Adeus hospitais, olá YouTube. O português ganhou um embaixador inesperado
Leonardo Coelho completou o curso de medicina, mas resolveu mudar de vida ainda antes do exame para a especialidade. Ambicionava tornar-se nómada digital e criar o seu próprio negócio online. Tentou vender iscos de pesca, artigos religiosos e chegou a pensar no setor do turismo. Mas foram a paixão por línguas e o primeiro confinamento que lhe mostraram outro caminho.
Sentados à mesa, copo com sidra por perto, três amigos vão introduzindo na conversa bem disposta palavras em português que podem ter interpretações bem diferentes se ditas em Portugal ou no Brasil. Como rapariga, que por cá é aplicada em referência a uma jovem mulher, mas do outro lado do Atlântico, em algumas regiões, pode ser um sinónimo de prostituta. Seguem-se outros exemplos capazes de provocar constrangimentos numa conversa luso-brasileira, como gozar, propina ou pica. O vídeo de 18.20 minutos tem como protagonistas o lisboeta Leonardo, a belo-horizontina Carol e a britânica Liz e já foi visto mais de 1,5 milhões de vezes desde que foi carregado há seis meses para a plataforma YouTube. É um dos mais de 50 episódios do canal Portuguese with Leo, projeto online criado por Leonardo Coelho em julho de 2020 com o objetivo de dar algum apoio a quem está a tentar aprender ou aperfeiçoar o português.
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O canal foi também a forma que Leonardo Coelho encontrou para satisfazer uma ambição que foi ganhando corpo nos últimos anos: "ser um nómada digital". Na verdade, o percurso académico deste jovem de 28 anos devia tê-lo conduzido a uma profissão muito diferente. Leonardo completou, em 2017, o curso de medicina na FMUL, em Lisboa, mas precisou de iniciar o ano comum (o que antecede o exame para a especialidade médica), já nos hospitais, para perceber que tinha de mudar de rumo para ser feliz.
"Não é que não goste de medicina. Mas a vida de médico não é a que queria ter. Fui tendo mais certezas sobre isso durante o ano comum, em que vamos passando por alguns serviços, e que não cheguei a terminar. Por isso, em vez de voltar a mergulhar no estudo para o exame de acesso à especialidade, tomei a decisão de ir atrás de um sonho que tinha há algum tempo: tornar-me nómada digital. E isso não era compatível com um hospital, obviamente, onde tinha de marcar o ponto com a impressão digital."
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55 vídeos publicados no canal Portuguese with Leo. O primeiro foi divulgado a 23 de julho de 2020 no youtube. Juntos somam mais de cinco milhões de visualizações.
O sonho existia, o "desejo de arriscar" também, mas o caminho a seguir estava ainda longe de ser claro. O exemplo próximo de um amigo, com quem partilhava casa em Lisboa, foi-lhe dando as primeiras ideias. "Aquilo que para mim era um sonho era, afinal, mais simples do que parecia. Agora, tinha ali à minha frente um amigo meu, sentadinho no sofá de casa, a responder a clientes e a cuidar do seu próprio negócio. Era formado em matemática aplicada, tinha um emprego bem remunerado mas que implicava trabalhar mais de 12 horas por dia, em São Francisco, nos Estados Unidos, mas resolveu mudar de vida e abrir uma loja online".
O amigo de Leonardo vendia réplicas de "championship rings", anéis entregues em muitas modalidades desportivas nos Estados Unidos aos jogadores das equipas campeãs e que podem atingir valores na casa das centenas de milhar de dólares em leilões da especialidade. E estava a dar-se bem. Inspirado por esse exemplo, Leonardo também tentou montar o seu negócio online. Primeiro foi uma loja de iscos de pesca; depois outra de artigos religiosos. Nenhuma resultou financeiramente. "Mas todas me deram experiência", ressalva.
Após algum tempo em viagem pela Ásia e América do Sul, em que foi trabalhando remotamente, como tradutor freelance e também no atendimento a clientes da loja do amigo, no regresso a Portugal precisava de dinheiro para pagar as contas e rapidamente voltou à atividade como guia turístico, algo que já tinha feito após abandonar o ano comum para juntar dinheiro para viajar. Estávamos no verão de 2019 e Lisboa (na verdade, o destino Portugal) vivia o boom da procura turística. Não lhe faltava trabalho e os dias podiam ser bastante lucrativos. "Tive um tour a pé em que consegui 250 euros. Era algo que gostava de fazer e fui aprendendo mais sobre como interagir com as pessoas, como falar em público, como fazer render uma visita, etc. Guias que não são muito bons não duram muito. Mas por outro lado o céu é o limite". Chegou até a ponderar criar uma empresa, dirigida a turistas mais abastados, bem como apostar no imobiliário, comprar uma casa para alugar. Mas, no início de 2020, o mundo mudou com a pandemia de covid-19. E, como se sabe, o turismo veio por água abaixo.
