"As boas intenções não chegam para resolver a falta de recursos no SNS"

Joâo Varandas Fernandes é médico especialista em ortopedia e traumatologia no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, assessor da direção clínica e diretor do Centro de Responsabilidade Integrada de Trauma, um novo instrumento de gestão dos hospitais, mas já foi diretor do Serviço de Urgência de São José. Tem obra publicada sobre a gestão e o futuro do SNS e diz que "a situação gravíssima que se vive" era esperada, argumentando que não é uma comissão de acompanhamento que vai resolver o problema da falta de médicos no SNS. "Se há unanimidade em todas as correntes políticas sobre a existência do SNS, porque não se faz a reforma de que ele necessita?", questiona.

Há um ano referiu, numa entrevista ao DN, que a pandemia era uma ótima oportunidade para se fazer mudanças no SNS. A falta de recursos humanos para assegurar as escalas das Urgências é prova de que nada está a ser feito nesse sentido?
O problema gravíssimo que vivemos agora era já um colapso anunciado no Serviço Nacional de Saúde (SNS). É um sinal da degradação existente. Repare, no final de 2021 havia 1,2 milhões de utentes sem médico de família e este número tem vindo a aumentar. Ou seja, tem havido um agravamento da situação e um distanciamento cada vez maior da trajetória de objetivos anunciados e prometidos pelo governo da "geringonça" e já pelo atual governo, que era dar cobertura plena em medicina familiar à população. Isto revela falta de planeamento e de investimento, quer em meios profissionais quer em meios técnicos. E, na minha opinião, esta falha na cobertura de médicos de família faz com que Portugal seja o país da OCDE com mais episódios de urgência per capita, resultando daqui também os atrasos na marcação de consultas hospitalares - neste ano houve um aumento nos pedidos de referenciação para primeiras consultas -, de cirurgias e, obviamente, num aumento das listas de espera. O governo da "geringonça" e o atual governo prometeram investimentos nos recursos humanos e a correção da remuneração dos profissionais, mas ainda nada aconteceu.

"O SNS é um pilar que temos de preservar, mas não como era há 40 anos. Temos de o reformar e adaptar à modernidade. Enquanto isto não acontecer, não conseguiremos sair deste problema."

Os casos relatados nas últimas semanas, Urgências de vários hospitais que encerraram por falta de médicos nas escalas, reportavam sobretudo à especialidade de ginecologia-obstetrícia, mas o problema é estrutural. O que tem falhado na sua resolução ? Falta de planeamento e de investimento ou também falta de vontade política?
Têm falhado três coisas: gestão, planeamento e investimento. Mas tenho de dizer aqui uma coisa: enquanto não se conseguir colocar a funcionar em colaboração o setor público com os setores privado e social - sem que o SNS perca a sua génese, porque é um pilar importante da democracia em Portugal e do nosso sistema social, juntamente com a educação -, não conseguiremos mudar nada. O SNS é um pilar que temos de preservar, mas não o podemos preservar como há 40 anos. Temos de o preservar reformando-o e adaptando-o à modernidade. Enquanto isto não acontecer, não conseguiremos sair deste problema. Mas também não conseguiremos sair deste problema se não houver um pacto para a reorientação das Urgências.

Quando fala em pacto para a reorientação das Urgências, o que quer dizer especificamente?
Quando não há recursos humanos suficientes numa determinada Urgência hospitalar, de forma a contemplar as normas deontológicas, de qualidade de cuidados e de segurança, obviamente que estas têm de fechar. Mas se houvesse um pacto de reorientação das Urgências, não seria preciso criarem-se comissões de acompanhamento para se resolver a situação. As administrações regionais de saúde têm a competência de orientar e gerir os hospitais da sua região. Não sei porque não o fazem. Até pode haver boas intenções na criação de mais uma comissão, como foi criada agora para a área da ginecologia-obstetrícia, mas, na minha opinião, esta solução não vem trazer nada de novo.

E o pacto para as Urgências...
Se houvesse um pacto para as Urgências, sempre que um serviço de uma especialidade tivesse de encerrar e os casos que aparecessem fossem reorientados para outro hospital, este teria de ter os recursos humanos necessários para atender todos os episódios, porque sabemos que haveria maior afluência de doentes. Ou seja, uma reorientação das Urgências tem de ser acompanhada de recursos humanos. E sem um pacto para as Urgências isto não é feito.

"As ARS têm a competência de orientar e gerir os hospitais da sua região. Não sei porque não o fazem. Criar uma comissão de acompanhamento para resolver a situação não vem trazer nada de novo."

