António Marinho e Pinto: um furacão na Justiça
Vítor Higgs / DN

António Marinho e Pinto: um furacão na Justiça

Prova de Vida faz parte de uma série de perfis - este é já o n.º 41 -, por António Araújo.
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António Marinho e Pinto, o demagogo que os advogados portugueses por duas vezes escolheram para seu bastonário, está hoje um homem mudado, morigerado, quiçá mesmo escassilhado, seja pelo avanço dos anos, seja pelas canseiras sofridas nos mil combates que travou ao longo de uma existência de fogo, onde não faltaram o garbo e a raça, é certo, mas também a inclinação para o dichote e para a bojarda polémica.

Há meses, esteve no programa do Goucha, que o recebeu de fato rosa e de riscas, espantado pelo new look de Marinho: ontem, um touro enraivecido, de cenho carregado e voz trovejante; hoje, um Capitão Haddock ou velho profeta de barba farta, entre o branco e o grisalho, que diz estar agora em “fase contemplativa”, zen, portanto, e que, com os olhos rasos d’água, discorreu muito filósofo sobre os seus pais e a vida, sobre a necessidade de nos colocarmos sempre no “lugar do outro” e de, em resultado disso, moderarmos “alguma agressividade.”

Depois, foi por aí fora, falando de Amarante e de Niterói, da popularidade do doutor Salazar, da infância passada na sua Heimat, a andar aos ninhos e a roubar cerejas dos vizinhos (“Hoje, Manuel Luís, as crianças não têm tempo para brincar”), da pedra onde ainda hoje se senta, e que já em petiz partilhava com seu avô, debaixo de um castanheiro, que adivinhamos ser muito antigo ou talvez mesmo telúrico.

Reformado au complet, confessa ter ficado confuso com tanto tempo disponível e livre de que goza agora, após 49 anos de correrias e de afazeres em “luta pela justiça”.

Não perdeu, contudo, a propensão para a farpa e, na entrevista a Goucha, comparou o reitor de Coimbra a um ditador, até com alusões aos cruéis tempos da Inquisição, dizendo ainda, de caminho, que “as redes sociais são as latrinas do nosso tempo”, que vivemos subjugados por uma “tirania do politicamente correcto”, que “uma vida sem amizade não é uma vida” e que “hoje, Manuel Luís Goucha, não temos informação, não temos jornalismo”, pois este há muito deixou de ser “um contrapoder”.

Terminado o programa, e descontando o facto de ter chamado à Indonésia “a maior potência asiática da Oceânia”, a sensação que fica é que assistimos a uma adaptação televisiva de Mário e o Mágico, tal é a sedução e o apelo deste prestidigitador da palavra, em tudo semelhante ao Cipolla daquela novela de Thomas Mann. Para uns, os mais maldosos, um vulgar fala-barato, com um discurso eivado de platitudes e lugares-comuns; para outros, um pobre diabo, que tentou safar-se como pôde, não causando mossa ao próximo, pelo menos que se saiba. Num balanço desapaixonado, um homem bom e chão, que se orgulha de ter sido o primeiro eurodeputado português a denunciar o “escândalo” do salário dos parlamentares de Estrasburgo, mas que hoje goza uma reforma vinda de lá, que não tem pejo em confessar, sem especificar o montante, que “não é tão pequena como a maioria dos portugueses tem”. Entende que o Parlamento Europeu é uma inutilidade doirada, “tão produtivo como era a corte de Luís XIV”, o que nos deixa na dúvida sobre a razão pela qual se manteve naquele “faz-de-conta” (“não manda nada, apesar de todas as ilusões, todas as proclamações, que são mentiras”), pese ter perdido a confiança do partido por que se fez eleger, o MPT - Partido da Terra.