A pandemia deu uma ajuda
Fechado em casa, Leonardo Coelho usou parte do tempo para aperfeiçoar o francês, uma das seis línguas que consegue falar. Para o fazer, recorreu às ferramentas digitais, principalmente ao canal innerFrench (que tem mais de meio milhão de subscritores no youtube). Foi então que se fez luz: porque não fazer algo semelhante centrado na língua portuguesa, em particular no português Europeu? "Pensei: eu sou capaz de fazer isto. Mais do que a oferta que já existia, a minha pergunta era se ia ter procura, porque, afinal, 95% dos falantes de português são brasileiros ou falam português do Brasil. Mas fui em frente, pensei que podia agarrar e dominar um nicho de pessoas interessadas no português Europeu. Pessoas que, por exemplo, estivessem a mudar-se para Portugal".
O projeto obedeceu, logo no arranque, a uma série de premissas. Seria multiplataforma (além do canal de YouTube, tem um site, páginas nas redes sociais Instagram e Facebook e podcasts no Spotify, Google e Apple); a dicção do texto seria feita de forma pausada para facilitar o entendimento das palavras e da pronúncia; todos os programas seriam legendados automaticamente no YouTube; transcritos em português no site - "para aprender uma língua, no início, é essencial que a pessoa também a possa ler" - e, mais do que lições de gramática, iriam centrar-se em aspetos da história de Portugal, sotaques, lugares, costumes e provérbios. A 23 de julho de 2020 seria então publicado o episódio 0 a apresentar o canal e uma semana depois o episódio 1: "Um café e um pastel de nata".
Leonardo Coelho trabalha sozinho: grava, edita, distribui pelas plataformas, gere as redes e faz os contactos para parcerias com outros youtubers. Mantém o hábito de registar o seu dia a dia num diário, algo que "até pode vir a dar um tema para um próximo episódio". Guarda também em folhas de excel os registos de todo o dinheiro que ganha e gasta, bem como gráficos de desempenho do canal em vários items. A organização esteve presente desde o início do projeto, de modo a poder publicar todas as semanas um novo vídeo. De julho a dezembro de 2020 o canal foi ganhando tração. Uma das estratégias a que recorreu foi partilhar em grupos de Facebook de estrangeiros em Portugal, de várias nacionalidades, links para os seus vídeos: "Tive o cuidado de guardar a data e o grupo em que fazia cada partilha, para não estar sempre a usar esse recurso, tornar-me chato e acabar expulso do grupo. Foi isso que me permitiu ganhar pedalada e passar de 40 subscritores, que eram essencialmente família e amigos, para 1000 em menos de dois meses".
1,45 euros é o valor médio que Leonardo Coelho diz receber enquanto parceiro do youtube por cada 1000 visualizações que consegue com os seus vídeos.
Tem memorizadas as datas que marcaram a evolução do canal e, nestas, há uma que se distingue: em dezembro de 2020, o vídeo Português Europeu vs. Português Brasileiro: palavras diferentes com o mesmo significado, 15.º episódio de Portuguese with Leo (hoje com quase 900 mil visualizações), entra em força no mercado brasileiro e traz um número anormal de tráfego e subscritores. É com este vídeo que o canal consegue alcançar as duas condições para se tornar monetizado, ou seja, para Leonardo Coelho passar a ser pago pelo YouTube pelos conteúdos que produz: atingir os 1000 subscritores e superar as 4000 horas de vídeos visualizados. Cumpridos estes dois critérios pela primeira vez, qualquer dos vídeos passados ou futuros passam a render algum dinheiro a cada 1000 visualizações.