Quer explicar melhor?
Quando se encerra uma Urgência, os poucos recursos que existem neste serviço ficam lá, enquanto os doentes são encaminhados para outro hospital, que não é reforçado nos recursos humanos e em pouco tempo acaba por ficar sobrecarregado e com o mesmo problema. Portanto, quando há o encerramento de uma Urgência, os recursos que lá estão devem reforçar a outra unidade. Esta medida não é tomada. E as boas intenções não chegam para resolver os problemas do SNS.

O que está a falhar?
Há uma desorientação total nesta área. O governo continua a apagar fogos sem qualquer planeamento. A situação atual do SNS não é uma surpresa para quem trabalha nele ou para quem a ele recorre. A situação era esperada por todas as condicionantes que já referi: falta de planeamento e de investimento em profissionais e em equipamentos, deficiente cobertura dos cuidados primários e dos cuidados paliativos à população, falta de articulação entre os setores público, privado e social e, acima de tudo, por não ter havido uma reforma profunda na remuneração dos profissionais do SNS, que tem de ser feita obrigatoriamente.

"O aumento da hora extra só vai provocar o inevitável aumento do preço cobrado por essas empresas, porque há um mercado de prestação de serviços médicos que gere os valores pagos por especialidade e região do país".

Tudo indica que será aumentado o preço da hora extraordinária...
Mas não é aumentando o preço da hora extraordinária que se resolve a situação. E os hospitais já estão a sentir as consequências dos aumentos definidos pelas empresas de outsourcing, com pagamentos em atraso e acumulação da dívida. O aumento da hora extra só vai provocar o inevitável aumento do preço cobrado por essas empresas, porque há um mercado de prestação de serviços médicos que gere os valores pagos por especialidade e região do país. Portanto, aumentar o preço da hora extraordinária não resolverá o problema. Não irá suprir a escassez de recursos humanos em algumas especialidades ou em todo o SNS. A falta de recursos humanos vai manter-se, quer nas Urgências quer nos serviços de internamento e até nas Urgências internas, sobre as quais não estamos a falar mas para as quais são precisos médicos para as fazer.

Este mercado de serviços médicos faz sentido no SNS?
É o que existe neste momento. E não é de um momento para o outro que o SNS poderá deixar de usar estes serviços, porque senão o desespero e o colapso do sistema seriam ainda maiores. Deixar de usar estes serviços terá de ser feito de forma progressiva. Mas temos outro problema gravíssimo na saúde que é: todos estamos de acordo em que o SNS é um pilar do Estado social, mas o SNS não pode estar refém das amarras ideológicas. E em Portugal há uma amarra ideológica que nos tem prendido a algumas situações, fazendo com que avancemos e recuemos na mudança do SNS.

Que amarras ideológicas?
Avançou-se com as parcerias público-privadas (PPP), e estou à vontade para falar porque pertenci à primeira PPP no Hospital de Cascais. As PPP vieram trazer serviços assistenciais que nunca tinham sido dados a algumas populações, com hospitais novos em Braga, Cascais, Loures e Vila Franca de Xira e com uma poupança para o Estado da ordem dos 200 milhões de euros. As PPP eram auditadas com regularidade e tinham de responder perante as ARS e outras entidades de saúde sobre os parâmetros de qualidade que tinham contratualizado com o Estado. Eram contratos de 10 anos negociáveis, mas, se estavam a funcionar, porque carga de água se acabou com as PPP? Só porque a esquerda em Portugal exige que a parte privada não entre nas parcerias? Se isto não é decidir por amarra ideológica, o que é então?

Não foi pela avaliação feita aos cuidados prestados pelas PPP?
Não. Foi uma opção ideológica. Não tenho de a comentar, mas a verdade é que isto não resultou no desenvolvimento do sistema de saúde em Portugal. Estávamos a caminhar para um sistema global e esta decisão interrompeu esse caminho e fez-nos retroceder alguns anos.

"Não podemos ganhar todos o mesmo, quer se faça bem ou mal ou quer se faça ou não faça".

As PPP não sofriam do mesmo mal do SNS: falta de recursos?
Não tinham este problema. Havia uma maior flexibilidade na gestão, objetivos a cumprir e, obviamente, pagamentos diferentes, porque os profissionais não têm de ser todos remunerados de igual forma. A remuneração tem de ser pela competência, mérito, objetivos cumpridos e responsabilidade. Não podemos ganhar todos o mesmo, quer se faça bem ou mal ou quer se faça ou não faça. Tem de haver uma hierarquização, até para estimular os profissionais que trabalham no SNS.

