"Posso usar o meu cocar aqui?” pergunta Vana Noke Koî, referindo-se a seu adorno de penas ao entrar no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, antes de explicar a razão da dúvida: “No Brasil as coisas estão muito complicadas. Por vezes, as pessoas na cidade são violentas com a gente, com nossas vestimentas.” Vana é membro de uma aldeia da etnia Noke Koî, estabelecida no Estado do Acre, na Amazónia brasileira. Nos próximos três meses, no entanto, o jovem estará longe da sua terra natal..Esta semana, uma comitiva Noke Koî partiu do Brasil com destino a Portugal, numa turnê de ativismo ambiental que procura denunciar a situação degradante na Amazónia brasileira e mostrar ao mundo um pouco da cultura das aldeias indígenas, sob risco constante de extinção..Aterraram em Lisboa há poucos dias, onde iniciaram a aventura que dura até novembro e inclui passagem por 10 países. Vana chegou a Portugal ao lado de seu irmão, Varisina, da sua esposa Jaque Zubek, a filha Ayla Vome e do pajé (termo utilizado para definir o chefe da aldeia) Kotchi Kamãnawá, que, aos 94 anos, pisa pela primeira vez fora do Brasil..“É tudo muito diferente aqui, desde a comida, o contato com as pessoas, o frio à noite… mas estou conseguindo suportar. Foi uma viagem longa e cheguei bem de saúde, isso é que importa. Agora, queremos encontrar gente que possa nos ajudar. A floresta em que cresci e vivi precisa de ajuda, deixei minha família, meus filhos na aldeia para procurar uma parceria aqui”, conta o pajé Kotchi na sua língua originária, sendo traduzido por Varisina, um dos seus netos..Nos últimos cinco anos, o grupo tem andado por diferentes partes do Brasil a procurar parceiros que ajudem na defesa da Amazónia. Nas turnês, como os próprios chamam, os Noke Koî mostram um pouco da sua cultura e procuram expor a dura realidade a que são submetidos, numa região que nos últimos anos foi palco de disputas com o “homem branco”, como se referem aos cidadãos não-indígenas..“Realizamos atividades culturais, nas quais contamos histórias, mostramos as nossas pinturas, expomos artesanato e fazemos palestras sobre a Amazónia. São muitos temas, mas em cada lugar por que passamos queremos deixar essa mensagem para mostrar ao mundo a nossa cultura e, mais que isso, a nossa existência. Nós somos de uma região com muita biodiversidade e, hoje, no Brasil, estão a acontecer muitos conflitos connosco, indígenas”, sublinha Vana, que, assim como o irmão Varisina, é um dos poucos da aldeia que dominam a língua portuguesa..Vana é casado com Jaque, natural do Estado do Paraná, no Sul do Brasil, e estabelecida em uma das aldeias Noke Koî há três anos. Em 2023, tiveram a primeira filha, Vome, o que fez com que o casal tivesse de passar parte do tempo fora da floresta, de forma a garantir condições para o parto. O acesso às cidades mais próximas das terras Noke Koî, no entanto, é outro dos grandes problemas com que convivem os indígenas daquela aldeia..A comitiva foi organizada pelo ativista italiano Fillippo Bertuzzi (esquerda)..Seis horas de barco.Os municípios mais próximos, Cruzeiro do Sul e Tarauacá, ficam a seis horas de distância de barco das aldeias. O Rio Gregório, utilizado como passagem, conta com mais de 350 quilómetros de extensão – distância menor do que entre Lisboa e Porto, por exemplo. Dar mais condições de transporte para os povos indígenas é uma das reivindicações da comitiva..