Adalberto Campos Fernandes. “Não vejo no Programa do Governo nenhuma ameaça à continuidade do SNS”
"A viagem da vida é feita com muitos amigos e com muitos parceiros”, diz-nos Adalberto Campos Fernandes, médico, gestor e ex-ministro da Saúde do primeiro Governo de António Costa . E foi assim que começou a história de mais uma obra de reflexão sobre a Saúde em Portugal. “Num grupo de amigos começámos a falar sobre datas redondas: os 50 anos de democracia e os 45 do SNS, e sobre a ideia de passar a escrito alguma reflexão e algum pensamento que assinalasse este marco histórico. E eu tive o papel de juntar as pessoas e de organizar os seus contributos”, conta ao DN.
A obra tem o apoio da Faculdade de Medicina de Lisboa e da Editora D’Ideias e é lançada nesta tarde, às 18.00 horas, no Auditório João Lobo Antunes. Um local escolhido especificamente para se poder “celebrar a democracia, o SNS e os que foram uma referência nele, como João Lobo Antunes”, afirma o ex-ministro.
O prefácio esteve a cargo do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e a apresentação vai ser feita por Luís Marques Mendes. A mensagem, essa, destina-se ao presente e às novas gerações: “Olhar para o que fizemos e projetar o que vem à frente com sentimento positivo”, assume Adalberto Campos Fernandes. Por isso mesmo, sublinha, esta obra “não é só uma reflexão académica - é um manifesto de compromisso cívico para a construção de um Portugal melhor”.
O livro Saúde em Portugal: Pensar o Futuro - 50 Anos de Democracia, 45 Anos de SNS coordenado por si é lançado hoje, dias depois de o Governo ter apresentado o seu programa. Pode considerar-se um alerta a quem está agora aos comandos do país?
Não, de forma alguma. O livro conjuga contributos de diferentes personalidades com posicionamentos pessoais e políticos diversos, mas que partilham todos a mesma ideia, que as políticas de Saúde beneficiam sempre de uma continuidade estratégica independentemente da mudança dos Governos. Há questões que são muito consensuais, como a existência de um SNS com as características definidas pela Constituição da República de 1976. Ou seja, o princípio de que deve existir um serviço público que procure responder pelas necessidades de todos de forma equitativa é um imperativo político, mas também ético. E tem sido sempre defendido pelos partidos que têm tido a responsabilidade alternada na governação. É claro que existem nuances interpretativas, quando se olha para a Constituição, e até programáticas, mas o mesmo princípio tem sido sempre defendido por estes partidos. E, portanto, não há alertas. Não sou nada favorável, e penso que a maioria dos autores também não, a que se trabalhe na base dos recados. Antes pelo contrário, quisemos trabalhar para o contributo em torno de um consenso estratégico, que ultrapasse esta geração e que proteja o futuro das próximas gerações na Saúde.
Falou nos contributos: são 25 testemunhos de figuras de várias áreas e quadrantes políticos. Isso significa que para se repensar a Saúde e o SNS é preciso um pacto político e social?
Infelizmente em Portugal institui-se uma ideia, quanto a mim profundamente errada, de que a existência de pactos ou até de reformas são fatores de perturbação democrática. Há alguns agentes políticos que não gostam mesmo destas expressões, mas em matéria como a proteção na Saúde e na Segurança Social, que são estratégicas, não tem de haver necessariamente um pacto, mas entendimentos, por exemplo em torno de leis de base que assegurem a continuidade das políticas nesta matéria.
Tivemos há muito pouco tempo a aprovação de uma Lei de Bases para a Saúde. Houve consenso?
Pessoalmente, e agora não falo pelos autores, não escondo a ideia de que uma lei de bases para o Sistema de Saúde deveria ter, tal como a Segurança Social, o consenso da responsabilidade governativa, o consenso dos partidos maioritários da sociedade portuguesa, PS e PSD, já que são estes que, alternadamente, têm polarizado soluções de Governo. Portanto, não me pareceu boa ideia que a última lei de bases tenha sido feita pela metade do espetro político - deveria ter sido alargada e gerado maior consenso, mas enfim... O que quero dizer é que tem de haver um consenso a médio e longo prazo para as questões da proteção na Saúde e na doença, como já há sobre as contas certas, o que é muito positivo, ou sobre o nosso alinhamento Atlântico e a nossa integração na Europa. Se lhe quisermos chamar pacto, chamemos, mas para mim seria mais um entendimento estratégico. E o primeiro de todos é o dizer-se que o país precisa mesmo de um SNS universal, tendencialmente gratuito e em articulação, sempre que necessário, com outros setores para responder às necessidades das pessoas.
