O ano de 2022 vai ficar marcado como aquele em que se registou o maior número de casos de Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST) desde 2009. Ou melhor, desde que há vigilância e notificação obrigatória destas doenças nos países da União Europeia e do Espaço Económico Europeu (UE/EEE). Isto mesmo revela o relatório do Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC, sigla inglesa) divulgado na última semana, que dá conta de um aumento muito significativo nos casos de gonorreia, sífilis, clamídia e de linfogranuloma venéreo (LGV). O ECDC já pediu aos países que tomem “medidas urgentes imediatas” para prevenirem novas transmissões e atenuar o impacto destas doenças na saúde pública. O organismo europeu defende “maior sensibilização” para a transmissão das IST, mais prevenção e mais acesso a testes de rastreio. .Portugal é um dos países em que as IST têm vindo a aumentar nos últimos tempos. Por exemplo, em relação ao registo da gonorreia é um dos países onde é considerado ter havido um “crescimento superior a 50%”, a par de Espanha, Bulgária, Chipre, Estónia, Finlândia, Irlanda, Itália, Letónia, Liechtenstein, Noruega e Polónia (ver caixa)..Após a divulgação destes dados, a nova diretora-geral da Saúde, Rita Sá Machado, manifestou preocupação e assumiu querer “implementar medidas que permitam travar os contágios”, referiu ao Jornal de Notícias, na sexta-feira, acrescentando que estava a ser equacionada a “quebra do anonimato” nestas doenças. “Neste momento, temos um problema com a anonimização dos doentes com infeções sexualmente transmissíveis. É um tema sensível, mas temos de evoluir e começar por colocar as questões em cima da mesa”, afirmou. Segundo explica o jornal, o objetivo desta medida é fazer com que “a identificação destes doentes possa ser partilhada com os médicos de saúde pública, para que estes façam a investigação epidemiológica, tal como noutras doenças contagiosas e de notificação obrigatória para travar contágios”..Mas será possível quebrar o anonimato em dados clínicos de doentes? O DN quis saber a opinião do Bastonário dos Médicos, Carlos Cortes, e de um jurista especialista em ética, André Dias Pereira, que é também professor na Universidade de Coimbra e vice-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), e ambos concordam que tal não pode acontecer. “Se vier a ser equacionado é um tema para ser analisado no âmbito do CNECV”, admite o jurista. .Ao DN, André Dias Pereira explica que para se quebrar o anonimato de dados clínicos é preciso fundamentar-se essa decisão com base em três critérios que são: “O ser necessário, adequado e proporcional”. “O ser adequado identificar o nome da pessoa no processo clínico, na medida em que os médicos que têm contacto com este doente possam ficar a saber o seu historial, até posso considerar que o seja. Agora, que seja absolutamente necessário tenho muitas dúvidas, não consigo perceber o que pode acrescentar”, argumenta. Aliás, sublinha, na sua opinião “esta questão morre logo com este primeiro critério, o ser necessário, mas ainda há o terceiro, que é o ser proporcional: será que o dano que causa compensa esta solução? Penso que não, porque muito dificilmente esta medida será proporcional”..“Pode haver aumento de casos, mas notificação também aumentou”.O bastonário dos médicos faz questão de alertar, em primeiro lugar, para o aumento do número de casos divulgado pelo ECDC. “Pode ter havido um aumento de casos, mas a verdade é que a notificação destas doenças também aumentou”. E explica: “Os países passaram a ter um sistema informático em que a notificação é automática. Assim que a doença é diagnosticada laboratorialmente é registada no sistema, o que também ajuda a ter uma imagem mais real da situação do que aquela que se tinha há uns anos”. Quanto à questão da “anonimização ser um problema”, Carlos Cortes prefere dizer que o termo foi mal escolhido, e que, em vez de se falar da “quebra do anonimato” dos doentes, deve falar-se em estender a partilha dos dados destes doentes aos médicos de Saúde Pública, tal como acontece com outros médicos especialistas que acabam por os tratar, e que também têm acesso a essa informação, além do médico de família..E isto porque, sustenta, “todos os dados em Saúde são confidenciais, não pode haver quebra de anonimato. O que acontece é que o termo não é o adequado, porque o que se pretende aqui, segundo percebo, não é a quebra do anonimato para o exterior nem a quebra do sigilo profissional. É a partilha de informação com a Saúde Pública e, neste aspeto, concordo que se faça”. O bastonário destaca ainda: “Muitas vezes esquecemo-nos da Saúde Pública e só nos lembramos dela quando aparece uma covid-19 ou dados como os das IST. E, neste caso, os médicos de Saúde Pública devem ter acesso aos dados dos doentes para poderem fazer a sua intervenção na comunidade. É um processo normal e natural, tal como qualquer outro médico especialista ter acesso aos dados dos doentes para os tratar. Para definirem estratégias de prevenção ou para poderem travar a disseminação deste tipo de doenças, os médicos de Saúde Pública devem ter acesso à