Gaguez: Ainda há "um longo caminho a percorrer" contra o preconceito
É como se alguém estivesse a caminhar sobre o gelo e perdesse o equilíbrio". Esta é a expressão utilizada por Gonçalo Leal, terapeuta da fala e cofundador do Centro de Tratamento de Gaguez, para descrever a perturbação da fala que afeta cerca de 100 mil portugueses e 68 milhões de pessoas no mundo.
Em conversa com o DN, Gonçalo Leal explica que a gaguez é uma condição que ainda exige investigação, podendo a sua causa ser determinada por diferentes fatores. No entanto, uma coisa é certa: ainda que "durante muito tempo se pensasse que a causa da gaguez seria emocional", os recentes estudos apontam que a gaguez é neurológica, estando "relacionada com alterações na forma como o cérebro processa a fala".
"Foram encontradas nas pessoas que gaguejam algumas alterações na fala em termos cerebrais. Portanto, hoje a gaguez é considerada uma característica neurológica e não algo emocional", frisa.
Nos casos mais comuns, a gaguez pode surgir muito cedo, começando a demonstrar-se entre os dois e os três anos de idade. Contudo, pode aparecer também até aos 12 anos e em idade adulta - ainda que neste último caso já exista uma "etiologia diferente da tradicional".
"O mais comum é aparecer em criança e depois seguem-se duas situações: ou desaparece - porque há muitos casos em que existe uma espécie de remissão espontânea na infância - ou então torna-se crónica e prossegue para a vida adulta", desenvolve.
"A gaguez está associada a uma sensação de perda de controlo, ou seja, a pessoa tem uma sensação interna de muito mau estar".
Aliás, esta perturbação é marcada pela variabilidade: não é sempre igual. "Há alturas em que pode ser muito intensa e outras em que pode nem acontecer de todo. Por isso é que durante muito tempo se pensou que fosse uma questão emocional", esclarece Gonçalo.
Ainda que a gaguez não tenha causa emocional, de ansiedade ou nervosismo, pode impactar severamente o lado emocional, uma vez que "as pessoas com gaguez ainda vivem num mundo que não as entende e muitas vezes têm que lidar com o estigma, a incompreensão, o gozo e o bullying e isto sim pode desencadear uma perturbação por ansiedade".
"Até mesmo nas escolas pode ser complicado porque muitas vezes os professores não compreendem e sujeitam as crianças que gaguejam a momentos complicados", diz.
Gonçalo Leal considera que o preconceito em relação a esta perturbação "passa quase sempre pelo desconhecimento por parte dos outros e principalmente por não entenderem que a gaguez é algo que a pessoa não tem culpa nem controlo". Como terapeuta, já acompanhou dezenas de casos e garante que a gaguez não representa uma fragilidade emocional: "Pelo contrário, as pessoas com quem eu costumo trabalhar são pessoas bastante inteligentes, que têm uma resiliência fora do comum e que têm percursos de vida muito interessantes".
Assim sendo, relembra que "temos ainda um longo caminho a percorrer enquanto sociedade para perceber esta e outras condições e para que as coisas se tornem mais fáceis".
As terapias que ajudam a lidar diariamente com a gaguez são baseadas "em exercícios para mudar a forma como o cérebro processa a fala". No entanto, já existem tecnologias que prometem revolucionar o futuro dos tratamentos de gaguez. Em vários países, incluindo Portugal, a realidade virtual já é atualmente utilizada para ajudar pessoas a lidar com situações de interação social. O protótipo Speech Immersion Hub do Centro de Tratamento de Gaguez é um dos exemplos, reforçando a qualidade das avaliações e tratamentos de gaguez.
Gerald Maguire é um psiquiatra norte-americano que tem dedicado a sua vida à investigação da gaguez. A verdade é que vive com esta condição desde muito novo e tomou como missão encontrar respostas para este problema, tendo sido secretário-geral da National Stuttering Association.
Ao DN, Gerald explica que para além de ajudar nos tratamentos da gaguez, sabe o que é viver com esta condição como ninguém. "Na escola pensava "porque é que sou diferente?" e não entendia o porquê de as outras crianças conseguirem falar fluentemente e eu não. Mais tarde percebi que talvez isto fosse uma oportunidade para descobrir o que era diferente no meu cérebro e decidi estudar medicina".
Gerald alerta que ainda há muito a ser feito quanto ao estudo e tratamento da gaguez: "Na faculdade, quando estudei várias condições cerebrais apercebi-me que não aprendemos nada sobre gaguez. E mesmo nos dias de hoje ainda não se sabe muito sobre este assunto. A gaguez tem sido muito ignorada".
Existe uma questão que persiste quanto à gaguez: "Poderá haver uma cura?". A isso Gerald responde que "por enquanto não". "Tal como na maioria das condições neurológicas, nós não curamos, mas tratamos. Conseguimos tratar a diabetes, a hipertensão ou a depressão?Sim, mas isso não significa que haja cura", justifica.
Para as pessoas que lidam diariamente com a gaguez, Gerald testemunha que é importante "continuar com esperança, porque novos tratamentos virão no futuro" e pede que "procurem sempre fazer terapia com profissionais da área que tenham uma mente aberta e que estejam a par das mais recentes investigações sobre a gaguez".
ines.dias@dn.pt