André Costa Jorge: “A situação em que nos encontramos deriva de um avolumar de indecisões por parte do Estado”
André Costa Jorge, está do lado dos que saúdam as novas regras do Plano de Ação para as Migrações, dos céticos ou dos críticos e descontentes?
Estou do lado dos que saúdam as regras, que as novas regras que nos parecem positivas. E estou do lado daqueles que entendem que é o papel das organizações não-governamentais em apoiar e melhorar as decisões políticas, sejam elas quais forem, sejam elas de que governo vierem. E, sobretudo, estamos do lado dos migrantes.
É esse o lado em que nos encontramos, procurando contribuir, cumprindo aquilo que é a nossa missão. A missão do JRS - Serviço Jesuíta aos Refugiados é, em primeiro lugar, estar ao lado das pessoas, servi-las naquilo que são as suas necessidades e defendê-las.
Ser a voz das vozes das pessoas que muitas vezes não têm voz. Todos os anos lançamos o chamado “Livro Branco das Migrações”, um documento que analisa que parte do nosso contacto direto nos vários meios onde estamos. Temos um centro de atendimento para migrantes, centros de acolhimento para migrantes sem abrigo e para refugiados.
Acompanhamos, no âmbito da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), os vários programas de reinstalação, desde os barcos humanitários ao acolhimento de refugiados. Estivemos no acolhimento refugiados, na chamada crise de refugiados da Grécia, do Afeganistão, da Ucrânia. Temos, portanto, um conhecimento aprofundado, feito da experiência das pessoas no terreno.
Sabemos onde as coisas funcionam bem e onde funcionam menos bem ou até mal. O papel deste “Livro Branco” é devolver aos decisores políticos a nossa experiência e fazer propostas de alteração.
Este Plano de Ação vai ao encontro do que vocês identificaram como problemas? Vai ajudar a resolvê-los?
Fiquei bastante satisfeito - e acho que qualquer cidadão fica satisfeito - com o distanciamento ao nível do discurso político que o Governo fez relativamente aos discursos marcadamente xenófobos. Acho que é ótimo haver um plano, mesmo quando um plano possa ser imperfeito.
Haver um plano permite a todos que haja escrutínio. Podemos olhar para um plano e aperfeiçoá-lo. Podemos ver onde é que as ideias boas resultaram e onde é que elas não resultaram. E podemos fazer críticas também e melhorias ao longo da sua execução.
Portanto, a primeira ideia é que há um plano e isso é bom. Há um aspeto também positivo: identificamos muitas matérias que estão no Plano que decorrem do nosso “Livro Branco”, com as quais nos identificamos.
Outro aspeto positivo é o Governo ter ouvido, ou procurou ouvir, auscultar a sociedade civil. Eu falo pelo JRS e pela PAR. Posso dizer, e creio que não é nenhuma inconfidência, que estivemos quase três horas em diálogo com o gabinete do secretário de Estado.
Não foi a primeira vez que falámos com os decisores políticos, não é um aspeto único ou exclusivo, mas foi um bom sinal de quem está a começar escutar a quem está no terreno. Ainda estamos numa fase de analisar as propostas e ver de forma mais detalhada onde o plano quer chegar, quais são os estrangulamentos que podemos encontrar.
Mas identificamos um conjunto de aspetos positivos. Por exemplo, a presença das organizações da sociedade civil em espaços de detenção. É uma das propostas fizemos no “Livro Branco” e que vemos presentes no Plano do Governo.
Também a dimensão do reconhecimento de qualificações e competências, isto é, a boa vontade do governo de reforçar a questão dos migrantes qualificados. Trabalhamos há muitos anos nesta matéria.
Desenvolvemos dois projetos de integração profissional de médicos imigrantes em Portugal, em parceria com a Gulbenkian. Fizemos recentemente o levantamento da situação de médicos venezuelanos em Portugal e descobrimos cerca de 200 médicos e que esbarravam, quer na dificuldade que as universidades colocam no processo de reconhecimento de qualificações, quer ao nível do Ministério do Ensino Superior, Ministério Educação e na Ordem dos Médicos.