Afirmou ainda que, com transparência e lisura, nunca escondeu que jamais foi um político: “Eu sempre disse que não era político, verdadeiramente nunca fui um político, porque nunca funcionei dentro dos clichés da política tradicional, do andar às cotoveladas, da punhalada nas costas, da intriga, da traição.” Por explicar ficou, então, o motivo pelo qual se aventurou a votos em duas ocasiões, e por dois partidos diferentes, o MPT, já citado, e o PDR - Partido Democrático Republicano, de que foi fundador, tendo este averbado um resultado fatídico no sufrágio de 2015 - pouco mais de 60 mil votos, 1,13% nas percentagens.

De igual modo, Marinho insinuou que, a meio da sua estada na estranja, decidira largar o conforto bruxelense pela política pátria, mais ingrata e mais mal paga, quando, na verdade, permaneceu no PE de 2014 a 2019, ou seja, o tempo necessário para completar um mandato e auferir a competente reforma, no caso mais do que merecida, pois foi parlamentar como os outros e, logo, nem melhor, nem pior.

***

António de Sousa Marinho e Pinto, a que também chamam António Marinho ou tão simplesmente Marinho, nasceu aos 10 de Setembro de 1950 em Vila Chã do Marão, terra que nos censos de 2021 tinha 825 habitantes, o que perfaz, está visto, uma densidade populacional de 123 hab./km².

Seu pai, Francisco Pinto, era alfaiate, e sua mãe, Emília de Sousa Marinho, costureira e, no que concerne à infância, decorreu sem história. Ou, melhor, com alguma estória, já que Marinho afiança, como atrás se viu, que as suas mais remotas memórias de infância são daquela terra amarantina, mas o certo é que, diz a Wikipédia, saiu de lá com apenas seis mesitos de vida, rumo à cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, onde seus pais tentaram fintar o destino, mas acabaram sendo alvo de toda a espécie de piadas xenófobas com que os brasileiros brindavam, e em parte ainda brindam, os “patrícios” vindos do país-irmão.

Da juventude passada ao trópico Marinho pouco ou nada fala, excepto para recordar que, tinha ele 14 anitos, voltou com a mãe para Portugal. Ficou o casal, portanto, com um Atlântico de permeio, como no poema de Cecília, e acabaram por se separar.

Com o pai, um salazarista convicto que permaneceu e faleceu no Brasil, as relações chegaram ao ponto da ruptura, sobretudo quando aquele questionou asperamente as aventuras oposicionistas do filho enquanto estudante em Coimbra. À conta disso, estiveram 15 anos sem se falar, mas Marinho Jr., um coração mole, acabaria por reatar relações. A mãe, ao invés, sempre foi o seu encanto, a ponto de lhe ter dedicado um dos primeiros livros que publicou, As Faces da Justiça, de 2003.

Matriculado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Marinho cedo se envolveu nas movimentações estudantis e, por causa delas, foi detido pela PIDE quando tinha 20 anos. Num dos seus livros, fez questão de publicar, com justificado orgulho antifascista, o auto da sua detenção, que dá conta de que, pelas 19 horas do dia 12 de Fevereiro de 1971, quando os agentes da PSP, sob o comando do tenente Elias Matias, cercaram os mais de mil estudantes reunidos nas instalações da Associação Académica, onde se encontravam num meeting de solidariedade com alguns colegas presos, entre os quais dois angolanos, acusados de pertencerem ao MPLA. Depois, deram-lhe ordem para saírem para a rua ordeiramente e em pequenos grupos, a fim de serem devidamente identificados. Nisto, um jovem impetuoso, natural de Vila Chã - Amarante, e residente no n.º 13 do Bairro de Sousa Pinto, ergueu-se num minuto heróico e bradou à estudantada: “CAMARADAS, NINGUÉM SAI DAQUI, NINGUÉM SAI, NEM NINGUÉM SE IDENTIFIQUE.”

