De Lisboa a Braga, retrato de um país que sai à rua pelo direito a uma casa
Em Lisboa como no Porto, em Viseu como em Braga, em Aveiro como em Coimbra. Estas são as cidades que hoje saem à rua para lutar contra um problema comum: a falta de casas para viver.
Há dez anos que Suse Alves morava numa rua do centro de Lisboa, a caminho da Graça. Era uma casa antiga, num prédio propriedade da ACAPO (Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal). Natural de Leiria, parte da "geração recibos verdes" que agora passou os 40 anos, tentou a sua sorte na capital, onde já morava a irmã. O contrato passou, aliás, de uma para a outra. Há dois anos, Suse encheu-se de esperança quando "foram lá a casa fazer o certificado energético, porque supostamente iriam fazer obras (finalmente), e concorrer a um programa de reabilitação". Nunca aconteceu.
Em dezembro, numa altura em que também ela já procurava outro lugar para morar, assustada com o nível de degradação do prédio, foi surpreendida com uma notificação de despejo. "Desde setembro que já andava à procura de casa. E foi assim até janeiro. Uma odisseia", conta ao DN, ela que - por ironia - trabalha no ramo imobiliário. Chegou a um acordo com a instituição proprietária, sem ignorar que "aquele vai ser mais um prédio devoluto em Lisboa": na última década apenas duas frações eram ocupadas, as restantes quatro já estavam ao abandono, e nenhuma recebeu obras.
"Infelizmente não é um caso único. Há várias instituições que são proprietárias de casas em Lisboa, que as receberam de borla, e não fazem nada para as manter. Posso dizer que grande parte do património que está ao abandono na cidade ou é da Santa Casa da Misericórdia ou é da Câmara Municipal. Por isso digo que o nosso problema não é de habitação, é de fiscalização", afirma Suse Alves. Quando começou a trabalhar na área, há 11 anos, "o máximo de valor por que arrendava era até 599 euros. Hoje em dia, tenho o meu próprio caso: consegui um T1 com muita dificuldade, na mesma zona, mas por 1000 euros".
O caso de Suse ilustra bem não só a subida do preço das rendas nos últimos anos, como o estado vulnerável a que chegou a Habitação, ou a falta dela. É em nome desses milhares que pedem "casa para viver" que neste sábado, 01 de abril, acontece a maior manifestação já convocada em Portugal sob este desígnio. São cerca de 100 associações e coletivos, representadas por cinco mulheres, que aqui assumem o papel de porta-voz do protesto. Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Aveiro e Viseu têm concentrações marcadas a partir das 14h30, numa iniciativa integrada na Housing Action Days 2023, uma semana de ações e manifestações por toda a Europa pelo direito à habitação, coordenados pela European Action Coalition for the Right to Housing and the City.
Entretanto, de outros pontos do país não param de chegar mensagens, denúncias, numa espiral de contestação que cresce.
Arrendar consoante a cor da pele
Andressa Nascimento vai marcar presença na manifestação de Aveiro, agendada para as 15 horas, na Praça Melo Freitas.
Casada com um cidadão português, criado no Brasil, chegou a Portugal em 2013, para cumprir o sonho do marido: "regressar ao país-natal e ter aqui uma vida tranquila". As raízes estavam na Guarda, mas o frio afastou o casal, optando então por Aveiro. Porém, nos últimos tempos o sonho assume contornos de pesadelo. Ao cabo de oito anos a morar no mesmo T1 - que então o casal arrendou dos sobrinhos de um idosa que estava no Lar - tem até junho para deixar o imóvel. "O apartamento foi herdado por um afilhado da senhora (que entretanto faleceu), que mora em Setúbal, que nunca veio ver como estava. Mas agora o filho dele vai casar, e decidiu vender para que o filho possa dar entrada de uma casa no Porto. Propuseram-nos comprar. Mas nós não temos condições de financiamento para tal", conta ao DN Andressa.
Não demorou muito para que o apartamento fosse vendido. E a nova proprietária informou os inquilinos que não tinha intenção de renovar o contrato de arrendamento. "Quer reformar, e então vai arrendar de novo, mas por um preço muito mais alto" do que os 350 euros atuais. O casal sabia, de antemão, que não conseguiria arrendar "nada por esse preço em Aveiro", estipulando por isso um teto máximo de 700 euros.
Desde há meses que esta técnica de bilhética numa empresa de transporte de passageiros bate a todos as portas de imobiliárias e particulares, numa corrida contra o tempo. E então percebeu que tinha um problema acrescido, e que também ele se agrava: "Eu sou brasileira e sou negra. Às vezes chego a pedir a uma colega de trabalho que faça as chamadas por mim, porque senão já nem me deixam visitar o apartamento, por causa do sotaque".
"Eu sinto um misto de dificuldades: pelos valores (entre 750 e 1600 euros, um T1), pela nacionalidade e pela raça. Uma funcionária da imobiliária disse-me que filtram os interessados, não querem arrendar a chineses, indianos ou brasileiros", queixa-se Andressa, em Aveiro.