Agora há aspetos de detalhe sobre como é que isto se vai implementar. Vemos aspetos que é importante ultrapassar. É preciso também aumentar a capacidade do acolhimento de emergência para pessoas migrantes e refugiados. Isto está dito e já o dizemos há muito tempo.
Aliás, no dia 20 de junho, Dia do Refugiado, vamos inaugurar um Centro de Acolhimento em Vendas Novas, com capacidade para cerca de 100 pessoas. É um centro dedicado ao acolhimento de pessoas refugiadas, que era o antigo Colégio dos Salesianos.
Muito neste espírito que o Papa Francisco lançou às organizações da Igreja Católica de disponibilizarem os seus espaços. Muitos dos espaços não estavam adaptados para estruturas de acolhimento e tivemos que o fazer.
Durante os últimos dois anos, também beneficiando os fundos europeus, fizemos essa adaptação. Ficamos felizes que haja a mesma visão para reforço da capacidade de acolhimento também a articulação com os municípios.
Creio que a experiência do Fundão pode e deve ser replicada no país e a nossa presença em Vendas Novas. Temos estado em grande diálogo com a Câmara Municipal de Vendas Novas, que o senhor Presidente da Câmara e creio que é possível replicar. E aqui é muito importante que os municípios e os autarcas vistam esta camisola de porque Portugal precisa de migrantes.
E transformar essas exceções em regra…
Em regra sim. E também no ensino do Português, reforçando a cobertura e envolvendo também as escolas nesta altura. O problema do ensino português não é apenas uma questão de rede, também é uma questão de adaptação à realidade, muito flexível e muito volátil da presença dos imigrantes.
Isto é, não podemos ter modelos de ensino de Português demasiado rígidos, quer ao nível dos conteúdos e do modelo de ensino, quer ao nível da disponibilidade dos programas de ensino, porque a realidade é muito flexível, é uma barreira e muito rápido na integração.
Por exemplo, identificámos logo no início, quando as turmas dos cursos do IEFP exigiam que se tivesse um número X de alunos para abrir. Bastava que faltassem cinco participantes para não haver curso ou quando os cursos não não estavam adaptados para a diversidade e para o background e escolaridade que as pessoas traziam.
Temos pessoas com escolaridade superior, pessoas que vêm de outros alfabetos, de outros lugares. Ensinar Português a quem vem de um contexto os PALOP, por exemplo, ou ensinar Português para quem vem da Eritreia, perdão, que fala tigrínio e que tem outro alfabeto, é muito diferente.
O objetivo é o mesmo, mas deve haver um maior reforço nas competências de quem faz a formação do Português. A sociedade portuguesa deve estar envolvida no acolhimento e na integração dos migrantes e que devem ser encontradas medidas que potenciem a integração dos migrantes.
Também reconhecemos que o plano está em linha com o Pacto Global das Migrações. Há aqui um alinhamento dos objetivos do Governo com o quadro europeu e internacional.
Quais são os problemas que não têm resolução à vista daquilo que foi revelado até agora pelo governo?
Vemos com alguma preocupação esta questão das manifestações de interesse, que tem sido muito focada pelas várias forças políticas.
É preciso desconstruir alguns mitos que se tem ouvido também na comunicação social, de que agora as pessoas só podem emigrar com o visto de trabalho. Não é verdade.
Continuam a haver possibilidade de vir para Portugal por outras formas. A lei prevê um conjunto de medidas e de possibilidades para migrar sem ser apenas com o visto.
Por razões humanitárias é uma possibilidade prevista no artigo 123.º...
O 122.º e o 123.º permitem a regularização sem visto de residência por razões de ordem social, humanitária, etc. E também o reagrupamento familiar.
Sabemos também que a AIMA tem feito um esforço na criação de uma plataforma para facilitar o processo de reagrupamento familiar. Agora é preciso salvaguardar a situação de desproteção que as pessoas possam encontrar.