Vítor Higgs / DN

O gesto, é evidente, valeu-lhe ser detido na companhia de outros colegas da Faculdade de Direito - Carlos Fraião, João Pena dos Reis, Romeu Cunha Reis e Rodrigo Santiago -, aos quais vieram juntar-se mais outros 30 presos, todos estudantes de Coimbra. Levados na noite de 13 de Fevereiro de 1971 para as instalações da PIDE/DGS em Lisboa, estariam presos durante cerca de dois meses em Caxias e o “referido estudante Marinho”, como é citado no auto da sua detenção, ganhou uma medalha para a vida, mas também uma severa reprimenda do pai, que do Brasil lhe escreveu censurando-o asperamente, ao que Marinho respondeu com carta não menos áspera, precipitando o corte de relações, só reatadas em 1987.

Por causa da política, abandonou temporariamente os estudos e, nas biografias oficiais, é difícil saber o que fez Marinho e Pinto entre 1971 e 1979, data em que, como jornalista, iniciou funções de direcção na ANOP - Agência Noticiosa Portuguesa da Madeira, onde esteve até 1984.

Entretanto, licenciou-se em Direito, já depois do 25 de Abril, mas a Wikipédia assevera que, e cita-se, “Marinho e Pinto nunca divulgou os anos em que esteve efectivamente inscrito na licenciatura em Direito, nem o tempo lectivo que demorou a concluí-la. Desconhecida é também a média final obtida”, dados que não constam do curriculum vitae que apresentou aquando da sua candidatura a bastonário da Ordem dos Advogados (ainda assim, note-se, na página da Ordem é indicado que se licenciou em Dezembro de 1984 e que se inscreveu como advogado em Julho de 1987).

Até iniciar a sua carreira no jornalismo, deu aulas no Ensino Secundário e Preparatório, leccionando as disciplinas de Português, Literatura, Filosofia e Introdução à Política, entre 1974 e 1978. Em 1978, começa a trabalhar na imprensa e, logo no ano seguinte, integra a direcção da ANOP na Região Autónoma da Madeira, onde se mantém até 1980. Daí, transitou para director da ANOP na Região Centro, mais perto de casa, mas, entre 1987 e 1988, rumou ao Extremo Oriente, onde foi assessor do Governo de Macau.

Foi jornalista do Expresso de 1989 a 2006 e membro do seu Conselho de Redacção, em 1996-1997 e em 2001-2002, tendo sido também membro da direcção do Sindicato dos Jornalistas, em 1986-1987. A par disso, manteve uma intensa actividade cívica, iniciada, como se viu, ainda nos tempos de estudante, como membro do Movimento Democrático Estudantil, em 1971, dirigente da Associação Académica de Coimbra (onde foi membro do executivo da Comissão Pró-Reabertura da AAC - CPRAAC, em 1973-1974), membro da Comissão Nacional para a Liberdade de Informação, em 1978-1979, e membro da Amnistia Internacional.

Em 2002, integrou o Conselho Geral da Ordem dos Advogados e presidiu à sua Comissão de Direitos Humanos, sendo bastonário José Miguel Júdice, e, em 2004, candidatou-se a bastonário nas eleições de Novembro, perdendo para Rogério Alves. Quatro anos depois, chegou enfim ao lugar de representante máximo dos causídicos portugueses, cargo que, no passado, fora exercido, entre muitos outros, por nomes como os de Barbosa de Magalhães, Catanho de Menezes, Adelino da Palma Carlos, Pedro Pitta, Ângelo de Almeida Ribeiro, Mário Raposo, António Osório de Castro ou Augusto Lopes Cardoso.

Marinho e Pinto, em larga medida, rompeu com essa tradição aristocrática, ainda que o seu estilo contundente, por vezes desabrido, tenha sido cultuado no passado, é certo que com mais moderação e tento, pelos seus três antecessores mais próximos, António Pires de Lima, José Miguel Júdice e Rogério Alves.

