Barrigas de aluguer: cometer um crime para poder ser mãe

Em Portugal a lei não permite que uma mulher empreste o útero para que outra possa ser mãe. O DN conta a história de duas mulheres que foram a clínicas no estrangeiro

Maria, 30 anos, nasceu sem útero e espera há três anos que o Parlamento se mude a lei e legalize as barrigas de aluguer. Já fez de tudo para conseguir o impossível, até uma incrível viagem ao Chipre com uma amiga que "emprestou" o seu útero para que ela pudesse ser mãe. O filho que daí nascesse teria de ser adotado por Maria em Portugal. "Sentimo-nos marginalizadas, obrigadas a cometer um crime para sermos mães."

A lei portuguesa proíbe que uma mulher empreste o seu útero para gerar o filho de outra, que haja inseminação artificial ou outros tratamentos em mulheres sem problemas de fertilidade e fora de relações heterossexuais. Mas Maria queria ser mãe. "Pesquisei muito na internet. Uma amiga que trabalhou no Chipre sabia que lá era possível. Procuramos e encontrámos uma clínica muito conceituada. Lá é permitida a barriga de aluguer, desde que seja de forma altruísta. Vimos clínicas na Índia, na Geórgia - a barriga é de lá e custa entre 22 e 27 mil euros -, na Rússia. O problema seria depois o registo da criança", conta.

Para ser mãe Maria teria de fazer um percurso que vai além da imaginação. "Viríamos para Portugal onde o médico seguira a gravidez sem saber que aquele bebé era meu... Seria das duas. Não consigo separar as coisas. Sinto que ela também seria mãe desta criança. Seguiria a gravidez como se fosse o pai - por não estar a gerar - ao mesmo tempo que me sentiria um pouco mãe por poder acompanhar todo o processo. Depois quando o bebé nascesse seria registado como filho da nossa "barriga" e do meu marido, como se se tivesse tratado de uma relação fora do casamento. Mais tarde ela prescindia dos direitos parentais a favor do meu marido e eu adotava o meu filho. O medo estaria sempre presente", conta.

A viagem que os mudou

A decisão de ir ao Chipre foi tomada depois de no Parlamento ter caído por terra o projeto que permitia a gestação de substituição, ou seja a barriga de aluguer, uma alteração na lei em banho-maria há três anos. Maria, o marido, a amiga e o marido desta fizeram as malas, em Agosto passado, e partiram para uma viagem que os mudaria a todos. Consigo levou esperança e dois óvulos que conseguiu retirar de duas tentativas. Uma na Maternidade Alfredo da Costa e outra numa clínica privada. "Estou numa situação de pré-menopausa", diz.

Através da clínica, já no Chipre, recorreu também a óvulos doados de um banco europeu. Foram todos fecundados com esperma do marido. No final, três embriões criopreservados e implantados. "Não fomos bem sucedidos... Tenho imenso carinho por ela ter tentado este sonho connosco. Foi muito importante. Durante esta fase estou a mentalizar-me que fiz tudo o que estava ao meu alcance. É difícil gerir todas estas emoções."

Maria descobriu aos 16 anos que não tinha útero. Um choque para todos, uma revolta com o mundo, um aceitar-se que a tornou na mulher que é hoje. Aos 22 foi aos Estados Unidos falar com uma equipa de transplante de úteros. A burocracia, o risco de vida assustou-a. Há dois anos uma amiga de longa data ofereceu-se para ser a sua barriga. "Nunca lhe pediria. Foi ela que mostrou vontade de ajudar. Foi muito emotivo. Estávamos só as duas e choramos como duas madalenas. Tive imenso medo porque não a queria fazer sofrer. O meu marido estava de pé atrás. demoramos dois anos a tomar a decisão." Maria agradece-lhe do coração a oportunidade que recebeu. Agora está a reconstruir-se uma viagem emocional e de um investimento financeiro de 15 mil euros.