informação necessária. Eles tratam a saúde da comunidade”..E desta forma, Carlos Cortes considera não haver quebra do anonimato nem do sigilo médico. “A partilha de dados é aceitável no âmbito da confidencialidade e da relação médico doente, que se mantém completamente protegida e segura”, reforça ao DN. “O falar de quebra de anonimato pode dar a impressão à opinião pública de que se vai saber quem são os doentes que têm essas doenças, quando não é verdade. Mas também devo dizer que, do ponto de vista médico, não pode haver nenhum estigma em relação às IST. São doenças como quaisquer outras, que se mantêm no segredo médico, que é inviolável pelo código deontológico ao qual todos os médicos estão abrangidos”. .O DN tentou o contacto com a Direção-geral da Saúde para saber se, de facto, o problema estava no termo “anonimato” e o que se estava a pensar fazer mais para travar estas doenças e como. Mas até ao final da tarde de ontem não obteve resposta. Ao JN, a diretora-geral disse que a fazer-se a discussão do “anonimato” nesta terão de estar presentes a Comissão Nacional de Proteção de Dados e a sociedade civil..Perdeu-se o medo da sida e faltam campanhas de sensibilização e prevenção.Para o bastonário dos médicos e para o vice-presidente do CNECV o que está a fazer falta são “campanhas de sensibilização e de prevenção para todas as idades”. Carlos Cortes diz mesmo que “passou de moda falar das doenças sexualmente transmissíveis, mas é preciso voltar a abordar o tema. O preservativo continua a ser a arma mais importante nesta matéria, sobretudo num mundo cada vez mais global onde há comportamentos de risco”. Portanto, “as campanhas nunca são escassas e são sempre bem vindas”..O professor da Universidade de Coimbra é também da opinião que a aposta no combate a estas doenças deve focar-se “nas campanhas de educação cívica”. “Graças à medicina perdeu-se o medo da sida, que já não é mortal, e deixou-se de falar de educação sexual como se fazia há uns 15 ou 20 anos. E, agora, há uma total ignorância sobre a sífilis, por exemplo, que é uma pandemia - basta olhar para algumas zonas do mundo, como o Brasil.”.Para o jurista, “o caminho na luta contra as IST deve ser levado a cabo pela DGS, devendo voltar-se a falar no preservativo e nas relações sexuais seguras. É assim que devemos procurar soluções para a crescente multiplicação destas doenças e não entrarmos em quebras de sigilo ou numa sociedade com este tipo de vigilância”. André Dias Pereira relembra ao DN a mudança de hábitos e de comportamentos com que o mundo teve de lidar há bem pouco tempo devido à covid-19, mas conclui: “Parece que não aprendemos nada”. “Este janeiro morreram muitas pessoas com Gripe A, muitos queixaram-se das urgências, quando o importante era ter-se mantido os hábitos de proteção para que não fossem contagiadas. É isto que não podemos esquecer”, conclui..Os Números das IST.As infeções sexualmente transmissíveis dispararam na Europa. Portugal foi um dos países em que este aumento foi significativo e atingiu sobretudo jovens dos 20 aos 24 anos, revela o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC). Europa Nos países da União Europeia/Espaço Económico Europeu (UE/EEE) que reportaram casos ao ECDC foram registados, em 2022, 70 881 casos de gonorreia, com uma taxa bruta de notificação de 17,9 casos por 100 mil habitantes, um aumento de 48% comparando com 2021 e de 59% face a 2018. Segundo o ECDC, “o ano de 2022 marca o maior número de casos de gonorreia na UE/EEE na última década e desde o início da vigilância europeia de IST [Infeções Sexualmente Transmissíveis] em 2009”. Em 2022 também foram notificados na UE/EEE 216 508 casos de clamídia, uma taxa bruta de notificação de 88 casos por 100 mil habitantes, mais 16% do que a taxa de 2021. O mesmo aconteceu com os casos de linfogranuloma venéreo (LGV) que também aumentaram. Em Portugal, subiram de 55 casos em 2021 para 63 em 2022. Em relação à sifílis congénita (causada pela transmissão da mãe para o feto) também aumentou, embora em Portugal tenha caído de 15 casos em 2021 para 14 em 2022. Países De acordo com o relatório do ECDC, da lista de países com crescimentos superiores a 50% estão Portugal, Espanha, Bulgária, Chipre, Estónia, Finlândia, Irlanda, Itália, Letónia, Liechtenstein, Noruega e Polónia. Em relação à sífilis, Malta foi o país a registar a taxa mais elevada (24,4 casos por 100 mil habitantes), depois o Luxemburgo (23,4), Irlanda (16,6), Espanha (16,6), Liechtenstein (15,3) e Portugal (14,8) A Croácia, Estónia, Letónia, Roménia e Eslovénia tiveram menos de três casos por 100 mil habitantes. Portugal A notificação de casos de gonorreia aumentou de 1252, em 2021, para 2253, em 2022. A notificação de casos de clamídia subiu de 914 casos em 2021 para 1501, em 2022. A sífilis também aumentou de 1144 casos em 2021 para 1534 em 2022. Em relação ao nosso país, o ECDC alerta que a maioria das notificações de clamídia envolvem mulheres com idades entre os 20 e os 24 anos, entre 2018 e 2022. Mas o maior aumento de transmissão deu-se entre homens que fazem sexo com homens, tendo o número de casos notificados aumentado em 72%.