Acílio Estanqueiro Rocha: “Uma cultura que agrave a situação das mulheres, pratique a escravatura e o trabalho infantil não merece o respeito dos povos”
A sua conferência de dia 8 de maio propõe um debate em torno da ética intercultural. Impõe-se perceber o que se entende por ética intercultural?
Com o desenvolvimento cada vez mais célere e intenso de intercâmbios entre indivíduos e grupos de diversos continentes, mormente pela comunicação, a multiculturalidade surge como rasgo fundamental do mundo de hoje, em que preponderam duas abordagens: uma universalista, que desenvolve a ideia de que todas as boas práticas são generalizáveis, não importa em que cenário geográfico nos encontremos, e uma abordagem culturalista, que, opondo-se à universalista, valoriza de tal modo a cultura grupal que tais práticas nem sempre são transferíveis a outras culturas.
Assim, se o universalismo ético defende que existem certas normas éticas que são válidas e vinculativas para todos, respaldadas em certos valores fundamentais, como por exemplo a justiça, o respeito, a honestidade e a compaixão, partilhados por todos os seres humanos, e que se fundam na racionalidade e na dignidade humana e, por isso, transcendem a diversidade de culturas, os defensores do relativismo cultural argumentam que os valores morais variam de cultura para cultura, são imanentes à própria comunidade. Se o universalismo ético é frequentemente associado à abordagem deontológica da ética, de pendor kantiano, que se concentra no bem e no mal inerente às ações, no dever, independentemente das suas consequências, o relativismo ético é frequentemente associado à abordagem consequencialista do utilitarismo ético, que avalia a moralidade das ações com base nos seus resultados.
Uma das questões mais difíceis e controversas na ética intercultural é como conciliar as diferenças entre as normas éticas e os valores de diferentes culturas. Se uns argumentam que existem princípios éticos universais que se aplicam a todos os seres humanos, independentemente da sua origem cultural, outros sustêm que os juízos éticossão relativos ao contexto e às circunstâncias de cada cultura.
De que forma este debate tem implicações na ética intercultural?
O debate entre o universalismo ético e o relativismo cultural tem implicações significativas para a ética intercultural porque afecta a forma como lidamos com conflitos e dilemas éticos que surgem das interacções de diferentes culturas. Entre as múltiplas questões difíceis, temos: Como podemos determinar o que é bem ou mal num contexto intercultural? Como podemos promover a cooperação ética e a colaboração entre partes interessadas de diferentes origens culturais?
Note-se, porém, que, diferentemente do multiculturalismo, a interculturalidade não se desenvolve mediante modelos e nem trata de superar nada. Refere-se mais ao modo de implementar um projeto de intercâmbio que aparece mediado por valores e atitudes que aspiram a ser validados por todos os interessados, apesar da diversidade de interpretações. O próprio termo “inter-culturalidade” manifesta que a referência para que se remete é entre culturas, com tendência de generalização: o ‘entre’ não elimina a realidade de ‘cada cultura’, o que muda é o modo de relacionamento entre elas; e o que se predica do ‘entre’ é a generalidade – ‘universalidade’, diríamos em ética – de algo valioso para os intervenientes. Estas reflexões inserem a ‘interculturalidade’ no plano moral como a referência de aspirações, atitudes e valores em apreço e contextos compartilhados. A ‘interculturalidade’ desloca-se, pois, do umbral sociológico dos multiculturalismos para inscrever-se no âmbito moral.
De que forma vai articular na sua conferência a questão da ética intercultural com a dimensão dos direitos humanos?
Esse um dos escolhos maiores, quando se trata de conciliar duas perspectivas quase antagónicas. Ela orienta-se e inspira-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada pelas Nações Unidas em 1948, que proclama que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” com base na “dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis”, bem como nas diferentes Declarações que depois a interpretaram no tempo. Entre elas, a Declaração do Meio Ambiente [Estocolmo, Junho 1972], a Convenção sobre o Direitos da Criança, [Nações Unidas, 20 Novembro 1989], a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural [UNESCO, 2 Novembro 2001], a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas [Nações Unidas, Setembro 2007]. O problema que emerge é que o relativismo cultural, pelo menos nas conceções comunitaristas mais radicais, sustenta que os juízos éticos dependem de fatores culturais, sociais, históricos ou pessoais de cada situação e que devemos tolerar a diversidade de pontos de vista e práticas comunitárias.
Parte para a conferência assente numa questão: “o problema nuclear da ética é o da justiça”. Gostaria que detalhasse, com ênfase na palavra “problema”. Porquê um problema?
Apesar dos debates e das controvérsias por vezes muito acesas, o núcleo do ‘problema’ ético situa-se na compatibilidade ou não de uma justiça como um bem verdadeiramente universalizável e a dos bens singulares e formas de vida diversas que não são universalmente partilháveis. Essa compatibilidade existe comummente, e é desejável que assim seja; o problema surge da sua não compatibilização. O multiculturalismo realçou, e bem, que os valores éticos não existem no etéreo. Só podem ser reconhecidos e realizados no âmbito de uma cultura particular; mas nenhum ponto de vista puramente cultural tem, como tal, valor ético, como por vezes se postula. A confusão entre diversidade cultural e enriquecimento moral imuniza qualquer cultura de crítica moral. Note-se ainda que a referência a valores universais concerne uma “ética mínima”, isto é, um mínimo de valores éticos transculturais.
