“As dificuldades no SNS podem fazer-se sentir negativamente nos alunos de Medicina”
A primeira aula no edifício construído de raiz para o ensino da Medicina na faculdade da Universidade de Lisboa foi dada a 4 de novembro do ano letivo de 1953-54, mas o aniversário é assinalado na data em que esta foi declarada formalmente como Faculdade de Medicina de Lisboa, a 22 de abril do ano de 1911. As sete décadas que amanhã serão celebradas representam a sua integração no Hospital Universitário de Santa Maria. E passado este tempo, os desafios continuam a ser muitos, já que prepara uma “grande reforma”, aquela que o diretor João Eurico da Fonseca considera que irá “motivar” ainda mais os alunos, permitindo-lhes iniciar mais cedo o contacto com a prática clínica, com o doente e com a investigação. A missão, essa, é a mesma: formação de excelência. “É preciso não esquecermos que estamos a formar os líderes da medicina da segunda metade deste século”. Aqui fica o sentir de quem está à frente da instituição.
Quais são hoje as maiores dificuldades d a FML, tendo em conta os constrangimentos no SNS?
A maior dificuldade de todas as faculdades de Medicina, e desta em particular, é a limitação do profissionalismo no ensino da Medicina. Ou seja, se compararmos as faculdades de Medicina com as outras faculdades da Universidade de Lisboa, que são 18, a maior parte destas tem professores a tempo completo, enquanto que as de medicina não. A maioria dos docentes está habitualmente em regime de voluntariado, a 10%, a 20% ou 30%. Só um pequeno corpo profissional, no nosso caso cerca de 70 professores, é que pertence estritamente à FML. E isto não permite a mesma capacidade organizativa que tem uma escola completamente profissional. Esta é a primeira limitação e é histórica. A outra tem a ver com o SNS e com a estrutura do ensino que assenta nas suas unidades. Portanto, quando o SNS está sob pressão e com constrangimentos, os alunos que circulam nos anos com prática clínica sentem isso, tal como quem é docente e faz atividade clínica ao mesmo tempo. Mas a isto acresce um outro facto que gera também pressão, que é o aumento do número de alunos nas faculdades de Medicina. Nós temos cerca de 2200 alunos, quase 400 por ano, e tivemos de arranjar uma estruturação mais criativa para manter a qualidade do ensino, fazendo com que alguns passassem a circular noutros hospitais, como no Beatriz Ângelo e no Fernando da Fonseca.
O ensino da medicina pode estar em causa pelos constrangimentos no SNS?
Não está em causa, mas tem de ser vigiado. E não está em causa porque há uma reação muito pró-ativa das faculdades e dos próprios alunos para se evitar que ocorram situações de má qualidade no ensino. Se os alunos chegam a um local com constrangimentos funcionais podem ter problemas no acesso a um ensino de qualidade. Há sempre este risco e devemos estar muitos atentos. E quando digo estarmos muito atentos, digo que tal tem de envolver o SNS, porque é o principal interessado na formação destes médicos; faculdades, que são as responsáveis por este ensino; e alunos, que entregam as suas vidas a estas instituições. Mas há um detalhe importante: é que se, por um lado, as dificuldades no SNS podem fazer-se sentir negativamente nos alunos, por outro as faculdades têm um efeito positivo no SNS, desafiando-o e estimulando os jovens médicos e todos os profissionais para um projeto de responsabilidade e de identidade, com preocupação com a Saúde de todos.
Falou nas dificuldades do SNS e de como estas podem afetar o ensino. Como diretor da FML o que diria aos novos governantes?
Em primeiro lugar, que é muito importante olhar para a nova organização das Unidades Locais de Saúde (ULS) que integram os hospitais universitários, porque estes têm realidades muito diferentes dos outros hospitais. Os universitários são preparados para abordar casos clínicos mais complexos e doenças raras, tendo doentes mais onerosos que os outros, quer pelo preço dos fármacos quer pelo tempo exigido aos médicos e aos outros profissionais. Portanto, do ponto de vista conceptual a ULS pode ser muito interessante, mas do ponto de vista prático pode criar grandes problemas aos hospitais universitários. O primeiro problema será financeiro, uma vez que o financiamento das ULS não está ligado à complexidade dos doentes, mas sim ao número de doentes. O que significa que os hospitais universitários estarão sempre em stress financeiro, porque têm de dar resposta a necessidades mais caras. E se o novo Ministério da Saúde não olhar de forma diferente para os hospitais âncora do SNS e para a sua relação com a academia será difícil que o progresso ocorra na medicina e no SNS em geral.
Espera que haja mudanças então...
É muito importante reavaliar o posicionamento dos hospitais universitários no conceito das ULS. É preciso diferenciá-los, se calhar como ULS universitárias ou manter estes hospitais um pouco à parte, embora em relação com outras ULS. Mas o conceito de ULS de integração absoluta pode ser complicado. Por isso, esperamos que a situação seja avaliada e que haja ajustes num futuro próximo.
A ministra está a chamar os parceiros. As escolas médicas querem ser recebidas?
As escolas médicas vão pedir para serem ouvidas, porque precisamos de saber se os ministérios da Saúde e da Educação estão conscientes dos problemas que temos. Por outro lado, para que fique claro que podemos trabalhar juntos para melhorar a Saúde e o ensino médico.