Em todo o caso, a vitória de Marinho constituiu um momento de viragem e ruptura, assinalando o triunfo do lumpenproletariat da advocacia portuguesa, uma profissão em massificação e em proletarização crescente. O novel bastonário não era oriundo de um escritório de renome de Lisboa ou Porto, não era um advogado prestigiado pelo seu saber jurídico ou por pergaminhos académicos, pelo brilho das alocuções, pela densidade da sua cultura. Tinha um passado antifascista, sem dúvida, mas módico e passageiro, juvenil e inconsequente, igual ao de muitos outros. Não frequentava os corredores do poder, nem os salões das elites e, enquanto advogado, não tivera intervenção em causas célebres ou sequer em processos mediáticos. Ainda assim, derrotou os seus rivais, António Garcia Pereira, Manuel Magalhães e Silva, Luís Menezes Leitão e, não contente, foi reeleito em 2010, vencendo Luís Filipe Carvalho e Fernando Fragoso Marques e, sobretudo, os que se congregaram em apoio deste último, como Júdice, Magalhães e Silva e Carlos Pinto de Abreu.

Como seria de esperar, os seus dois mandatos caracterizaram-se por um sem-fim de polémicas e conflitos, que acabaram por obscurecer o trabalho então feito, como a criação do Instituto de Acesso ao Direito, em 2010, o VII Congresso dos Advogados Portugueses, no ano seguinte, e, neste mesmo ano, as 1.ªs Jornadas do Instituto do Acesso ao Direito. A Ordem colocou-se na linha da frente na contestação ao novo mapa judiciário e ao novo regime jurídico das associações públicas profissionais, mas acabou comprometida pela imagem de um bastonário que, num passado ainda próximo, não hesitara em propor a extinção do Centro de Estudos Judiciários ou a proibição de sindicatos nas magistraturas.

No livro Dura Lex. Retratos da Justiça Portuguesa, de 2007, Marinho fustigara o “iluminismo judiciário” e o “fundamentalismo justiceiro”, falando do “espírito mercantilista” da Ordem dos Advogados, convertida num “imenso polvo burocrático.” De Júdice, que outrora o apadrinhara, disse ser “um trauliteiro” e “um fanfarrão” e denunciou a alta advocacia das grandes sociedades e escritórios, prenhes de “cambões com o Estado”.

Marinho e Pinto, aliás, nunca perdeu uma boa polémica, sobretudo quando esta pusesse em causa o trabalho dos juízes e dos magistrados do Ministério Público, e das polícias e demais autoridades: ergueu-se a favor da SIC e de Emídio Rangel, e contra o Sindicato dos Jornalistas, quando aquela estação emissora, no programa Os Donos da Bola, fez uma reportagem sobre um famigerado estágio da Selecção Nacional de Futebol num hotel de Cascais, que redundou, alegadamente, na contratação de prostitutas que acabaram seviciadas (o famoso Caso Paulinha, que entreteve o país durante semanas do ano de 1997). Depois, esteve ao lado de Fátima Felgueiras quando esta fintou as autoridades e um mandado de detenção para reaparecer alegremente no Brasil, de onde declarou não ter fugido à Justiça - Marinho considerou que se tratou de um gesto mais do que legítimo, pois fora desrespeitado “o princípio do contraditório.” Mais tarde, e a propósito da violência doméstica, fustigou a Igreja Católica (v.g., por não autorizar o sacerdócio das mulheres), tendo a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, a que então presidia, elaborado um contundente relatório sobre a matéria, que mereceu a pronta reacção crítica do Conselho Superior da Magistratura, o que levou à abertura de nova polémica, desta feita com Noronha Nascimento.

Questionou, igualmente, o modo como, no rescaldo dos ataques do 11 de Setembro, os Estados Unidos estavam levando a cabo a “guerra contra o terrorismo”, desde logo por considerar o seguinte: “Pessoalmente, sempre tive muitas reservas em relação ao termo ‘terrorista’, quer como pessoa, quer como advogado, quer sobretudo como jornalista.” Pronunciou-se igualmente contra a invasão do Iraque e, nesse sentido, enquanto alto responsável da Ordem dos Advogados, escreveu uma carta de solidariedade ao embaixador daquele país em Lisboa.

