espojas, por exemplo. E ainda há pouco vieram cá pedir linhas." Muitos antigos membros juntam-se para ajudar, o que permite que, desde janeiro, o pavilhão fique aberto 24 horas por dia. Tudo para que a noite de hoje seja perfeita.

Amanhã e na terça-feira, a partir das 14.30, decorre o Grande Corso Carnavalesco. São mais de duas mil pessoas a desfilar. Na edição deste ano, Alexandre Rosas destaca uma melhoria das condições para os visitantes: novas estruturas para os peões assistirem aos desfiles, um reforço da iluminação e novas regras, que tornam o desfile mais rápido. Um investimento ronda os 500 mil euros.

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