Nos casos em que consegue dar esse passo, a barreira acontece quando a encaram. "Eu sinto um misto de dificuldades: pelos valores (pedem-me muito acima do que eu conseguiria pagar, os preços atualmente variam entre 750 e 1600 euros, por um T1), pela nacionalidade e pela própria raça. Uma funcionária da imobiliária disse-me claramente que filtram os interessados, porque não estão dispostos a arrendar a chineses, indianos ou brasileiros".
À sua volta, somam-se casos de concidadãos "a quem pedem uma caução de 12 meses. Ou então pior: um casal a quem negaram arrendar porque eles tinham dois filhos pequenos, e ali não era permitido crianças. Isto nunca aconteceu, nem sei se é legal".
Foi a pensar em todos estes atropelos à lei e à própria Constituição que o coletivo Habitação Hoje, no Porto, criou um "manual de resistência", que congrega informação jurídica e aconselhamento de vária ordem para todos, a pensar naqueles a quem a ameaça de despejo pode bater à porta. "Ninguém está livre de ficar desempregado ou de não conseguir pagar as rendas exorbitantes que são praticadas hoje em dia. Fizemo-lo porque há milhares de pessoas sem acesso a uma habitação digna", explica Helena Souto, co-organizadora da manifestação de 01 de abril.
A Habitação Hoje nasceu em 2021, em plena pandemia, "numa altura em que percebemos que as pessoas com mais problemas não estavam a ser abrangidas pelos apoios, e ao mesmo tempo lhes pediam para ficar em casa. Na casa que elas não tinham", revela uma das fundadoras. De então para cá, o coletivo foi crescendo, acompanhando o problema da Habitação em Portugal, que galopa de norte a sul. Quinzenalmente promove assembleias, na Associação de Moradores da Lapa, que reúnem cada vez mais gente.
Faltam dados concretos sobre a Habitação em Portugal, e essa é uma parte do problema. Neste coletivo do Porto há um grupo de voluntários que tem coligido vários dados. "Um T1 na freguesia do Bonfim, no Porto, tem de renda média de mercado 657€, e de renda acessível 525€. (O valor da renda é calculado para um apartamento com a área mínima regulamentar e um lugar de garagem). São valores incomportáveis para os rendimentos das pessoas em Portugal, que se agravam consideravelmente quando consideramos famílias monoparentais ou monomaternais, onde a sobrecarga com a habitação se agrava consideravelmente", afirma Helena Souto, igualmente preocupada com a situação de pessoas idosas.
"É igualmente alarmante, face ao baixo valor das reformas e pensões; ou quando consideramos agregados jovens, onde a precariedade do mercado de trabalho leva a que se adiem as vidas e se condicionem muitas escolhas, começando o sufoco com o acesso a uma habitação desde o momento em que se quer sair de casa dos pais".
"Um T1 na freguesia do Bonfim, no Porto, tem de renda média de mercado 657€, e de renda acessível 525€. São valores incomportáveis para os rendimentos das pessoas em Portugal"
No pacote Mais Habitação - aprovado esta semana - o Governo propõe incentivos fiscais para a aplicação desta renda por privados.
Mas além disso, as propostas para o património público passam pela alteração de um regime de renda apoiada (renda aplicada na habitação social, de acordo com os rendimentos), para este regime de renda acessível (20% abaixo da renda de mercado).
"Isto é muito grave, porque não se está a atacar o problema pela base, excluindo os 70% mais pobres do país, e aqueles que historicamente sempre sofreram com o problema da habitação", conclui Helena Souto.
Coimbra tem mais encanto... na hora de subir preços
Coimbra sempre foi uma cidade cara para morar, à conta da Universidade. Mas os últimos anos batem todos os recordes de preços. "Entre Março de 2018 e Fevereiro de 2020 o valor médio da avaliação bancária dos alojamentos subiu 11,7% nos apartamentos e 9,7% nas moradias. Mas no caso das rendas, só entre Fevereiro e Março deste ano, o valor médio subiu 0.9%", revela Mariana Rodrigues, porta-voz do coletivo Porta Adentro, acabado de nascer. Segundo a estratégia local de habitação, "estão 600 famílias em necessidade grave de alojamento, sendo que 195 são famílias monoparentais", acrescenta. O Plano Nacional para o Alojamento para o Ensino Superior ainda não criou qualquer cama em Coimbra. "É preciso perceber, em conjunto com a reitoria, uma forma de
limitar e tabelar as rendas para estudantes", sublinha Mariana.
Também em Viseu o ensino superior tem servido para inflacionar o valor das rendas. Do ano letivo de 2021 para 2022 registou-se uma redução de 43% na oferta de quartos.
José Lopes, da Plataforma Já Marchavas, fala de um aumento de 54% no valor das rendas, entre 2018 e 2022. "Ao mesmo tempo nota-se a especulação imobiliária: temos 3461 casas vazias. Não são devolutas, são propriedade de fundos imobiliários, estão prontas a habitar", refere ao DN. "Por outro lado, a estratégia local de habitação de Viseu identifica 1121 pessoas a viver em condições indignas, e 89 agregados sem condições de habitabilidade, além de termos 108 barracas ou semelhantes. A empresa municipal de habitação (Habisolvis) recebeu 250 pedidos de habitação de emergência no ano de 2021. Sem contar que 8,2% das casas do concelho estão sobrelotadas, segundo os últimos censos", acrescenta José Lopes.