A esse propósito, e num inflamado texto em que falou “dos grandes combates da [sua] vida”, todos “feitos por valores e ideais, segundo princípios”, em que proclamou, grandiloquente, que “nunca ninguém [o] calou, nem pela força nem pelo aliciamento”, teve um interessante momento Zelig, em que se figurou ora entre os escombros das Torres Gémeas, ora numa câmara de gás, ora nas masmorras do Santo Ofício, ora num tribunal de Estaline. Ouçamo-lo: “Em matéria de direitos humanos, identifico-me com todas as vítimas, sejam elas quais forem. Por isso fui americano no alto do World Trade Center, como fui judeu em Auschwitz, alemão em Dresden, japonês em Hiroxima e Nagasáqui, negro no apartheid da África do Sul, marinheiro soviético em Kronstadt, herege na Inquisição, réu nos processos de Moscovo, tchetcheno em Grozni, chinês em Tiananmen, palestiniano em Gaza e na Cisjordânia. E, hoje, como não poderia deixar de ser, sou iraquiano em Bagdade e Bassorá.”

Talvez Marinho e Pinto tenha sido vítima de tudo isso - dos nazis, dos racistas sul-africanos, dos terroristas islâmicos, dos ianques imperialistas -, mas também foi, ou sobretudo, vítima de si próprio, e do seu estilo populista e truculento, que o fez indispor contra si, ao fim de pouco tempo de mandato, os principais actores do sistema judiciário, bem como uma parcela significativa da classe política e da opinião pública, que, na melhor das hipóteses, deixou de o levar a sério. Protestava ter consigo os descamisados da advocacia - e o certo é que por eles foi eleito e reeleito -, mas as suas sistemáticas tomadas de posição a favor de quaisquer vítimas, fosse o turco Öcalan, fosse o neonazi Mário Machado, fosse a Leonor Cipriano do Caso Joana, fossem os americanos presos no Iraque, fosse o malogrado Oliveira e Costa, fosse José Sócrates no Caso Freeport, acabaram por tirar-lhe a gravitas e a credibilidade.

Pior do que isso, a ideia que transmitiu da Justiça portuguesa, que representou como um feudo de corruptos e de incompetentes, poderia ser consentânea com um “jornalista de causas”, mas pouco própria em alguém que, por dever de ofício, tinha de dialogar com os seus pares na Ordem e, sobretudo, com os mais altos representantes das magistraturas e do poder político.

Tudo isso era pouco compatível com alguém que afirmava, sem pestanejar, que “em Portugal, por regra, só os políticos que estão na oposição é que, verdadeiramente, têm problemas com a Justiça”, aludindo aos casos Fax de Macau, Universidade Moderna e Casa Pia, ou que falava da “falta de cultura democrática” dos nossos magistrados e do seu “autismo confrangedor”, bem como do “clima de terror” reinante em muitos dos tribunais portugueses, com o pagamento de desproporcionadas taxas de justiça, geradoras de um “imenso saco azul com que se pagam os mais escandalosos privilégios de que os próprios magistrados beneficiam”.

“O comportamento de muitos dos nossos magistrados lembra o das polícias da PIDE/DGS nos últimos tempos da ditadura”, disse, acrescentando que “muitos não compreendem que já não são respeitados como outrora, devido à forma despótica e arbitrária (e, às vezes, simplesmente ridícula) como exercem os poderes em que estão investidos e à forma como maltratam e agridem os cidadãos que têm de ir a tribunal.”

O problema com este tipo de discurso, em parte verdadeiro, é que só poderia ser protagonizado em quem fosse à prova de bala e não tivesse, ele próprio, muitos telhados de vidros, começando pelo facto de, em campanha para bastonário, ter afirmado que o cargo deveria ser remunerado, coisa que Marinho fez logo, pouco depois de entrar em funções. Poderia, pois, clamar contra os poderosos da advocacia, que queriam “controlar a OA para se promoverem” e para “a utilizar como instrumento de estratégias pessoais ou de grupo, no sentido de conseguirem grandes negócios através das ligações ao poder político que a Ordem sempre facilita”, mas sobre ele sempre pairou a dúvida de pretender fazer exactamente o mesmo, por mais que denunciasse “a nomenclatura criada ao longo de décadas”, os “acordos de bastidores” no seio da Ordem dos Advogados ou “a distribuição de dinheiro pelas clientelas dos Conselhos Distritais, sobretudo através da formação”.

Às tantas, cada vez mais isolado, Marinho dizia ter sido erguida contra si “a mais sistemática campanha de ataques pessoais na história da advocacia portuguesa”, começada, segundo ele, logo no dia da sua eleição e por três antigos bastonários, José Miguel Júdice, António Pires de Lima e Maria de Jesus Serra Lopes. Queixava-se de ser alvo de uma “campanha de ataques pessoais, infâmias e calúnias contra a OA, contra [si] e até contra familiares [seus]”. Nos seus dois primeiros anos à frente da Ordem, disse, não teve “um minuto de descanso”, passando o tempo a defender-se de insinuações torpes, como aquela que dizia que, ao ter levado a Ordem a constituir-se assistente no Caso Leonor Cipriano (a primeira vez que tal ocorria na história da instituição), procurava servir os interesses pessoais da sua filha, que estagiara no escritório do advogado de Cipriano. Ou aquela que dizia que, ao atribuir-se a si próprio um vencimento como bastonário, estava a locupletar-se escandalosamente à custa da Ordem dos Advogados. Ou ainda a que falava de um opíparo jantar oferecido na sede da Ordem, em que só um prato de robalo custara mais de 70 euros e uma garrafa de vinho 96 euros (Marinho defendeu-se, alegando que só dois participantes escolheram robalo e que a garrafa de vinho Evel custara “pouco mais de 40 euros”).

Contra mundum, Marinho esgrimia agora contra o Conselho Superior da Ordem, presidido por José António Barreiros, contra “um clima de chicana e ataques pessoais”, contra os antigos bastonários, contra o seu rival derrotado, Magalhães e Silva (“que nunca foi capaz de digerir essa derrota democrática”), contra João Correia (“candidato do Dr. José Miguel Júdice nas eleições de 2004, que ficou em último lugar e que, desde então, desenvolveu contra mim um ódio visceral”), contra os cinco presidentes dos Conselhos Distritais do continente (a saber: de Lisboa, Carlos Pinto de Abreu; do Porto, Guilherme Figueiredo; de Coimbra, Carlos Ferrer dos Santos; de Évora, Carlos Almeida; de Faro, António Cabrita), contra a “comunicação social lisboeta”, responsável por uma “intoxicação mediática” para o destruir.

Referiu-se ao Correio da Manhã como “a infâmia em letra de imprensa”, lamentou a campanha contra si promovida pelo Diário de Notícias, falou dos “insultos torpes” do semanário Sol (“um tablóide lisboeta”), deu uma tempestuosa entrevista a Manuela Moura Guedes, no Jornal da Sexta da TVI.

O tumultuoso consulado de António Marinho e Pinto à frente da Ordem dos Advogados foi, e ainda é, um ilustrativo case study dos descaminhos do populismo demagógico, que na política como na Justiça, ou no futebol (no fundo, sempre que exista poder em disputa), segue invariavelmente o mesmo guião: da mesma maneira que André Ventura começou no comentário televisivo e agora se queixa da “bolha mediática”, Marinho principiou como jornalista, comentou diversos casos mediáticos, mas terminou lamentando-se da perseguição que lhe era feita pela imprensa e hoje, já na reforma, diz que “não temos informação, não temos jornalismo”, pois este deixou de ser um “contrapoder.”