Uma esperança avassaladora

O projeto pelo qual Maria e Vanessa tanto esperam nasceu de dois projetos-lei apresentados em 2012, do PS e PSD, que baixaram à Comissão de Saúde. Foi criado um grupo de trabalho que durante mais de um ano ouviu médicos e associações. Nasceu um projeto final que tudo indicava que seria aprovado. Não foi. O PSD, à beira do fim da legislatura, desistiu de o levar a votação. Já com o novo governo o processo voltou ao início. Quatro propostas para alargar os tratamentos de fertilidade a todas as mulheres e um deles, do Bloco de Esquerda, com a legalização das barrigas de aluguer.

Tal como Maria, Vanessa está refém de uma limitação que não é culpa de ninguém e de uma vontade que não é a sua. "Fiquei sem o útero aos 14 anos por causa de uma mal formação. Desde miúda que sonho em ser mãe. Sempre fingi que estava tudo bem e chegamos a um ponto que, com a vergonha, parece que nos conformamos. Já tinha decretado que este era um assunto deitado para trás das costas. Quando surgiu a ideia de que alguém podia gerar por mim, foi o reviver de um sonho, foi voltar a ver a vida de uma forma um pouco mais feliz", conta Vanessa, 33 anos.

Casada há um ano, depois de um namoro à distância, Vanessa contou sempre com o apoio do marido. Foi ele que lhe disse que gostava de tentar. Foi ele que a fez acreditar outra vez. Foram ao Brasil, onde Vanessa nasceu e tem família. "Fiquei maravilhada, mas havia a questão financeira porque são tratamentos caros e não sabíamos se daria certo. Uma das minhas irmãs seria a nossa barriga. No Brasil é permitido desde que seja família direta. Ela fez todos os exames para ter a certeza que podia aceitar a transferência de embriões." A gravidez teria de ser acompanhada à distância, com um oceano no meio. Quando o bebé nascesse teria de ser registado com o nome dos pais biológicos: o pai seria o marido de Vanessa, a mãe a irmã. "Depois teríamos de arranjar um advogado para fazer a mudança de nome da mãe. Mas não teria importância, seria a minha vitória."

Vanessa viajou duas vezes, mas da segunda não contou a ninguém. A primeira em dezembro de 2014, onde tentou recolher óvulos do único ovário que tem sem sucesso por duas vezes, e uma segunda em abril do ano passado. "Contactei com a clínica onde estamos a ser seguidos e fui apenas por três dias, só para o processo de retirada de óvulos", recorda. Também não conseguiu. "Investimos 25 mil euros. Só mesmo por um sonho. Há quem sonhe ter um Ferrari, o meu é ser mãe", diz.

Um sonho guardado na "caixinha"

Mas não vai desistir. Não enquanto não existir uma razão clínica que lhe diga que é impossível ser mãe. " Se tivesse mais dinheiro tentaria de novo, faria os tratamentos mais vezes. Assim tenho de guardar o meu sonho numa caixinha e esperar mais um pouco." Se a lei mudasse em Portugal tornaria tudo mais fácil para Vanessa e o marido. "A minha irmã vinha para cá durante a gravidez. espero com ansiedade o que vai acontecer. Tenho medo que possa demorar por causa da minha idade... Quanto mais tempo passa, menos possibilidade temos. É triste quando são outros a tomar decisões por nós..."

Lamenta por ela e pelas outras mulheres que estão presas neste impasse. "Eu pelo menos ainda tenho esta oportunidade, mas há quem não tenha, quem não consiga ir ao estrangeiro tentar. É triste, deixa-me sem palavras. Tentar ser mãe é algo mais forte do que eu. Mas tudo isto é uma grande pressão psicológica e emocional. Se quem decide passasse por uma coisa destas, já teria tomado uma decisão." A tristeza, diz, só não é maior porque tem dois enteados, que são dois filhos do coração.

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