A chama alaranjada que tosta a madeira de carvalho francês está bem acesa, mas de vez em quando o olho especialista de António Vicente repara que é preciso alimentar o fogo com mais achas. Se não o fizer no momento certo, durante os 50 minutos em que o barril acabado de montar lhe chega às mãos, irá pôr em causa um processo que levou um tempo de cinco vidas como a sua. Ou seja, o barril que está a fazer conta pelo menos com 200 anos de história, data em que o carvalho foi plantado num bosque de França..Não é que o peso dos anos enerve o mestre tanoeiro, pois muitos milhares de barris já lhe passaram pelas mãos desde que foi trabalhar para a Tanoaria J.M. Gonçalves, uma empresa quase centenária, onde nas últimas duas décadas da sua vida aperfeiçoou a técnica de fazer a embalagem em que os grandes vinhos do mundo irão estagiar e mostrar a verdade do seu gosto..Apesar da grande evolução tecnológica que as instalações mostram, o mestre continua a usar as mãos sem luvas para manter a chama no nível que é preciso, de modo a que o barril fique perfeito e à altura do que é prometido aos compradores espalhados pelo planeta. De Palaçoulo podem viajar para a Austrália, para a Rússia ou para a América do Sul. Até mesmo para a China, para a Áustria ou para as caves mais famosas da vizinha Espanha. Mas o destino não lhe interessa quando o barril chega ao seu posto. Está sempre de olho no cronómetro que o ajuda a controlar o tempo da queima e não deixar que fogo a mais crie bolhas na madeira: "É preciso ter muito cuidado para não queimar de mais e obedecer ao pedido de cada cliente no que respeita à chaufra (queima em francês aportuguesado). Estou sempre de olho no relógio e a molhar a madeira.".Aos 41 anos, Vicente trabalha seis horas por dia numa espécie de inferno, onde a temperatura, se no inverno já é alta, no verão é insuportável para "os miúdos que vêm tentar esta profissão e raramente ficam". Está na tanoaria desde 1998, tendo percorrido os vários passos entre aprendiz e chefe da queima: "Deixei de estudar, fiz a tropa, tirei a carta de condução e vim para aqui. O meu grande prazer é tentar que cada barril fique sempre bem.".Noutra fase da produção está Judite, que recebe as peças de madeira com que se fabrica um barril. Está na profissão há duas décadas e já trabalhou em muitas das etapas da produção. Agora, prepara a madeira para as pipas na torneadora. É aqui que as aduelas são arredondadas e cortadas à medida dos barris de 225 litros que estão a ser feitos nesse dia. Diga-se que, após Judite executar a sua parte no processo, percebe-se melhor o que vai acontecer ao carvalho francês duplamente centenário que fora transformado em pequenas réguas pela serra numa fase anterior. Enquanto verifica o estado das madeiras, recorda que está na tanoaria "desde o tempo dos pais dos patrões" e de anteriores instalações..Do bosque francês à adega mundial .José Abílio Gonçalves, um dos seis irmãos que estão aos comandos da tanoaria desde o início deste século, conhece bem todo este processo que termina com o envio das barricas para todo o mundo em camiões TIR a partir do armazém da empresa. Formado em Enologia, logo avisa que o que aqui se faz também é um dos ramos daquela disciplina: "Falar da madeira e de castas é um assunto que não acaba." Mostra várias paletes de barris prontos para seguir viagem após terem sido gravadas a laser com a personalização do cliente e embaladas conforme o destino..O responsável pela tanoaria aponta para um lote de barricas enquanto explica que os Estados Unidos são o seu principal mercado: "Neste momento, já estamos a trabalhar para os vinhos brancos da Califórnia." Refere que as barricas ainda não são necessárias, mas como "os produtores americanos são muito organizados a encomenda é feita atempadamente." Esteve num dos principais paraísos vinícolas, Napa Valley, e diz: "Atualmente é o terceiro destino turístico nos EUA, com muitas adegas abertas a visitas e são bastante agressivos nas vendas." Compensa aos produtores daquele país, ou da África do Sul, por exemplo, comprar as pipas nesta tanoaria por causa dos custos? Sim, é a resposta: "Não é assim tão caro se tivermos em conta a qualidade, daí que sejam muitos os contentores carregados aqui e entregues à porta do cliente." É o caso da firma Gallo, uma das mais importantes famílias que produzem vinho em Napa e dos seus melhores clientes, ou de marcas como Quintessa, Castello de Amorosa ou Ferrari-Carano. Não esquecer um cliente mundialmente conhecido, o realizador de cinema Francis Ford Coppola, que também adquire uma parte das pipas para o vinho das suas propriedades californianas, conforme se pode ver no álbum de clientes. Não é por acaso que Copolla encomenda à família Gonçalves, mas porque a marca é reconhecida pelas mais importantes certificações mundiais devido aos métodos com que trabalha..Basta circular pelo parque da fábrica e observar a quantidade de pilhas de madeira para o fabrico dos barris. José Abílio Gonçalves faz uma visita guiada e mostra as "piscinas onde se elimina a parte agressiva do carvalho francês". Depois, a serração onde a madeira é cortada segundo o alinhamento das fendas e evitando as partes do centro e da periferia. "Nada se perde, as tábuas mais curtas são para os tampos", avisa. A seguir, voltam para o parque, onde permanecem por dois anos para secagem: "Pode secar-se artificialmente em três semanas, mas não é a nossa opção. Temos barricas, o caso do topo de gama, que ficam aqui três anos." Os troncos que se amontoam no parque são os que chegaram dos bosques franceses há menos tempo: "Foram cortados durante o período de dormência vegetativa e permitem-nos ter um stock para trabalhar no verão." A data dos troncos é percetível no corte, visíveis a olho nu: "Cada centímetro equivale a dez anos. São décadas ou séculos."