Ao fim de 70 anos, quais são os principais desafios que a FML enfrenta?
O primeiro desafio é a Educação porque é essa a nossa missão principal, a nível da formação pré-graduada dos novos médicos e dos novos nutricionistas, já que a FML tem também o curso de Nutrição. E a nossa grande preocupação é garantir sempre o melhor ensino possível. Neste momento, estamos a avaliar a implementação de uma reforma grande no curso de Medicina, nos anos pré-clínicos e no mestrado integrado. A grande marca dessa alteração é a tentativa de começar a envolver os alunos mais cedo no contacto clínico, já que o nosso sentir nos diz que este está a acontecer um pouco tardiamente. O ano de transição para os alunos, em que estes começam a aprender a ver doentes, é o terceiro ano, e nós queremos que isso aconteça logo no primeiro e de forma mais simplificada. Queremos que o ensino da anatomia e da fisiologia se faça em ligação com o que é a observação normal de um ser humano, quase como uma extensão do gesto do médico.
Para quando essa reforma? É já para os próximos anos letivos?
A nossa expectativa é que esta reforma possa entrar em vigor dentro de dois anos. Além do contacto clínico, há ainda o desafio no ensino pós- graduado, em que o objetivo é tornar esta formação mais útil à comunidade, percebendo melhor quais são as suas necessidades para que a formação seja pensada e feita de forma a responder a essas e não de acordo com o modelo contrário, em que a formação é feita de acordo com as áreas fortes da faculdade sem ter em conta as necessidades da comunidade. Na área da investigação temos um grande desafio. A faculdade é parte integrante do Instituto de Medicina Molecular (iMM), que está dentro do nosso campus, e que agora se está a fundir com o Instituto Gulbenkian de Ciência. Estamos num momento de transição, mas temos de nos organizar da melhor forma para que este novo instituto de ciência seja uma mais valia para o campus de investigação e para a prática médica em Portugal.
Esta reforma integra um outro campus virado para a prática clínica nos cuidados primários, certo?
Sim. É o Campus de Medicina de Lisboa, que funcionará no antigo Hospital do Barro, em Torres Vedras, e onde vamos oferecer aos alunos um ensino mais integrado com os cuidados de saúde primários. Este também é um desafio importante, que vai contribuir para o ensino e para a investigação de forma diferente. Por outro lado, estamos a promover com a Universidade de Harvard a criação de um centro de medicina de catástrofe e humanitária.
Costuma dizer-se que o estudante de Medicina está sempre motivado. O que é preciso fazer para se manter este entusiasmo?
Penso que é fundamental dar liberdade ao aluno de Medicina. É um aluno que precisa da componente humana e esta pode e deve ser reforçada, porque quando nas faculdades os alunos são colocados em contacto com o tal banho de humanidade, que a maioria dos outros alunos não tem, percebe-se que este é um elemento motivador. É aqui que os alunos começam a perceber o que é ser médico. É preciso estimular a sua capacidade de intervir e de interagir com a sociedade, de ser capaz de quebrar barreiras no contacto humano e ir para a frente com projetos. O aluno começa motivadíssimo porque entrou em Medicina, mas depois tem um choque de realidade, percebe que é preciso muito mais para chegar ao fim, e o contacto progressivo com o doente pode ser automotivador.
E o que é preciso para que os jovens médicos fiquem no SNS e no país?
Esse é um segundo desafio, mantê-los motivados após o curso, para que continuem no SNS e em Portugal. Mas aqui voltamos à questão inicial, que é a do relacionamento entre os alunos e as dificuldades atuais no SNS. E, aqui, é preciso haver uma identificação forte entre as faculdades de Medicina e os hospitais a que estão associadas para que seja possível permitir aos jovens médicos trabalharem em ambientes multidisciplinares, associando a formação contínua e a investigação. Este é, aliás, o fator diferenciador do SNS face a outras realidades nacionais, como o setor privado. É preciso promover um ‘salário emocional’ para os jovens médicos para que estes não deixem o SNS logo após a formação. Para isto, é preciso atraí-los para um ambiente de formação complementar que tem de ser melhorado. Se tal não for feito, será crítico para o progresso da Medicina em geral e para o futuro do SNS.
Por fim, quais são os desafios para a formação académica e para a Medicina na era da Inteligência Artificial?
Não nos podemos esquecer que estamos a formar os líderes da Medicina da segunda metade deste século, portanto temos de lhes dar as bases do que é a Medicina e o raciocínio médico, que continuarão a ser, seguramente, valores fundamentais do futuro para que um médico execute a sua profissão de forma correta. Falo da empatia e do respeito pelos outros, mas também da capacidade de entendimento destas componentes associadas às novas tecnologias. Um aluno de Medicina tem de começar a entender qual o papel da IA no futuro. O que sabemos até agora é que ano após ano a IA tem sido introduzida em todas as áreas de atividades. E se a Medicina não tomar os passos certos pode ser surpreendida de forma errada. Portanto, os alunos têm de saber o que é a IA, que tipo de algoritmos são feitos para dar resposta a certas situações. Mas têm de perceber, sobretudo, qualquer que venha a ser o uso da IA, que esta estará sempre dependente de um responsável humano, que no caso da Medicina é um médico.