É preciso também que o sistema do lado do Estado funcione bem e a relação interministerial e é preciso reforçar a capacidade de resposta, desde logo da AIMA. Sabemos que a AIMA tem sido muito pressionada e seus funcionários para dar resposta.
Mas não é uma responsabilidade exclusiva que se possa atribuir a AIMA. É preciso olhar para o presente e para o futuro, mas de facto, há uma história que não podemos negar. Desde 2009 que os relatórios do SEF falavam de insuficiência de recursos. Aliás, em 2017, salvo erro, a expressão usada é de rutura, não só meios humanos, mas também de meios tecnológicos.
Passámos vários governos e por várias cores políticas e há uma responsabilidade partilhada que vai para lá de dez anos. De alguma forma esta área foi esquecida ou ignorada. A situação em que nos encontramos e o que temos para resolver é uma situação que deriva de um avolumar de indecisões e incapacidade por parte do Estado em resolver.
Mas concorda com esta alteração de pôr fim às manifestações de interesse?
É preciso dizer que as manifestações de interesse foram uma medida que o Governo encontrou na altura para superar outras dificuldades. Portanto é um remendo que teve e teve o efeito de provocar também outras situações. Claro que nos preocupa que a eliminação da figura da manifestação de interesse possa provocar situações de irregularidade e de desproteção social que colocam as pessoas migrantes numa situação mais vulnerável ainda.
Mas era preciso mesmo este “travão”?
Politicamente, havia que dar o sinal, porque havia uma coisa que estava a resultar. Havia uma realidade mediática que estava a projetar-se contra os próprios migrantes, que era uma ideia de que havia um certo caos e que havia uma incapacidade de controlo.
Uma realidade mediática ou é a realidade? Porque há inúmeras imagens de todo o país, situações de exploração... Havia uma situação de alguma visibilidade mediática. É verdade que a situação dos migrantes hoje ainda é de desproteção, no sentido de que foi dito às pessoas que estão com a manifestação de interesse que venham, estejam, mas coloquem uma manifestação de interesse. Sabemos que às vezes o sistema permitia que as pessoas colocassem até documentos que não eram os necessários e os válidos. E as pessoas ficariam a aguardar 12 meses. Na verdade, nós sabemos que eram 24 meses e durante esse tempo ficavam a aguardar e não tinham quaisquer tipo de benefícios dos descontos que estavam a fazer. Não podemos concordar com uma situação de exploração tácita das pessoas.
Estava a acontecer?
Estava a acontecer isso, mas também com boa intenção. Porque havia um primeiro reconhecimento que o sistema que deveria funcionar não funcionava, mas o estrangulamento transitou de uma parte do problema para outra parte do problema, isto é, passou para o SEF e depois do SEF passou para a AIMA.
Portanto, o muro foi sempre o mesmo, mas foi mudando de sítio?
Aqui a questão é se não temos capacidade de fazer um investimento certo, quer na melhoria tecnológica, quer na melhoria de meios humanos, então vamos estar sempre a adiar a vida das pessoas. As pessoas estão, de facto, com as vidas suspensas, muitas delas a mais de um ano a dois anos, até dois, três anos com a esperança.
Num cenário hipotético que esperemos que um dia aconteça, em que estes documentos que são essenciais para a integração das pessoas fossem tratados dentro dos prazos, rapidamente, o nosso país tem capacidade para absorver todas estas pessoas?
As pessoas já cá estão e estão a contribuir. Estão a trabalhar, são nossos concidadãos. Podem não ter a sua documentação, não estar num processo de regularização, mas já cá estão. Se Portugal tem capacidade? Não, creio que tem de se trabalhar.
Temos todos de trabalhar para criar condições. Um dos aspetos que nos preocupa muito tem a ver com o acesso à habitação. Esse é um aspeto fundamental que tem de ser francamente melhorado. Isto é transversal à sociedade portuguesa, não é apenas aos migrantes.