Por que é que a Saúde divide tanto os partidos que têm assumido o poder?
Creio que é mais uma divisão artificial, é a retórica disponível, se me permite a expressão. A Saúde é uma matéria que nos preocupa a todos, sobretudo aos mais vulneráveis e aos mais pobres, e é fácil jogar com os sentimentos das pessoas e assustá-las, jogar com uma política baseada no medo, o que é insuportável. E alguns partidos, sobretudo os que têm pouca expressão política e que dificilmente serão poder, pela natureza e até radicalismo dos seus propósitos, muitas vezes usam a intimidação política através do medo, insinuando que determinado tipo de reformas e de mudanças significam acabar com a proteção e com os direitos. Vemos isso relativamente ao SNS: em qualquer proposta de mudança aparece sempre o fantasma de que se está a privatizar ou a destruir o SNS, organizam-se vigílias e movimentos, que, no fundo, são muito pouco verdadeiros, quando resolver o problema das pessoas é dar-lhes respostas. Idealmente no contexto do SNS, mas sempre que este, por questões conjunturais, tenha limitações ou dificuldades, a resposta tem de ser dada de outra forma, porque as pessoas não podem ficar desprotegidas.
Tem sido essa retórica que não tem permitido entendimentos?
Ao longo dos tempos, esta retórica extremista tem preferido perpetuar modelos de sociedade que não foram testados em nenhuma parte do mundo. É o que temos visto com esta abordagem política. E até lhe digo, a título pessoal e como militante socialista há muitas décadas, é com alguma tristeza que vejo alguns setores do meu partido a alinharem com estas narrativas do medo por parte de protagonistas que nada têm para apresentar em termos de modelo social, a não ser utopias e um certo irrealismo que não vão resolver o problema das pessoas. E este é que deve ser o foco, responder a partir de bons serviços públicos. O SNS é a nossa joia da cora. Nestes 45 anos revelou-se como o maior indutor de desenvolvimento humano e travão das desigualdades, mas tem problemas pontuais e setoriais que têm de ser resolvidos.
“O momento filosófico do livro, que acho ser um bom contributo para refletirmos quando estamos a chegar ao 25 de Abril, é o de olharmos para o que tem sido a nossa vida coletiva e para aquilo que é agora o novo ciclo político e para a importância de divergirmos menos e convergirmos mais.”
Mas estes anos foram positivos?
Olhe, o livro reflete precisamente um caminho muito positivo. Revela que chegados aqui fizemos um bom caminho na construção da democracia e um bom caminho na construção de um melhor serviço público. Mas estamos nos 50 anos da democracia e nos 45 do SNS e alguns de nós também não perceberam os sinais, nem os sintomas da doença de que o regime vai padecendo. Quando hoje temos expressão política de setores que são profundamente avessos à democracia deveríamos refletir sobre o que falhou e o trabalho que não fizemos para que existam tantos portugueses com uma frustração social e política tão evidente.
O que destacaria no livro?
Não destacaria, até por respeito aos autores, um capítulo em particular. Apenas diria que todos tiveram a preocupação, tendo em conta o passado, de olhar para a frente. Como se costuma dizer, o passado transitou em julgado. O passado é aquilo que se realizou e faz parte da História, mas o importante é retirar lições do passado e olhar para o futuro. E o livro é um conjunto de reflexões que nos dizem que temos muitos motivos para estar felizes nos 50 anos da democracia, porque fizemos cinco décadas com sofrimento e com momentos muitos difíceis, mas fizemos muito pela dignificação da pessoa humana e pela valorização do Estado Democrático. Este é um dos pontos que todos salientam de alguma forma. Depois, dizem-nos também que o SNS é verdadeiramente um ativo democrático de grande valor, que tem de ser melhorado e sempre com abertura de espírito. De uma forma geral, os autores também enfatizam outro aspeto, que é: fizemos bem, cometemos erros, mas estamos em condições de projetar para as próximas décadas em cima de uma construção política e social muito positiva para fazer melhor. Este é o momento filosófico do próprio livro, que acho ser um bom contributo para refletirmos quando estamos a chegar ao 25 de Abril, no sentido de olharmos para o que tem sido a nossa vida coletiva e para aquilo que é agora o novo ciclo político e para a importância de divergirmos menos e convergirmos mais.