Na Academia das Ciências de Lisboa vai sublinhar “as idiossincrasias e diferentes modos de vida que não são universalmente partilháveis”. Quer dar-nos alguns exemplos?
Sendo a justiça um bem transcultural, entendida como o reconhecimento e o respeito pela dignidade e integridade da pessoa e a rejeição de situações de dominação e violência, diria, primeiramente, que a defesa ou a conservação de identidades ou diferenças culturais é eticamente aceitável sempre e quando não contradiga nenhum dos elementos que integram o conceito de justiça. Consequentemente, uma cultura que denigra e agrave a situação das mulheres, que pratique a escravatura, o trabalho infantil, pratique o infanticídio ou geronticídio, ou a crueldade contra os animais, que admita impunemente a tortura, é injusta e não merece o respeito das pessoas e dos povos.
“Algumas tendências multiculturalistas parecem recair numa reificação das identidades”. A que tendências multiculturalistas se refere?
Um dos principais alvos das críticas multiculturalistas é o liberalismo, mormente os defensores do liberalismo igualitário, entre os quais está John Rawls e a sua Teoria da Justiça (1971). Nas suas reiteradas críticas, o comunitarismo põe em causa um conjunto de asserções, como a prioridade dos direitos do indivíduo, a prioridade do ‘eu’ sobre os fins, a prioridade do justo sobre o bem. No entanto, os comunitarismos têm tendência a confinar a moral de uma cultura aos usos e costumes estabelecidos, transmitidos pela tradição e aceites sem dissenso. Assim, as posições do multiculturalismo levam à defesa do statu quo, qualquer que este seja, sendo, portanto, conservadoras: há que admitir, no seio dessas comunidades, a possibilidade de crítica frente às normas de comportamento e às crenças vigentes.
A debate propõe-se levar alguns percursos multiculturalistas, nomeadamente o de Charles Taylor. Que méritos reconhece ao filósofo canadiano no tema em consideração na conferência?
Rawls, na senda da tradição liberal, chega à conclusão que não são os bens utilitaristas que determinam o justo, mas que é o justo que determina os limites do que pode considerar-se como bem; quer dizer, o justo é prioritário por relação aos bens. Ora, nota Charles Taylor, isso acabaria por questionar se afinal não se reconhece uma ordem hierárquica entre as diferentes coisas que se têm por boas: cada qual reconhece que há diversas categorias de bens, como por exemplo, o mais digno, o mais válido, o moral e o não moral. Deste modo, Taylor afirma que nenhuma teoria ética, dando precedência ao justo, poderia desenvolver-se verdadeiramente sem pressupor o bem, pois qualquer teoria que dê primazia ao justo sobre o bem assenta na realidade numa noção de bem; com efeito. a) é indispensável articular a conceção do bem para explicitar as motivações da teoria e b) seria incoerente sustentar uma teoria do justo negando que ela tenha um fundamento numa teoria do bem.
Comunitarismo, liberalismo, anti-multicularismo, universalismo, particularismo, a sua conferência propõe-se fazer um périplo por autores e visões do mundo não raro antagónicas. Em síntese, o que procura transmitir com esta viagem de algumas décadas?
Se a “justiça com equidade”, defendida por Rawls, fundada em princípios de justiça, nos permite legitimamente alcançar direitos e deveres entre indivíduos livres e iguais numa sociedade cooperativa, a ética discursiva de Jürgen Habermas põe ênfase num processo dinâmico – o “princípio democrático” que estabelece a deliberação dialógica numa democracia constitucional. Segundo Habermas, o universalismo dos princípios reflete-se num consenso procedimental que deve inserir-se no contexto de uma cultura política, determinada sempre historicamente (acordo com Taylor), que pode denominar-se patriotismo constitucional", mas distinta do “patriotismo comunitário democrático” de Taylor. É que Habermas busca uma noção compreensiva da racionalidade humana sem ter de recorrer ao que transcende o mundo empírico de nossos contextos sociais; por isso, responde a Taylor, alegando que o processo de realização de direitos deve inscrever-se em contextos que requerem discursos e discussões sobre uma conceção comum de bem e da forma de vida desejada e reconhecida como autêntica: são controvérsias nas quais os participantes esclarecem, por exemplo, como eles se encaram como cidadãos de um Estado, habitantes de uma Região, que tradições querem continuar ou suspender. Não está, de modo nenhum, interdita a adoção de uma conceção de bem, partilhada após discussão pública; interdito está a privilegiar uma forma de vida à custa de outros membros da comunidade. Sem dúvida, Habermas compendia o itinerário de uma ‘ética intercultural’.
Acesso à conferência: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/93023760525
ID Reunião: 93023760525