Estamos a falar até da classe média. Criámos há quatro anos um gabinete de habitação no JRS, com a tarefa de conseguirmos encontrar alternativas para o acesso à habitação e sermos mediadores na relação entre os migrantes e os senhorios.
O mercado de arrendamento é muito difícil para as pessoas migrantes, sobretudo nos grandes centros urbanos. Por isso também o termos ido para Vendas Novas.
Há vantagem para esses migrantes se não forem para os grandes centros urbanos?
Fora dos centros urbanos há menos oferta e menos oportunidades. Agora é possível desenvolver, como revelou a experiência do Fundão. Digo Fundão, como posso dizer Braga e outras zonas do país em que é possível conjugar a necessidade do acolhimento e da integração com as ofertas e com a dinamização do mercado de trabalho, da vida económica e social de outras localidades.
Consegue fazer uma proporção do que é que por cada Fundão, quantas Odemira temos?
Não, não consigo fazer essa proporção. Mas acho que aqui parte tudo também da capacidade que as autarquias têm de mobilizar e criar condições para o acolhimento de pessoas migrantes.
Há um dado evidente de que o tecido social português está muito envelhecido. Sabemos isso e, portanto, nós vamos precisar e temos que ser capazes de vencer o desafio do acolhimento, de integração e no sentido de se criar também uma sociedade diversa, por um lado, mas também coesa.
Portanto, há aqui um grande desafio de todos, a começar desde logo pelas estruturas mais pequenas freguesias. As autarquias têm que ter um papel ativo nesta dimensão.
Não queria aqui objetivar a questão de Odemira ou outra qualquer. Creio que deve haver uma responsabilização por parte dos municípios. Isto sem descartar naturalmente o papel do Estado central e sobretudo também de quem tem responsabilidades governativas.
Mas deve haver um envolvimento dos municípios e da sociedade civil local e com organizações e promover um espaço de diálogo e de convívio. Porque, na minha experiência, é quando as pessoas se conhecem e estão em contacto.
Quando se cria uma cultura de hospitalidade, é possível vencer desafios e boa parte dos desafios às vezes tem a ver com estranheza, afastamento, que criam situações de exclusão e, às vezes, de discriminação.
O JRS tem uma ligação concreta com as empresas. De que tipo de imigrantes procuram e precisam mais?
A ideia de haver uma política de acolhimento de migrantes qualificados não é totalmente virtuosa. Ela também coloca desafios. Não basta que as pessoas venham qualificadas, é preciso que o país de acolhimento reconheça as suas qualificações.
Isso necessariamente tem que envolver as universidades, as ordens profissionais e outras instâncias. Agora, boa parte do mercado de trabalho em Portugal e da nossa experiência também absorve muitos imigrantes não qualificados.
E vai continuar a absorver porque há muita necessidade de trabalho em áreas onde não são necessariamente necessários migrantes qualificados. Vou dar um exemplo. Temos feito muita formação para cuidados geriátricos.
Somos muito procurados para cuidadores de idosos, por exemplo. Aqui é necessário haver alguma formação em dimensões como a alimentação, o cuidado, técnicas de cuidado de idosos. Mas não é necessário que as pessoas tenham formação superior.
Quando falamos em migração laboral, a migração altamente qualificada coloca também desafios a qualquer governo quanto ao equilíbrio entre as oportunidades que damos a migrantes qualificados, mas também aos nossos jovens qualificados.
Porque nós sabemos que tem havido uma forte tendência para que os jovens portugueses qualificados procurem outros mercados de trabalho e que muitas vezes encontrem oportunidades fora do nosso país.
Ora, o senhor primeiro-ministro, na apresentação do Plano, falou na necessidade de reter os jovens portugueses qualificados. Ótimo. Até porque sou pai de quatro jovens e, portanto, gostava muito que os meus filhos pudessem encontrar trabalho e viver em Portugal, embora ache que é importante haver uma experiência internacional, que as pessoas tenham o mundo e tenham experiências noutros contextos.
