Adeus Covid, olá gripe e outros vírus. Estamos mais vulneráveis sem a máscara?

Durante dois anos a máscara protegeu-nos contra a gripe e outros vírus. Agora que a vacinação fez o seu caminho contra a Covid, voltou a gripe. Os pneumologistas explicam porquê.
Publicado a: 
Atualizado a: 

Este será um dos piores invernos por que passámos nas últimas décadas". O diretor clínico do Centro Hospitalar de Leiria, Salvato Feijó, prefere deixar já o aviso, depois de um outono completamente atípico, e com uma procura das urgências e serviços de saúde muito acima do normal.

"Os ingleses, por exemplo, estão com problemas muito sérios e formaram já aquilo que chamam um gabinete de guerra, para controlar os internamentos nos vários hospitais das regiões do Reino Unido. Eles já estão com uma procura muito intensa, e nós temos uma influência climatérica muito semelhante, embora mais benigna". A humidade, a diminuição de temperatura no período noturno, e a má climatização das casas - "que nos faz ter mais frio que os suecos" - contribuem largamente para o aumento da doença respiratória. "Além disso, por estar a chover ou mais frio, as pessoas concentram-se mais em ambientes fechados. Ora, todos estes fatores, aliados a dois anos com uso intensivo de máscara, farão com que por fatores externos e internos ligados à imunidade nós estejamos menos protegidos, muito mais vulneráveis", considera Salvato Feijó.

Numa altura em que a socidade já quase se esqueceu da Covid, nos hospitais e demais serviços de saúde continua a ser obrigatório o uso de máscara. Mas no quotidiano, deixou de se usar. E essa "libertação" está agora a fazer-se pagar, em matéria de imunidade.

O pneumologista Filipe Froes acredita que o primeiro semestre de 2023 vai por termo à pandemia, ou melhor, à declaração desse estado por parte da Organização Mundial de Saúde (OMS). "Nós vamos continuar a ter Covid nos próximos anos - como temos os outros vírus respiratórios -, mas a pandemia irá inevitavelmente acabar. Nessa altura vamos passar a uma situação de sazonalidade. Tal como já é comummente designado, passará a ser só covid, e não covid-19".

Filipe Froes adverte para a importância de "percebermos o que é necessário para monitorizar esta nova circulação sazonal do vírus". Na verdade, é preciso não perder de vista que "temos uma rede de vigilância da gripe que tem mais de 40 anos. E agora vamos ter que montar uma estrutura de vigilância para a Covid. É preciso estarmos conscientes de que não vamos ter a informação imediata (como temos no caso da gripe) relativamente à infeção por SarsCov2", salienta o médico do Hospital Pulido Valente. "Previsivelmente vamos ter que caracterizar o potencial de mutação, as evoluções possíveis dentro das mutações, como combatê-las através de novas vacinas, e calcular a carga de doença associada a esta sazonalidade".

Por esta altura os médicos já sabem que os idosos e os mais imunodeprimidos são os grupos mais atingidos, mas podem existir mutações do vírus que o tornem mais presente nos grupos mais jovens, nomeadamente nas crianças - este ano tão susceptíveis ao vírus influenza e sincicial respiratório. "Ele pode evoluir nessa direção", considera Filipe Froes, que alerta também para a necessidade de "percebermos o impacto nos internamentos a médio e longo prazo da long covid, por exemplo, mas também o impacto em termos de alocação dos recursos de saúde, de absentismo laboral, e o impacto que a vacina tem, conjuntamente com outras medidas de controlo de infeção, na prevenção e no controlo dessa nova doença".

"Já tivemos mais adultos com gripe e mais crianças com o vírus sincicial respiratório do que temos agora", afirma Filipe Froes, certo que nas últimas duas ou três semanas temos vindo assistir a uma diminuição do impacto da doença em termos hospitalares, quer nos adultos quer nas crianças - portadores de ambos.

"Há muitos serviços de urgência em Portugal que têm já um teste que permite diagnosticar os principais vírus respiratórios: o SarsCov2, o influenza e o sincicial respiratório. E o que nós estamos a verificar - até noutros países que têm mais tradição de analisar e avaliar esta informação - é que alguns doentes adultos aparecem também infetados com o vírus sincicial respiratório", adianta o pneumologista. São doentes também com condições de imunidade debilitada, com mais de 65/70 anos. "Isso justifica que nalguns países esses estudos conduzam a vacinas que podem ser alargadas a estes grupos etários e com determinadas condições".

Ao fim de dois anos de constante uso de máscara, ao abrigo das medidas de prevenção adotadas no âmbito da Covid-19, a população nota agora que voltou a estar mais vulnerável, suscetível a vírus. Será que a máscara que nos protegeu inicialmente agora nos desprotegeu? "Não, de todo. As máscaras funcionam e complementam as medidas de etiqueta respiratória e higienização das mãos. Nós neste momento não temos quaisquer dúvidas da utilidade dessas medidas na prevenção da circulação e na proteção dos mais vulneráveis e da sua possível utilidade, do seu potencial valor em situações futuras", afirma Filipe Froes. "Quando no futuro tivermos uma ameaça de um vírus com transmissão por via aérea e não tivermos ainda vacina, a máscara é uma aliada muito importante para controlar a transmissão".

O pneumologista recorda que o facto de "não termos tido gripe nos dois últimos anos fez com que os sistemas de vigilância tenham tido muito menos amostras para monitorizar a doença. E isso fez com que o desenvolvimento de vacinas contra a gripe tenha sido prejudicado também".
"A diminuição da circulação dos vírus diminuiu a carga da doença durante esse período e as pessoas deixaram de ter essa estimulação antigénica. No fundo, o que estas medidas fizeram foi aumentar o número de pessoas mais expostas aos vírus influenza e sincicial respiratório", conclui.
Poucos dias depois da entrada no inverno, o médico adverte para "as próximas ondas de atividade gripal, para as quais temos de estar preparados até fevereiro/março". Porque para os hospitais "o campeonato da gripe começou agora".

No Centro Hospitalar de Leiria nota-se essa acalmia de que fala Filipe Froes. O diretor clínico, Salvato Feijó, diz ao DN que "neste momento há dois tipos de Covid-19: a doença propriamente dita, e aquela que aparece porque os doentes vêm por outras causas". E neste momento, a prevalência situa-se nos segundos. "A covid doença está, de facto, muito controlada. Não sei se assim ficará na continuidade do inverno", afirma o médico pneumologista. No período do outono não representou grande preocupação no conjunto dos três hospitais que o CHL abrange (Leiria, Pombal e Alcobaça), ao contrário do que aconteceu com a gripe e com o vírus sincicial respiratório, "que levou a uma procura e internamento no serviço de urgência e pediatria muito, muito elevada". "Nós chegámos a ter 211 doentes em 24 horas no serviço de urgência da pediatria", conta ao DN, agora que o vírus parece dar tréguas.

Os meses que se avizinham são os mais difíceis para a doença respiratória, sendo tradicionalmente os mais duros do inverno. E estão os serviços médicos preparados para responder, no quadro de lacunas que é conhecido? Salvato Feijó lembra que o Serviço Nacional de Saúde tem sofrido um desgaste, agravado pelos dois anos de "fadiga pandémica".

"A capacidade de resposta é hoje mais frágil do que tínhamos há três anos. Mas as urgências sempre foram um problema sistémico do SNS. Sempre foram a porta de entrada dos portugueses, e a resposta dos cuidados primários teima em não se normalizar, voltando à forma de atendimento que já teve, o que tem uma grande implicação no número de doentes que procura o serviço de urgência".

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt