António Araújo: “Rastreio ao cancro do pulmão permitiria poupar vidas que, infelizmente, se vão perdendo”
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António Araújo: “Rastreio ao cancro do pulmão permitiria poupar vidas que, infelizmente, se vão perdendo”

No mês em que se assinala o Dia Mundial de Luta Contra o Cancro, o professor António Araújo vem lembrar que o cancro do pulmão é dos que tem maior impacto nos doentes, sobretudo o cancro de pequenas células, e que os políticos têm de pensar “séria e rapidamente na implementação de um rastreio nacional”.
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Em Portugal, já se fazem rastreios nacionais aos cancros da mama, do cólon e do colo do útero. No final de 2022, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, anunciou que em 2023 se avançaria com rastreios a mais três tipos de cancro: pulmão, próstata e estômago. Tal não aconteceu, mas no Orçamento do Estado para 2024 há verbas previstas para que a medida se concretize.

Ao DN, o diretor de Serviço de Oncologia Médica do Centro Hospitalar Universitário do Porto, dá a sua visão e lembra aos políticos, nomeadamente à tutela, que é preciso pensar “séria e rapidamente” na implementação do rastreio nacional ao cancro do pulmão, já que se está a falar do cancro mais comum no mundo, cuja incidência aumenta 0,5% ao ano. Em Portugal, todos os anos há mais de cinco mil novos casos e 4500 mortes. Aliás, no nosso país é a segunda causa de morte na doença oncológica. 


O problema é que a grande maioria dos casos, sobretudo os tumores de pequenas células, que representam 13% do total, são diagnosticados já num estadio muito avançado, e apesar da evolução nos tratamentos para estes “casos ainda não há muitas opções válidas e o prognóstico é sempre muito sombrio”.

Basta referir que sete em cada dez dos doentes, sobretudo homens, com menos de 65 anos e fumadores, desenvolvem doença extensa. A forma de inverter esta tendência “é a aposta na prevenção”, aumento da literacia desde a infância para que não se inicie o consumo do tabaco, e também o rastreio nacional, através do qual “acredito que seja possível chegar mais cedo aos doentes e começá-los a tratar mais cedo”. 

O cancro do pulmão é dos que ainda tem um impacto muito elevado na taxa de mortalidade, mas ainda não tem um rastreio nacional, apesar de já ter sido anunciado, porquê? 
É verdade. Há vários projetos para a implementação de um programa piloto de rastreio. O Sr. ministro da Saúde falou nisso em finais de 2022, dizendo que até 2023 seria implementado, Mas não foi. Havia uma linha de financiamento da União Europeia para financiar esses programas piloto, só que os serviços da tutela deixaram passar o prazo e perdeu-se essa linha de financiamento e o rastreio não avançou. Quando é fundamental, porque há estudos publicados que demonstram que um rastreio de base populacional salva cerca de 20% das vidas dos doentes, porque consegue diagnosticar o cancro mais precocemente e acaba por ter um impacto muito grande nesta patologia.


De acordo com os últimos dados oficiais, a incidência do cancro do pulmão em Portugal ainda é elevada...
A incidência é de cerca de cinco mil novos casos por ano, foi o que foi registado em 2021, e cerca de 4500 mortes anuais. É uma doença com um impacto muito grande e o rastreio permitiria poupar vidas que, infelizmente, neste momento se vão perdendo.


Mas há a expectativa de que o rastreio possa ser implementado em 2024, pelos menos o OE contém verbas para isso...
A decisão de implementação de um rastreio é sempre uma decisão politica. E depende muito da vontade politica da tutela. É evidente que estamos a falar de um tipo de rastreio complexo, que envolve um investimento razoavelmente grande, pois necessita de aparelhos de TAC (Tomografia Axial Computorizada), de médicos radiologistas que leiam os exames e médicos de família que encaminhem os indivíduos a quem foram detetadas alterações a nível pulmonar para os centros hospitalares, onde o diagnóstico e o estadiamento da doença possa ser feito atempadamente. Por outro lado, é um rastreio para o qual é necessário seleccionar a população alvo, devendo esta ter entre 55, 65 e 75 anos, ser fumadora, com uma carga tabágica elevada, ou quem tenha deixado de fumar há menos de 15 anos, mas com uma carga tabágica semelhante. Além do mais, um rastreio ao cancro do pulmão não deve ser feito sem haver consultas de cessação tabágica associadas para as pessoas perceberem de que este não é uma falsa segurança, mas que lhes permite ativamente deixar de fumar.

“Cada cinco cigarros fumados deixam uma alteração genética no epitélio pulmonar. E é da conjunção dessas alterações genéticas, que vão ficando no campo pulmonar, que surge depois a doença oncológica”


Este cancro está mais associado ao sexo masculino. Porquê? Só pela questão tabágica? 
Cerca de 80% dos casos de cancro do pulmão estão associados ao consumo de tabaco e quem consome mais tabaco ainda são os homens e por, este motivo, acaba por ter mais preponderância no sexo masculino. No entanto, há cerca de 20% dos casos que não têm relação direta com o consumo de tabaco, pelo menos que esta seja perceptível, podendo antes ter uma relação com a existência da exposição ao radão (gás radioactivo) que existe no granito - por exemplo, casas construídas com granito, em que a concentração do radão contribui para o aparecimento deste tipo de tumor. Ou, então, em profissionais que trabalhavam em áreas em que a cobertura era de fibrocimento, muito ricas em fibras de asbestos (amianto), que vão provocando a inflamação crónica das vias aéreas. Por fim, e como é evidente, existe também o fator do acaso no aparecimento do cancro do pulmão.