Dito isto, para acolher é importante que haja uma grande articulação entre o setor empresarial, as necessidades do mercado de trabalho e onde é que vamos recrutar os tais migrantes qualificados e incluí-los.
Mas não devemos excluir migrantes menos qualificados. Além disso, é preciso apoiar os migrantes qualificados que já cá estão no seu processo de reconhecimento de qualificações. E é no processo de alinhamento da seleção às suas expetativas em termos de trabalho e em termos de melhoria de condições de vida.
Porque a integração bem-sucedida não é apenas que as pessoas fiquem a fazer o que já estão a fazer. É que as pessoas também façam um percurso, um itinerário pessoal, laboral, social. Em Portugal, a integração é um caminho, não é um status, não é uma coisa fixa, é um caminho.
É um caminho que envolve quem chega, mas também envolve quem acolhe. E, portanto, todos nós temos que fazer um processo de integração, não apenas os migrantes.
Não acha que tudo o que temos estado aqui a falar, sobre o que é que deve ser feito para melhorar o acolhimento e integração, devia ter sido uma conversa e medidas tomadas antes de se decidir que Portugal precisava de mais imigrantes e de alterar a lei no sentido de poderem vir mais imigrantes? Ou seja, tudo isto devia ter sido preparado de outra forma. Não acha que houve também alguma responsabilidade política por primeiro abrir a porta e agora, quando já passaram sete anos de termos chegado a uma situação como a que conhecemos, estarmos ainda a falar do que é que devemos fazer para acolher e integrar melhor os imigrantes?
É preciso ver que a realidade migratória é dinâmica, não é? Olhando assim para os últimos anos, em bom rigor, creio que, do ponto de vista do debate político sobre migrações, demos um salto de quase de mais de dez anos para voltarmos a falar sobre imigração, pelo menos nos termos tão amplos como estamos a falar hoje.
O efeito a alteração à Lei de Estrangeiros em 2017 era mais do que expectável...
Desde desde a crise, desde 2014, 2015 a esta parte, o centro do debate sobre políticas migratórias estava focado na questão dos refugiados. O acolhimento de refugiados que tem o seu espaço neste plano, por exemplo, que o Governo apresentou.
Mas nem é maioritário...
Claro, neste plano que o Governo apresentou, a questão dos refugiados, felizmente também foi alvo de um olhar e é uma visão que nos parece também correta na questão dos centros de acolhimento.
Na questão migratória, parece-nos que desde a criação dos CNAIM (Centro Nacional de Acolhimento e Integração de Migrantes) em 2004, tínhamos uma situação muito semelhante a esta. No final, no início deste século, fiz parte da equipa que abriu o CNAIM nessa altura, o Centro Nacional.
Fiz parte dessa equipa do Alto Comissariado, em termos de políticas migratórias, o olhar sobre os migrantes em Portugal. E temos a alguns marcos. O primeiro marco de todos foi a criação de uma coisa chamada Secretariado Intercultural.
Criada por Roberto Carneiro, que visava dar a formação a professores nas escolas, trabalhar essa dimensão da educação intercultural nos curricula dos alunos, envolvendo os professores. Foi o primeiro olhar sobre a questão migratória em Portugal, a presença de outros que não o cidadão português comum. Depois, a criação do alto-comissário.
José Leitão foi o primeiro alto-comissário, creio que em 1996, 98. Depois, com a chegada da imigração de Leste vimos que havia um grande boom e houve necessidade de adaptar e alterar a Lei de Estrangeiros e a Lei da Nacionalidade. Em 2003 criou-se o Alto-Comissariado e não apenas o Alto-comissário.
O Padre Vaz Pinto foi o segundo alto-comissário a seguir ao doutor José Leitão. Houve uma política para as migrações no Governo de Durão Barroso, salvo erro. E então há uma política para as migrações, um plano para as migrações, a existência de uma rede de centros locais de apoio ao emigrante, dos centros nacionais.