“As condições são muito difíceis, é triste de ver. Por um lado, estar na aldeia te traz para próximo de uma cultura muito rica, muito diversa, mas, ao mesmo tempo, estar nessa constante luta pela sobrevivência é muito difícil, são muitas as necessidades básicas que existem, como a falta de barcos para os transportes. Recentemente tivemos algumas boas notícias por parte do Governo, mas ainda é pouco. Ainda fica pior com o Brasil dividido dessa forma, com pessoas que têm consciência e outras que ignoram a crise climática e o extermínio dos povos”, afirma Jaque..Uma das notícias positivas a que a brasileira se refere é a criação do Ministério dos Povos Indígenas. Em janeiro de 2023, quando tomou posse enquanto presidente da República, Lula da Silva (do PT) anunciou a criação da pasta com Sônia Guajajara – candidata a vice-presidente de Guilherme Boulos (PSOL) em 2018 – a ocupar o cargo de ministra..Desde a formulação da Constituição Federal, em 1988, foi determinado, de acordo com o artigo 231.º, que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Nas últimas décadas, no entanto, os povos indígenas têm sofrido com o garimpo ilegal e a exploração de madeira em terras amazónicas..“O mundo está dar-nos muitos sinais de que está a acabar e sentimos essa destruição na pele na nossa Amazónia. A poluição, os garimpos… acabam com a natureza, acabam com a nossa cultura. A nossa viagem até aqui é para tentar unificar ações com o resto do mundo que nos possam ajudar a mantê-lo, para garantirmos o futuro das próximas gerações”, apela Vana..De acordo com a plataforma brasileira MapBiomas, em 2016, a área destruída pelo garimpo ilegal na região foi de 58,4 hectares, número que chegou aos 2409 hectares, em 2021. Embora o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) tenha indicado que, em 2023, o desmatamento na Amazónia tenha registado uma queda de 62% em relação ao ano anterior, a falta de condições persiste e a viagem dos Noke Koî para a Europa é um apelo que busca o apoio, de pessoas e associações, que não tem encontrado no Brasil..“Nunca encontrei lá, no Brasil, uma parceria que pudesse solucionar os problemas das nossas casas, da falta de água potável, falta de transportes. Portanto vim aqui para tentar encontrar essa pessoa. Tem que existir uma pessoa que nos possa ajudar. Tenho ideias para ajudar a floresta, mas não a condição para o fazer”, diz o pajé, médico de sua aldeia, que, apesar dos 94 anos, mostra pouca ou nenhuma debilidade..Apoio de ativista italiano.Para conseguir atravessar o Atlântico, a vinda da comitiva Noke Koî teve o apoio do organizador que acompanha o grupo, o ativista italiano Filippo Bertuzzi. No Brasil há 12 anos, Filippo diz que sua vida se transformou ao ter os primeiros contatos com os povos indígenas. Em 2021, o italiano conheceu a comunidade Noke Koî e passou a viver com Vana, Varisina e o pajé Kotchi, a quem se refere como “vovô”..“Primeiro apaixonei-me pelo Brasil, pelo Nordeste, depois apaixonei-me pelo Carnaval. Mas quando você conhece os povos indígenas, aí é algo completamente diferente e que me mudou. É algo mágico a maneira como eles vivem, ao mesmo tempo que não podia deixar de sentir uma tristeza enorme ao ver a luta diária deles”, conta o ativista..A viagem organizada por Filippo inicia e encerra em Lisboa. No intervalo, o caminho é grande. A comitiva passará, além de Portugal, por Estónia, Finlândia, Reino Unido, Inglaterra, Polónia, Alemanha, Holanda, Suíça e Espanha, sempre à procura de ONG e associações que consigam abrir as portas para a divulgação do projeto dos Noke Koî. Para garantir todas as passagens, outras deslocações, hospedagem e alimentação nestes três meses, Filippo tirou dinheiro do próprio bolso, cerca de 15 mil euros. .“Organizar essa turnê é meu contributo para tentar ajudá-los”, diz Filippo. “A nossa dificuldade é muito grande, mas a nossa biodiversidade é muito maior. Viemos aqui para lutar por ela”, finaliza Varisina..nuno.tibirica@dn.pt