O problema da falta de recursos no SNS é só por causa da remuneração ou é por algo mais do que isso?
Vai mais além. Tem também a ver com a falta de planeamento, de organização dos serviços e as condições de trabalho. Olhe, para dar um exemplo, em 2000 foi divulgado um documento pelas autoridades de saúde sobre as metas para a saúde e uma saúde para todos, em que já se referia que, no ano de 2020, o fosso entre as idades dos especialistas mais velhos e dos especialistas que surgiriam nas gerações imediatamente a seguir seria grande. Ou seja, existiria um fosso entre os médicos que estão à beira da reforma, com mais de 60 anos, e os especialistas da geração seguinte, que têm agora 40 e poucos anos. Como é que nada foi feito em termos de planeamento neste tempo? Por isso é que agora temos especialistas, e eu conheço alguns, como pediatras, que fazem Urgências de 24 horas dia sim, dia não, neonatologistas que fazem Urgências de 24 horas seis, sete e oito vezes por mês e colegas de outras especialidades que estão na mesma situação. Isto é esgotante.

O que poderia ter sido feito?
Poderia ter-se investido no SNS, nas universidades, formando-se mais médicos e abrindo maior número de vagas para as especialidades. Naquela altura, deveria ter havido planeamento e investimento nos recursos humanos do SNS, porque era o que a situação exigia, mas não houve.

"O trabalho no SNS é um trabalho de equipa, o médico não atua sozinho, atua numa equipa que demora anos a formar"..

Vinte anos depois, as escalas são asseguradas por prestadores de serviços. É uma solução de remendo? Pode colocar em risco a prestação de cuidados aos utentes?
É uma solução de remendo. É um penso rápido para uma ferida que não pára de crescer. E o penso rápido nunca é bom para feridas grandes. Farto-me de dizer isto: o trabalho no SNS é um trabalho de equipa, o médico não atua sozinho, atua numa equipa que demora anos a formar. Portanto, não é muito positivo que essas equipas sejam desmanteladas ou que tenham curto-circuitos provocados pela saída de pessoas ou pela entrada de novos elementos. As equipas têm o seu tempo de adaptação. A solução dos prestadores de serviço até pode ser uma ótima solução, mas não é a ideal. A ideal é haver médicos no SNS que consigam cumprir as metas e os objetivos para os quais foram contratados. Isto é o importante. E existem instrumentos de gestão que permitem funcionar assim.

Quais?
Os centros de responsabilidade integrada (CRI). Aliás, na minha opinião o SNS e as suas especialidades têm de evoluir para este novo mecanismo de gestão. Sou diretor do primeiro CRI, que formámos no CHULC há um ano. É um CRI de trauma, mas neste tempo já se formaram outros e ao todo já temos sete. No CRI de Trauma temos cinco especialistas e 23 camas e num ano conseguimos operar cerca de mil doentes. Isto significa que há formas diferentes de gerir.

Este tipo de gestão é o futuro?
Em minha opinião, é. Obviamente que tem de haver disponibilidade dos profissionais de saúde para aderirem a este sistema, porque a adesão é voluntária, mas considero que tem grandes virtudes. A primeira grande virtude é para o doente, que é o centro de tudo, não é um doente de uma especialidade, mas de várias, a abordagem é multidisciplinar e isso é muito importante. Depois tem objetivos a cumprir, que contratualiza com os conselhos de administração das unidades, como tempos médios para consultas e cirurgias, tempos para internamentos no pré-operatório e pós-operatório, número de infeções registadas, etc., tudo isto é contemplado nos contratos-programa entre os CRI e as administrações hospitalares. Por outro lado, já integra formas de premiar os profissionais pelo que fazem, há incentivos, embora esta situação ainda tenha de ser aperfeiçoada, mas no seu conjunto tudo é muito positivo.

Já não é desafiante para os médicos trabalharem no SNS?
O setor privado paga melhor e dá condições de trabalho. No SNS, a sobrecarga de trabalho e a pressão que se vive nos Serviços de Urgência é muito grande. Exige que o especialista faça mais do que o tempo normal definido e os médicos também gostam de operar doentes, de os seguir nas consultas, de discutir os casos em equipa, mas quando têm sobrecarga de trabalho nas Urgências isso não é possível e, obviamente, não os realiza. Por outro lado, todas as pessoas gostariam de poder conciliar a atividade profissional com a vida familiar, o que é cada vez mais difícil neste momento no SNS. E os médicos acabam por recorrer a outras soluções, como o privado.

Se não forem feitas mudanças no SNS, o que poderá acontecer?
Se nada for feito, o que acontecerá é o que ouvi o Sr. Presidente da República dizer, que é "a questão de fundo" continuar a "ser empurrada com a barriga para a frente". Esta expressão é o protótipo da ação dos governos socialistas e do da "geringonça", o que é mau. É confrangedor, porque há unanimidade nas correntes políticas em relação à existência do SNS. E se há, porque não é possível um pacto para a reforma de que necessita o SNS? Se não se faz é porque não há vontade política ou então há outros constrangimentos que desconheço em absoluto.

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