Bastonário questiona deontologia e ética de pedir aos médicos 80 horas de trabalho por semana
O bastonário da Ordem dos Médicos questionou esta terça-feira a deontologia e a ética de pedir aos profissionais de saúde para fazer muitas vezes até 80 horas e três e quatro turnos por semana nos hospitais.
Carlos Cortes reagiu assim a declarações do ministro da Saúde, Manuel Pizarro, ao jornal Público, em que disse acreditar na "altíssima diferenciação dos médicos", nomeadamente dos seus "elevados padrões deontológicos", para manter as urgências gerais a funcionar, numa altura em que há cada vez mais serviços com limitações ou transitoriamente fechados.
Questionado à margem de uma audição no parlamento sobre as declarações do ministro, Carlos Cortes disse que "em primeiro lugar é preciso ter consciência de que os médicos têm um horário de trabalho de 40 horas" e que, além desse horário, são obrigados a fazer mais 150 horas de urgência por ano.
"Aquilo que se está a pedir neste momento aos médicos é que, além dessas 40 horas mais as 150 horas, possam vir a trabalhar, como acontece atualmente, infelizmente, 50, 60 ou até 80 horas por semana, e eu questiono onde é que está a questão precisamente deontológica e ética. Se é de dar segurança aos profissionais para poderem trabalhar adequadamente, em boas condições de saúde, a quem trabalha 80 horas por semana a fazer muitas vezes dois, três e quatro turnos de urgência, se calhar não oferecem essas condições", disse o bastonário da OM.
"Quando o ministro da Saúde, o Governo ou membros do Governo falam destas questões, eu acho que era importante saber exatamente o que é o código deontológico, o que é a segurança dos doentes e o que é a segurança dos médicos, e talvez não apelassem a esse sentido deontológico", adiantou.
Carlos Cortes observou que um dos pontos do código deontológico refere que o ministro da Saúde, que neste caso é médico, tem que criar todas as condições para os médicos poderem trabalhar "de forma adequada e com segurança com os seus doentes. Isso está inscrito no código deontológico".
Na véspera de se reunir a seu pedido com o ministro da Saúde, o bastonário defendeu ainda que antes de se falar em "grandes reformas na saúde", como "as pretensas novas Unidades Locais de Saúde (ULS) ou de outros aspetos que têm sido referidos", seria importante olhar para o "verdadeiro problema do Serviço Nacional de Saúde, que, é consensual de forma transversal, são os recursos humanos".
A Ordem dos Médicos pediu no domingo uma reunião urgente ao ministro da Saúde para encontrar soluções imediatas para a "grave situação que o Serviço Nacional de Saúde (SNS)" atravessa.
Em comunicado, a OM alertava que a situação vivida em vários hospitais de norte a sul do país é grave e que haverá doentes sem acesso a cuidados de saúde, sem que o Ministério da Saúde ou a Direção Executiva do SNS apresentem soluções concretas.
O bastonário apelou ainda ao bom senso do Governo para resolver a crise de falta de médicos em hospitais como o de Santarém, onde estima que a situação vá agravar-se em novembro.
"Não há alternativa a que o Governo tome consciência deste problema, tenha sensibilidade para perceber exatamente o que está a acontecer, as dificuldades do Serviço Nacional de Saúde (SNS)", afirmou Carlos Cortes no final de uma reunião com médicos do hospital de Santarém, na qual tomou conhecimento de "um conjunto de dificuldades" que irá transmitir na quarta-feira ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro.
À margem da reunião Carlos Cortes afirmou que irá apresentar a Manuel Pizarro "propostas", que não quis revelar, defendendo que terá que haver por parte do Governo "bom senso para aplicar as decisões que se esperam para o SNS" e que "fundamentalmente tem a ver com recursos humanos".
No Hospital Distrital de Santarém (HDS) desde segunda-feira que estão suspensas as cirurgias adicionais por parte de vários médicos da especialidade que recusam fazer mais do que as 150 horas extraordinárias previstas por lei.
Depois de ouvir dos clínicos as "dificuldades [existentes] na esmagadora maioria das especialidades", e sobretudo "nas escalas de Medicina Interna e de Cirurgia", Carlos Cortes, manifestou preocupação de que a situação venha a agravar-se no próximo mês de novembro.
"Vão existir dificuldades na escala de pediatria e de ginecologia e obstetrícia, porque obviamente os médicos não aguentam esta pressão, não aguentam horários de trabalho absolutamente incomportáveis, em que muitos colegas já fizeram 600, 800 horas extraordinárias".
Vincando que "a situação no Hospital de Santarém é muito difícil", o bastonário da OM adiantou que na quarta-feira irá transmitir ao ministro da Saúde a preocupação com a lista de espera cirúrgica desta unidade, "que tem uma média de mais de 400 dias, em que os doentes mais antigos estão à espera de cirurgias há mais de dois anos, e, inexplicavelmente está a ser diminuído o trabalho adicional dessas cirurgias".
Lamentando o "impacto negativo sobre as pessoas" e o "desrespeito completo pelos doentes" o bastonário criticou a postura do Conselho de Administração do HDS que considerou "inadmissível".
Além da situação do HDS Carlos Cortes, pretende fazer na quarta-feira, Manuel Pizarro, "um ponto de situação sobre as dificuldades de outros hospitais do país e alertar o ministério para a necessidade de atrair mais médicos para o SNS, dar-lhe melhores condições de trabalho e valorizar a carreira dos médicos".
Alegando haver neste hospital "muitos exemplos de equipas de urgência que trabalham abaixo dos limites de segurança" Carlos Cortes sublinhou que quer neste quer em outros hospitais do país "é preciso uma intervenção de fundo" no SNS e que a "verdadeira prioridade" será o Governo "perceber que o maior valor do SNS são os seus profissionais".