O comportamento do cancro do pulmão é diferente se a pessoa é ou não fumadora? 
As caraterísticas genéticas do tumor de um fumador são completamente diferentes das caraterísticas genéticas do tumor de um não fumador. E isto porquê? Porque o tabaco condiciona alterações genéticas no epitélio brônquico. Há dois estudos publicados na revista científica Nature há cerca de dez anos que demonstram que cada cinco cigarros fumados deixam uma alteração genética no epitélio pulmonar. E é da conjunção dessas alterações genéticas, que vão ficando no campo pulmonar, que surge depois a doença oncológica. Por outro lado, o próprio tabaco, e isso também ficou demonstrado num artigo da Nature, nesta última semana, altera a resposta imunológica do fumador, fazendo com que este fique muito mais deprimido e atreito a infeções respiratórios, sendo estas mais graves do que as que se desenvolvem num não fumador. 


Dentro do cancro de pulmão há um tipo que preocupa ainda mais os especialistas, o tumor de pequenas células, que afeta sobretudo homens e com menos de 65 anos, sabendo-se hoje que sete em cada dez casos desenvolvem doença extensa. Que tipo de cancro é este?
O carcinoma de pequenas células é especial, está representa em cerca de 13% do total dos casos de cancros de pulmão e tem características genotipicas completamente diferentes dos outros tumores do pulmão. Comporta-se de uma forma agressiva e com um crescimento rápido e está muito ligado ao consumo do tabaco. Um estudo recente veio mostrar que 40% dos doentes são homens, com menos de 65 anos e fumadores. E como o crescimento do tumor é muito rápido e agressivo a maior parte dos casos só é detetada num estadio avançado. 


Porquê? Não dá sintomas?
Os primeiros sintomas são iguais a muitas outras doenças que consideramos mais benignas. É o caso da tosse, expectoração e falta de ar, que estão muito associados à Doença Obstrutiva Crónica do fumador e as próprias pessoas têm tendência a desvalorizar e a retardar uma ida ao médico. 


Com o rastreio seria possível detetar mais cedo estes casos? 
Não consigo dizer se havendo um rastreio nacional ao cancro do pulmão que o diagnóstico a este tipo tumor também seria mais precoce, não há ensaios que o demonstrem, mas acredito que se conseguirmos detetar precocemente o carcinoma do pulmão que estes doentes também seriam apanhados mais cedo e teriam mais hipóteses de obterem um tratamento mais consistente. 

É preciso apostar na prevenção desde a infância para que o cidadão não inicie o consumo do tabaco. É preciso aumentar o preço do tabaco, está demonstrado que o preço é o dissuasor da compra de tabaco. É preciso a aposta no rastreio para haver mais diagnósticos precoces.


Uma das questões em relação a este tipo de tumor é que ainda não existe um tratamento muito eficaz, certo? 
É verdade, mas isso não é só em Portugal é a nível mundial. Como disse é um tumor com caraterísticas especiais e não se tem conseguido desenvolver terapias que sejam respostas viáveis. A própria imunoterapia, que já estamos a usar nestas células, funciona muito pouco. A única coisa que tem funcionado é a quimioterapia citostática clássica e, mesmo esta, só com três a quatro fármacos, porque os outros que estão disponíveis não funcionam neste tumor. Inicialmente é muito sensível à quimioterapia e radioterapia, e nos primeiros tratamentos o tumor reduz, mas rapidamente ganha resistência e progride É um tumor com prognósticos muito sombrios devido à taxa de mortalidade elevada


Como especialista o o que considera que deve ser feito para reduzir esta taxa de mortalidade?
Em primeiro lugar é fundamental apostar na prevenção, nomeadamente no aumento da literacia dos nossos cidadãos, desde a infância, de forma a que não iniciem o consumo do tabaco, e, se iniciarem, de forma a deixarem este hábito rapidamente. Em segundo lugar, considero que é preciso aumentar o preço do tabaco, mais ainda - está demonstrado em múltiplos estudos que o preço é o principal dissuasor do consumo de tabaco - e depois deve facilitar-se as consultas de cessação tabágica, podendo estas realizarem-se em horários pós laborais, para que as pessoas não tenham de faltar ao trabalho. A par disto a aposta no rastreio para o diagnóstico precoce, para que os doentes comecem a ser tratados mais cedo.


E que conselhos daria à população e aos políticos? 
Aos cidadãos que não devem iniciar o consumo do tabaco, o cancro do pulmão e o cancro de pequenas células, em particular, estão muito ligados a este hábito, e aqueles que já iniciaram devem deixar. Aos políticos, sobretudo à tutela, que deve pensar séria e rapidamente na implementação de um projeto piloto para o rastreio do cancro do pulmão. Aos doentes, que se mantenham em boas condições físicas e psicológicas para que os seus médicos consigam encontrar os tratamentos mais adequados à sua doença.

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