O que é preciso fazer? Como se avança para a próxima fase?
Até no início do processo democrático passámos por momentos de grande tensão e de rutura e percebemos que os países se desenvolvem e progridem a partir do confronto das propostas e das diferenças. Não há nenhum país que tenha tido sucesso na Europa moderna que não tenha, ao longo do seu tempo, aliado confronto de ideias e compromissos. Portanto, há um tempo para o confronto, para a divergência, e um tempo para mostrarmos uns aos outros que, para atingir determinados objetivos, existem caminhos diferentes, mas que é essencial haver uma cultura de compromisso. E essa não diminui ninguém. Pelo contrário: responsabiliza quem tem o poder instituído democraticamente e responsabiliza também quem tem o poder importantíssimo de fazer oposição. São os ditos compromissos para fazermos melhor pelas novas gerações, para trazer de volta ao país os mais jovens e dar-lhes uma perspetiva e um sonho de vida realizáveis. O compromisso tem de ser em torno de causas e de valores essenciais da nossa vida coletiva e é nestes aspetos que temos de chegar a entendimentos.
“A título pessoal e como militante socialista há muitas décadas, é com alguma tristeza que vejo alguns setores do meu partido a alinharem com estas narrativas do medo por parte de protagonistas que nada têm para apresentar em termos de modelo social, a não ser utopias e um certo irrealismo.”
Será possível neste ciclo político?
Estamos a assistir a uma fase política em que temos um Parlamento muito fragmentado, muita tensão e muita luta. Há até uma certa desorientação estratégica, vemos isso nos debates. Todos procuram dizer que sou diferente por isto ou por aquilo, mas creio que, no essencial, as pessoas anseiam por compromissos e por estabilidade. No fundo, por entendimentos e pela capacidade de conseguirmos melhorar a vida e o bem-estar de todos.
Em relação à Saúde, e com o Programa do Governo apresentado, serão possíveis entendimentos?
Claramente que sim. Tenho de ser justo. Olhando para o Programa do Governo não vejo lá nenhuma ameaça à continuidade do SNS e nem nenhuma medida que vise, como muitas vezes é dito de forma assustadora, o desmantelamento e a destruição do serviço público. Naturalmente que este Governo tem uma perspetiva de dar mais abertura a que outras entidades e setores possam colaborar com o SNS, enquanto ele não for totalmente responsivo, mas não vejo aí nenhum problema. Se há uma pessoa que tem a necessidade de um diagnóstico e tratamento em tempo adequado, isso tem de acontecer. Idealmente no SNS, se não puder, então que o seja num regime colaborativo com outros setores. Não vejo nenhum problema no Programa do Governo na Saúde, aliás até suscita alguma curiosidade relativamente ao plano de emergência para se saber quais as soluções e as possibilidades que vão ser postas em cima da mesa.
Está otimista sobre o futuro?
O tremendismo retórico que algumas forças mais extremistas usam para chamar a atenção corre o risco de se tornar cansativo e muito pouco credível. Não acrescenta valor às soluções, apenas traz angústia e coação para dentro das soluções. E penso que, neste momento de transição política, há pontos muito positivos, porque o anterior Governo poderá ter cometido erros, mas também fez coisas profundamente positivas, não só no plano da proteção das pessoas na Saúde, como na melhoria das condições de vida dos mais desfavorecidos. Portanto, o ponto de partida deixado pelo anterior Governo é um bom ponto de partida para este Governo. A palavra-chave agora é continuar a crescer para uma economia robusta e olhar para as pessoas, não apenas para os mais desfavorecidos, que são sempre uma preocupação, mas para esta classe média que, ao longo das últimas décadas, esteve em vias de extinção e que precisa de ser ativada.
Daria algum conselho à nova ministra?
Não. É sempre um abuso aconselharmos pessoas que exercem funções que já exercemos. Conheço a professora Ana Paula Martins há muitos anos e tenho muita estima e respeito. A única coisa que lhe posso dizer é que o serviço público ao país é um ato de coragem, que é preciso ter muita determinação e energia para resistir, muitas vezes, à injustiça, à incompreensão e às contrariedades do dia a dia, e cada minuto em que lá está, tem de ser um minuto de foco no serviço às pessoas. E creio que a professora tem essas características. Desejo-lhes as maiores felicidades, porque em qualquer Governo, seja de que partido for, o sucesso dos ministros é o sucesso do país.