O mundo lusófono, e com o Brasil em destaque, era cada vez mais a base de "clientes" do canal. A pensar no sucesso do primeiro vídeo de Português Europeu vs. Português Brasileiro, Leonardo repetiu a fórmula alguns meses depois, em maio de 2021, mas desta vez procurando palavras iguais com significados diferentes. O retorno foi imediato e um momento de grande crescimento do canal, que passou de "20/30 mil para 50/60 mil subscritores". O vídeo superou 1,5 milhões de visualizações, tornando-se de longe o mais rentável. No conjunto, os dois vídeos sobre as diferenças entre o Português Europeu e o Português Brasileiro somam cerca de 2,4 milhões de visualizações, o que equivale a praticamente metade do total conseguido por todos os vídeos do canal: mais de 5 milhões. Os cruzamentos de línguas e sotaques são, de resto, os vídeos mais populares. No terceiro lugar (370 mil visualizações) está um que aborda o vocabulário de Angola e em quarto (257 mil) um vídeo onde se pergunta: "Porque é que o português e o russo se parecem?".

Com o crescimento do canal e alguma retoma do turismo, começam também a aparecer convites para Leonardo Coelho fazer visitas guiadas por Lisboa.
© Paulo Spranger/Global Imagens
Mais portas abertas: do turismo às aulas
Olhando para os números, Leonardo tem razões para estar otimista. Mais de 93000 subscritores no YouTube, 200 mil sessões de podcast escutadas no Spotify, Google e Apple, quase 5800 seguidores no Instagram e 1800 no Facebook. A visibilidade do canal trouxe também novas oportunidades e fontes de receita que complementam o que já recebe do YouTube. Chegam-lhe convites para fazer visitas guiadas em Lisboa - "sempre gostei de o fazer, mas agora a diferença é que posso cobrar o valor que quero" - bem como pedidos para dar aulas online de português. "Comecei a receber e-mails a pedir para eu dar aulas e aceitei. Quando apareceram os primeiros pedidos já tinha cerca de 1000 subscritores no canal e deu para perceber que as coisas iam crescer, por isso tomei a decisão de esperar um pouco, não aceitar logo tudo de uma vez, para poder pedir um valor mais justo e que realmente valesse a pena".
Hoje, cobra 40 euros por hora ou 50 por hora e meia, mas só a um número restrito de alunos para se poder concentrar naquilo que diz ter "mais potencial": "o desenvolvimento da minha plataforma". Nesse sentido, além da página para doações que existe desde o início, de onde chegou o primeiro sinal que "o projeto podia ser viável", tem estado a trabalhar ultimamente na angariação de patreons, subscritores que pagam, entre dois a nove euros por mês, para terem acesso a conteúdos exclusivos ou por antecipação.
"Ainda tenho imensas coisas para fazer, sendo que à medida que vou publicando vídeos e percebendo o que resulta melhor e pior, vou tendo mais ideias também. A questão do trabalho criativo é que, às tantas, temos medo de nos faltar ideias, de já termos feito tudo. Neste momento ainda estou a pensar em muitas coisas para este canal, mas também já começo a idealizar fazer um outro em inglês", conta ao DN. Um canal em inglês, conseguindo ser monetizado, traria também lucros superiores. Os vídeos rendem mais quando visualizados em países com maior poder de compra, pois os anunciantes também pagam mais para ter a sua publicidade na plataforma, o que significa mais receita para os youtubers monetizados. "A minha média atual é de 1,45 euros por cada 1000 visualizações, mas se as mesmas fossem feitas, por exemplo, nos Estados Unidos já renderia de seis a sete euros."
1,5 milhões de visualizações foi quanto conseguiu o vídeo mais visto no canal, em menos de seis meses.
Por enquanto o foco é cativar mais pessoas. Principalmente, as que já tenham algumas noções do português, por estudarem ou por contacto com quem fala a língua, pois são estas que "podem retirar mais dos vídeos, para consolidar o processo de aprendizagem, escutando pausadamente as palavras, vendo como se escreve", e estando ao mesmo tempo a assistir a um vídeo que lhe conta algo sobre Portugal em vez de estarem presas a uma lição de gramática.
Ao divulgar a língua e cultura portuguesas na internet, Leonardo Coelho admite ser uma espécie de embaixador no mundo digital. "Sim, às vezes sinto isso. Ainda recentemente recebi um e-mail de uma professora de uma universidade no País de Gales em que me pediu para fazermos uma videochamada com os seus alunos, só para eles poderem falar um pouco comigo e praticar. E tenho outros professores de português no estrangeiro a dizer-me que usam os meus vídeos nas aulas". Esse reconhecimento, diz Leonardo, acaba por ser o melhor indicador sobre o rumo a seguir. "Ora, se os professores apreciam o meu trabalho, isso faz-me sentir que estou no bom caminho. Porque eu não sou professor de português. A minha experiência vem de aprender outras línguas, por gosto pessoal", conclui.
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