E há uma primeira visão estratégica sobre a questão do acolhimento de imigrantes que vai depois até ao fim de 2013, 2014 e, que as coisas estão mais ou menos consolidadas.
Mas o volume de de imigrantes a chegar era muito, muito menor.
Chegámos ao meio milhão de pessoas. Agora parece que toda esta matéria, de alguma forma, se silenciou em favor da situação dos refugiados. E a explicação é muito simples. Quer dizer, nós tivemos vários acontecimentos políticos que acabaram por retirar o foco da questão das migrações.
Mas houve um acontecimento que levou a uma alteração profunda que teve a ver com uma situação que hoje também está aqui no plano e que é muito importante.
Tem a ver com um acontecimento de detenção administrativa de um imigrante. Num aeroporto, num Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) houve uma morte.
Toda a gente conhece esta história e isso foi uma espécie de gota de água, digamos, na vida do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
Tornou inevitável a extinção do SEF?
Tornou inevitável. Enfim, a decisão foi política, mas é o que estava previsto também no Programa do Governo. Era uma separação das funções administrativas das funções policiais.
O processo decorreu, como sabemos, com a criação da AIMA, mas não se resolveu. Na nossa perspetiva, não se resolveu ou não se conseguiu resolver da melhor forma todo o peso de falta de recursos, toda a necessidade de reformar o modelo também de serviço tecnológico, do apoio administrativo que permitisse que a transição para o novo modelo fosse correr sem estrangulamentos. E isso, de facto, não aconteceu. E chegámos a esta situação.
A aceleração que acabou por motivar aqui alguns erros? Consegue conceber a ideia de, no médio prazo, pelo menos, já para não falar no longo prazo, a ideia de não ser um polícia a primeira pessoa que uma pessoa que procura trabalho em Portugal encontra quando chega a Portugal?
Sim. Há uma dimensão de segurança que deve estar presente na vida dos migrantes, mas as migrações não são um caso de polícia.
São um caso, sobretudo de os Estados serem capazes de dar resposta administrativa e são um caso de sociedade estar envolvida no processo de acolhimento e integração. Haver capacidade de acolher e integrar as pessoas que procuram. No caso de Portugal, para viver.
A polícia deve atuar e deve estar presente em situações de exploração. É preciso lembrar que, na maior parte das vezes, os migrantes são vítimas. São vítimas quando não há vias legais e seguras, capazes de dar resposta atempadamente.
São vítimas quando muitas vezes optam ou são forçados a ir por via de redes que lucram brutalmente com a situação precária em que os migrantes se encontram, com a necessidade de encontrar as pessoas e procurarem melhores condições de vida. No caso dos migrantes e caso dos refugiados.
Quando as pessoas, no desespero e na total fragilidade em que se encontram, não tiverem outras vias se não recorrerem a vias e a esquemas ilegais, aí deve haver uma dimensão de segurança. Deve haver uma fiscalização apertada a não sobre os migrantes, mas sobre tudo aquilo que muitas vezes vive em torno das situações de incapacidade que os Estados criam quando não são capazes de criar vias suficientemente ágeis, fortes, claras, para que as pessoas consigam migrar em segurança.
Depois há um aspeto também nos países de acolhimento que tem a ver com com a situação que as pessoas vivem, muitas vezes alvo de exploração no trabalho, de exploração na habitação, no acesso à habitação, de discriminação, enfim, na vida social.
E não posso aceitar que haja violência sobre migrantes, como temos vindo a ver. É como se isso não fosse uma agressão contra todos nós. Os direitos dos migrantes são direitos humanos. Os direitos humanos são direitos de todos nós. Portanto, creio que a polícia ou qualquer força policial deve proteger os cidadãos e deve garantir que os direitos humanos são aplicados.
Devo dizer que nós temos tido com a PSP uma relação muito positiva. Estamos desde 2006 presentes no único Centro de Instalação Temporária que há no país, fora dos aeroportos, que é a Unidade Habitacional de Santo António e a nossa relação é com a PSP.