De permeio, e como sempre, as diatribes contra a corrupção instalada, o conspirativismo das cabalas e dos poderes ocultos contra a sua acção higienizadora e salvífica, o discurso moral contra “as elites” feito em nome dos “pequenos” e das “vítimas” e também, claro está, em nome da “ética”, dos “ideais”, dos “princípios” e dos “valores.” Para este simulacro de autenticidade, e da mesma maneira que Ventura enaltece as suas origens de Mem Martins, António Marinho e Pinto recorria, vezes sem conta, às raízes amarantinas e, mais decisivamente, ao seu passado antifascista. Um passado que, note-se, e à parte uma detenção de dois meses em Caxias, igual à de tantos outros estudantes, não teve especial notoriedade ou relevo e, estranhamente, não se prolongou em qualquer actividade cívica ou partidária no pós-25 de Abril.

Por fim, mas não por último, o registo Calimero, em vitimização constante, falando Marinho de “campanhas de insultos e infâmias”, de “acções de sabotagem”, de “ignóbeis mentiras”, de “guerrilha institucional”, de “deslealdade institucional”, de “uma página de ignomínia na história da Ordem dos Advogados”, de “intoxicação mediática”, de mil e uma urdiduras, enfim, culminadas na abertura de seis - repete-se: seis - processos disciplinares contra si enquanto bastonário da Ordem dos Advogados.

Um dia, numa sessão pública em Évora, José António Barreiros desafiou-o a indicar provas da corrupção em Portugal, um tema recorrente nas suas intervenções. Marinho disse mais tarde que pensou em indicar três ou quatro processos mediáticos, mas optou por calar-se e não referiu caso algum.

Ao terminar o seu primeiro mandato, afirmou, sem falsa modéstia, que nunca a Ordem “teve a dirigi-la um Bastonário tão identificado com os direitos dos cidadãos” e, pasme-se, “nunca a Ordem e o Bastonário foram tão prestigiados na sociedade portuguesa como hoje.” Os advogados portugueses, pelos vistos, concordaram, e voltaram a elegê-lo. Sucedeu-lhe Elina Fraga, e a Ordem não mais foi a mesma.

Mal saído de bastonário, e já em plano inclinado, transitou para a política, apesar de, pouco antes, criticar os que aproveitavam o cargo para se aventurar nesse mundo. Em 2014, foi eleito eurodeputado pelo MPT - Movimento Partido da Terra. Não passou um ano e já estava em ruptura com aquele partido, do qual nunca fora militante. O MPT pediu a sua perda de mandato no Parlamento Europeu, Marinho, em resposta, manteve-se em Estrasburgo, mas criou o Partido Democrático Republicano (PDR), e por ele concorreu às legislativas, com resultados fatídicos, 1,13%.

Nas legislativas seguintes, de 2019, conseguiu piorar o score, com uma perda de, diz-se, 80% dos votos em relação aos já de si modestos resultados do sufrágio anterior. Nesse mesmo ano, Marinho e Pinto anunciou urbi et orbi que abandonava a política, descrente da possibilidade de reformar o país.

Não podendo agora queixar-se de cabalas de advogados poderosos, refugiou-se em Coimbra, onde hoje vive. Em 2020, o advogado, chefe de cabine na SATA e antigo vice-presidente do Sindicato do Pessoal de Voo da Aviação Civil, Bruno Fialho, sucedeu-lhe na presidência do PDR, que depois transformou na Alternativa Democrática Nacional, o ADN agora muito falado.

Quanto a Marinho, deixou de andar por aí, razão desta prova de vida. Está hoje um profeta de barbas, sereno e muito filósofo. Com duas filhas e três netos, confidenciou a Manuel Luís Goucha, também ele um filósofo, que não acredita no Além e que “a morte é a única coisa certa que temos”. É algo que ninguém lhe deseja, pois, no fundo, no fundo, fez o que todos fazemos: tentou safar-se na vida, ganhou o seu pão diário, tratou do futuro dos filhos e acautelou a velhice com um ordenado da Ordem e uma pensão de Estrasburgo. Um português como os outros, António Marinho e Pinto.


 
Para o meu amigo Zé Lima
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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