Aqui não há meninos ricos nem pobres. São todos iguais
Aline tem 4 anos e o que melhor conhecer são os corredores do IPO de Lisboa, onde brinca há já dois anos. Veio com a mãe, Jaquiline, da Guiné-Bissau e deixou lá o pai e os dois irmãos (Alberto de 6 anos e Elisa de 7) que não voltou a ver. Jaquiline ainda teve a oportunidade de ir a casa ver os filhos, mas não quis deixar Aline sozinha em Portugal. Agora, que a filha mais pequena atravessa uma fase complicada da doença - leucemia -, Jaquiline queria que o marido e os filhos viessem a Portugal, "para dar força". "Gostava que viessem cá ver a Aline, só ver e depois voltavam. Tentei pedir ajuda para pagar as viagens, mas não consegui", lamenta.
A falta de apoio aos doentes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) é um dos principais problemas que os serviços da pediatria enfrentam no dia a dia. "As embaixadas mandam os doentes e deixam-nos sem rede aqui. Não têm recursos e não cumprem os acordos", aponta a assistente social do serviço, Manuela Paiva. E vai ser isso mesmo que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, vai ouvir hoje quando percorrer os corredores da enfermaria do sétimo andar do IPO, depois de apresentar a agenda solidária, para a qual escreveu um texto e cujas verbas angariadas vão servir para comprar material e melhorar a pediatria.
Nestes dois anos, Jaquiline também só saiu do recinto "para tratar de papéis". No ano passado, ainda foi passear com os voluntários ao jardim da Gulbenkian, mas "este ano a Aline não podia ir". No lar do IPO, mãe e filha acabaram por "fazer amizades muito fortes, como uma segunda família". Ainda assim, Jaquiline não esconde a falta que a sua família lhe faz neste momento: "Preciso de uma força, que os meus filhos e o meu marido viessem cá."
Para chegar a Lisboa, contaram com a ajuda da médica que conhecia a primeira-dama da Guiné e agilizou a viagem. "Senão teríamos vindo muito mais tarde e ela já tinha uma leucemia a 60%." Desde que estão em Portugal não contaram com nenhum apoio da embaixada ou do governo da Guiné, conta a mãe da menina.
A pediatria acompanha cerca de 400 crianças e jovens (até aos 16 anos), das quais, "10% são PALOPs", refere a diretora do serviço, Filomena Pereira. A responsável admite que "a falta de suporte das embaixadas aos doentes dos PALOPs é uma questão presente no serviço" e que "com exceção de Cabo Verde, não há qualquer suporte a estas famílias da parte das suas embaixadas".
Segundo a assistente social Manuela Paiva, as embaixadas contam que sejam os familiares a assumir os cuidados destas crianças. "Há duas semanas recebi um telefonema de um miúdo PALOP a dizer que o tio tinha mudado a fechadura de casa e não tinha como entrar. Tenho-o no lar do IPO. As embaixadas não têm recursos e não apoiam", lamenta. No entender da profissional, os protocolos de cooperação na área da saúde estão desatualizados.
Neste serviço há 22 anos, a especialista acrescenta que também há dificuldades para as famílias portuguesas. "Diria que o Presidente da República vem encontrar aqui quase uma representação micro da nossa sociedade. Temos meninos com poucos recursos, meninos com muitos recursos, doentes dos PALOPs. Mas aqui eles são todos iguais", descreve.
Nos casos nacionais, a assistente social alerta para a necessidade de existirem alterações na legislação de proteção à família e às crianças portadoras de doenças crónicas. Por exemplo, a licença para a assistência que é conferida por períodos de seis meses até ao limite de quatro anos, mas o subsídio está limitado a 838,44 (duas vezes o Indexante dos Apoios Sociais). "Estas famílias são duplamente penalizadas. Primeiro têm um filho com cancro e depois veem os seus rendimentos diminuir", aponta. E para quem continua a trabalhar, as modalidades são limitadas. Só é possível reduzir o horário de trabalho em cinco horas semanais no primeiro ano de vida das crianças e a outra modalidade - a meia jornada - só é possível para a função pública.
Diariamente, Manuela Paiva lida com casos de mães que perdem o trabalho para poderem acompanhar os filhos. "Aquelas que trabalham sem contrato facilmente são dispensadas. E outros casos de mães que voltam ao mercado de trabalho, mas por estarem no período de seis meses são dispensadas, assim que as empresas percebem que elas vão precisar de tempo para acompanhar os filhos."
O trabalho da assistente social é também "ajudar as famílias a manter alguma normalidade" e isso inclui a vida profissional dos pais. Mas para isso acontecer era preciso que "a lei previsse outros cuidadores além dos pais. Os avós, por exemplo".
Agenda ajuda a comprar aparelhos
À venda em todo o país, a agenda solidária do IPO de Lisboa vai ajudar a angariar fundos para comprar materiais que melhorem a qualidade de vida dos doentes, como localizadores de veias que evitam processos às vezes dolorosos -cada aparelho custa 5000 euros. Na agenda (13,90 euros) estão 12 histórias de personalidades como o Presidente da República, Afonso Cruz ou Marisa Matias.