Para minha satisfação e devo dizê-lo, a PSP tem tido uma postura muito positiva e colaborante o JRS, mas também com os outros parceiros, com a OIM e com os Médicos do Mundo que fazem parte da parceria.
No caso concreto na UHSA, o que reflete uma atitude construtiva e positiva. Sobretudo, não devemos olhar para os migrantes como se fossem criminosos, sobretudo aqueles que estão em situação irregular, porque aqueles estão em situação irregular ou indocumentado muitas vezes são aqueles que são mais vítimas e merecem mais proteção no sentido humano do termo.
E, portanto, eu vejo a PSP no caso, ou a Polícia Judiciária, e qualquer força de segurança, como como forças de um Estado de Direito e, portanto, devem proteger e devem ter um olhar sobre os mais frágeis, não no sentido persecutório. Não devemos criar uma cultura securitária, mas uma cultura de segurança, que é bem diferente.
E como é que era a relação com o SEF?
Tinha com certeza aspetos muito positivos, devo dizê-lo. Nós tínhamos uma relação também muito longa com o SEF. Aliás, a nossa presença na Unidade Habitacional de Santo António deveu-se a uma colaboração com o SEF.
Infelizmente, nós tentámos várias vezes estar presentes nos aeroportos, nos EECIT e infelizmente, também para o SEF, isso não foi executado. Porque eu acho que isso desprotegeu o SEF. Acho não, é uma evidência.
Sabem por que razão é que nunca aconteceu?
Havia algum receio que num espaço como aquele pudesse causar alguma perturbação o facto de haver uma organização da sociedade civil ou uma organização não-governamental….não sei.
Continuam sem estar presentes nos aeroportos?
Nós não. Gostávamos de estar presente porque faz parte da nossa missão, mas sabemos que estão neste momento presentes a OIM e os Médicos do Mundo.
Nós gostávamos de estar presentes também. Aliás, replicando aquilo que é considerado internacionalmente uma boa prática. Desde logo quando foi criada a UHSA, no Porto.
Gostávamos estar presente no sentido de podermos acompanhar as pessoas migrantes que ali se encontram. É preciso entender estas pessoas não cometeram nenhum crime, porque migrar irregularmente não é um crime, estar indocumentado não é um crime. É uma situação irregular.
É uma situação em que o Estado deve proteger as pessoas, colocá-las à sua guarda. Esta é uma preocupação que nós aqui no Plano vemos e que, no fundo, temos e gostávamos e queremos continuar a trabalhar.
E vamos com certeza ter ocasião de dialogar mais com o governo, no sentido de reforçar a presença nestes espaços. O plano prevê a criação de novos CIT, não é? Novos espaços, centros de instalação temporária de centros de detenção. Nós preconizamos e defendemos as alternativas à detenção, isto é, a detenção é uma medida administrativa. As pessoas ficam à guarda do Estado.
Aliás, a lei prevê que a detenção seja a última rácio, isto é, a detenção só e só deve ser efetivada quando não há alternativas. Portanto, deve haver alternativas à detenção porque a privação de liberdade é muito impactante para a saúde mental das pessoas.
É, no fundo, uma violência que fazemos perante as pessoas e acontece muitas vezes quando as pessoas não são retornadas, vamos dizer assim, quando não são devolvidas ao país de origem. Muitas vezes, quando são, vão para a rua, vão e ficam em situação ainda mais desprotegida.
Tem a ver também com a situação que as pessoas possam muitas vezes encontrar no momento da sua vida. Nós defendemos que o acompanhamento das pessoas deve ser feito num espaço que respeite a sua dignidade e que, se a pessoa não representa uma ameaça para o país - e de facto não representa, as pessoas que ali estão, não representam uma ameaça para o país e o Estado tem de saber onde é que as pessoas se encontram, é a sua responsabilidade - deve haver uma uma articulação entre a pessoa migrante e o Estado que o acolhe.
Agora não representando uma ameaça, as pessoas devem ser acompanhadas de outra maneira que não seja a privação de liberdade.
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