Nos concelhos à volta, em pleno interior do país, como é o caso de Mangualde, pedem-se 480 euros por um T1.
Na cidade "mais brasileira de Portugal", Braga, Luís Nuno Barbosa, da associação Civitas, fala em nome de 27 coletivos diferentes e muitas pessoas individuais envolvidas na organização da manifestação. Aqui, acredita, "a realidade não é muito diferente do Porto e Lisboa: houve uma escalada muito rápida do preço da habitação, e as comunidades mais vulneráveis veem esse direito limitado". Nesta última vaga de imigração, "vieram muitas pessoas enganadas, fruto de muitos esquemas".
Na "cidade mais brasileira de Portugal", Braga, a escalada de preços atinge níveis históricos. "Um quarto pode custar 600 ou 700 euros, um T2 1200"
De resto, a escalada de preços atinge níveis históricos. "Um quarto pode custar 600 ou 700 euros, um T2 1200". A cidade vai sendo dominada, como as outras, por um novo tempo. Ou como canta Luca Argel, na canção "Gentrificasamba", "Fechou a taberna, a confeitaria e o alfarrabista/A cidade vai virar só hotel para turista".
Preço por metro quadrado dispara em todo o país
Os dados são do Instituto Nacional de Estatística e mostram que, na Área Metropolitana de Lisboa, houve um aumento de 1 242 €/m2 no 3.º trimestre de 2017 para 2 156 €/m2 no 3.º trimestre 2022. Já na Área Metropolitana do Porto, de 1037 aumentou para 1660 €/m2. No Algarve, de 1348 subiu para 2378; na região de Coimbra, apesar de tudo é o menor aumento: de 932 para 1079. Na região de Aveiro, aumentou de 943 em 2017 para 1182 em 2022. Em Braga, duplicou:
de 673 euros para 1292.
"O problema da Habitação afeta sobretudo as mulheres"
Rita Silva, porta-voz da Associação Habita, está ligada ao tema da Habitação desde 2005. É uma das cinco porta-vozes da manifestação "Casa Para Viver". São todas mulheres. Para esta investigadora faz todo o sentido, uma vez que - sublinha - "o problema da Habitação afeta sobretudo as mulheres", muitas vezes ao leme de famílias monoparentais.
"Nós já estamos há muito tempo no terreno, no apoio às famílias afetadas pelo problema da Habitação. Atuamos sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa, apesar de recebermos muitas vezes mensagens e pedidos de ajuda de vários pontos do país", conta ao DN, entre reuniões preparatórias do protesto deste 01 de abril, que em Lisboa quer encher a Alameda.
"O que nós vemos ao longo do tempo é que o problema só se agrava", afirma Rita Silva, considerando que "atualmente é mais mais grave, porque se alastrou e aprofundou". Apesar de ser certo que "há muitos setores da população que vivem a crise da Habitação desde sempre (como é o caso de populações migrantes e racializadas, ciganas, entre outras), o problema agravou-se ainda mais para as populações vulneráveis, e alastrou-se no sentido em que passou a afetar muitos outros setores sociais da população". Rita aponta "os jovens estudantes, que por vezes não conseguem continuar a estudar se isso implicar uma deslocação para outra cidade".
No site da Habita e da manifestação há testemunhos que mostram bem como isso [lhes]afeta o futuro.
Famílias vivem em quartos
Rita Silva tem acompanhado a metamorfose da cidade de Lisboa e arredores. "Temos muitas famílias hoje a viver em quartos", aponta, exemplificando com valores: "são famílias que pagam 500 euros por num quarto em Queluz ou em Camarate. Mas tenho falado com famílias que dividem um T3, em que cada quarto é uma família".
"Também temos pessoas que têm casa própria, cujas prestações bancárias aumentaram muito, e que estão muito preocupadas em como vão conseguir continuar a pagar a prestação bancária, fazendo face ao aumento do custo de vida". Fica-lhe na memória recente o caso de uma professora, que juntamente com o marido comprou casa em Corroios, mas nunca ficou colocada perto de casa. "Para conseguir ir trabalhar tem que gastar muito, ao mesmo tempo que vê a prestação aumentar 300 euros".
"Também temos pessoas que têm casa própria, cujas prestações bancárias aumentaram muito, e que estão muito preocupadas em como vão conseguir continuar a pagar a prestação bancária"
Em Braga, também Luís Nuno Barbosa tem nota dessa nova realidade. "Há uma mãe com duas filhas, de 7 e 14 anos, que paga quase 700 euros por um quarto. A senhoria veio informá-la no início do ano que tinha boas notícias, pois não iria atualizar o preço da renda. Mas em compensação a família deixaria de ter acesso à sala, que ela iria transformar em mais um quarto para arrendar".
No manifesto da manifestação "Casa para Viver" estão bem claras as reivindicações destes coletivos: O direito à habitação, o direito à cidade, e o inerente "fim da exploração e do aumento do custo de vida".
dnot@dn.pt