"Abusos tomam a forma de ordens e regras que não devem ser questionadas"

Comissão de estudo revela a dimensão do fenómeno, a psicopatologia do agressor, mas também a relação desigual de poder que se estabelece entre a vítima e o agressor; crianças subjugadas a adultos, que põem em causa a sua credibilidade. Parece que nada acontece.
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O relatório da comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja, "Dar voz ao silêncio", denuncia não só a dimensão do problema como a relação desigual de poder entre o abusador e a vítima. Quem abusa, tem entre 31 e 50 anos, é padre (77 %) ou professor (9,6 %), sendo que alguns destes também são padres. Quem é abusado, tem em média 11,2 anos, está sob as ordens do abusador, provém em geral de famílias com poucos recursos. Acresce-se a isto o "poder espiritual" do agressor que lhe advém da própria religião.

Perfis desenhados a partir dos 512 testemunhos validados pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica Portuguesa (CI), a que se somam 4303 denunciados por terceiros. As vítimas mais novas, um rapaz e uma rapariga agora com 14 anos; o mais velho, um homem hoje com 89.

Destaquedestaque"O meu irmão faleceu agora, penso que nunca contou. O padre, que deveria ter 40 anos, visitava a casa após a morte do nosso pai para dar apoio à nossa mãe e ao meu irmão que se tornou muito revoltado," Vítima - homem, teria hoje 80 anos (testemunho da irmã).

Existem relatos residuais de abusos a partir dos 2 anos de idade, reportados por outrem, a incidência torna-se frequente logo a partir dos 6 anos (6,4%). Em 51,8 % dos casos denunciaram a situação, sendo que a maioria o fez na idade adulta.

Quem cometeu os abusos (96,9 % homens) é visto "como representantes ou símbolos de um certo estatuto e papel, tal como portadores de um poder não apenas divino, como reportado a um ascendente social e cultural em determinados meios locais, as palavras utilizadas na dominação da criança tomam a forma de imperativos, ordens e regras que não devem ser questionadas, mas acatadas", diz o relatório.

O abuso surgia nessa relação de domínio e como algo "implícito à atividade profissional de quem o praticava", o que se manifesta ainda hoje nos testemunhos. Descrevem algo que, na altura, se apresentava como "normal", "natural" e que "não havia que ter medo". Os pedófilos chegavam a dizer que era a forma de "tirar o mal", "tirar o diabo" ou "tirar a dor" - a correção de quem pecara.

Destaquedestaque"Nem os meus pais acreditaram: a minha mãe viu-me a sair em lágrimas e não o conseguiu confrontar por medo do que poderia dizer a comunidade. O meu pai sugeriu que era invenção para não ir à missa/catequese". Vítima: homem, 40 anos

As vítimas são colocadas "numa posição de menorização (quando a criança devia ser investida como o bem "maior" e não "menor"), subalternidade (obediência a Deus e ao seu representante) e respetiva desumanização (a vítima surge como mero objeto funcional, e não um sujeito global, incluindo nos seus direitos), numa posição de total incapacidade de defesa. Restava-lhes obedecer a um "representante superior" distorcidamente invocado pelo abusador".

A maior parte dos pedófilos (48,3%) denunciados tinham entre 31 e 50 anos à data dos factos e 26,2% tinha entre 31 e 40 anos, ou seja, é uma população adulta, em idade profissional.
Dados que confirmam a evidência de estudos similares na sociedade em geral, alerta a Comissão. "Um adulto que abusa sexualmente de crianças é, na enorme maioria dos casos, alguém que cedo inicia essa prática e se mantém nessa mesma posição, repetindo sucessivamente estes atos (crimes) que não controla autonomamente, dos quais não tem uma verdadeira consciência mórbida nem qualquer capacidade empática pela vítima,

Destaquedestaque"Éramos os mais tímidos, talvez os mais medrosos, ..., eu fui uma noite, o F outra e o H duas vezes (a primeira e a última da viagem). Penso porque é que nenhum de nós disse aos outros e ali ficámos em silêncio depois de ele nos ter despido, tocado, sugado, mexido até atingirmos o fim." Vítima: homem, 40 anos

Impossibilitando-se assim de uma verdadeira noção de culpa e capacidade de reparação".
Precisa de um processo de intervenção "adequado e duradouro, de suporte terapêutico e inibição continuada de proximidade isolada com crianças ou adolescentes". A solução não passa por mudar o agressor do local onde ocorrem os abusos, de paróquia para paróquia, como tem sido prática da hierarquia religiosa.

"Sem esta consciência ativa sobre o perfil psicopatológico de um abusador, será sempre extraordinariamente difícil a Igreja prevenir eficazmente a prevenção da ocorrência e continuidade destes atos cometidos por certas e conhecidas pessoas". Razão pela qual defendem a expulsão dos cerca de 100 padres no ativo cuja lista de nomes será entregue no final do mês à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP)) e ao Ministério Público.

Os seminários e as instituições de acolhimento religiosas são os locais onde ocorrem cerca de um quarto dos abusos. As vítimas, maioritariamente do sexo masculino denunciam padres, diretor de curso, diretor espiritual do colégio ou da Instituição; responsáveis por um departamento ou grupo de jovens.

Destaquedestaque"Estudei em seminários diocesanos de 1981 a 1986., do 5.º ao 9.º ano, dos 10 aos 15. O grupo de rapazes vinha de paróquias diferentes, de meios distintos e de famílias diversas. Recordo-me de amigos que nunca haviam provado muitas das comidas do Seminário, de gente que só foi ao Algarve pela mão do padre diretor de curso que nos premiou no 9º. ano pelos bons resultados, de gente sem dinheiro para ir a casa." Vítima: homem, 50 anos

Há muitas queixas de mulheres contra abusadores padres e também freiras. "Apesar de uma sobrerrepresentação masculina na amostra (57,2% ), a componente feminina é muito significativa, comparativamente a outras amostras internacionais de pessoas abusadas na Igreja Católica, onde a proporção de rapazes vítimas é sempre bastante maior", sublinha o relatório.

Muitas das vítimas são oriundas de famílias com três ou mais filhos (50,1 %). Há uma proporção considerável de trabalhadores dos serviços, agricultura, indústria e operários (37,2% no caso dos pais, 26,3% no caso das mães). As domésticas constituem 37,6% da amostra de mães, espelhando "uma realidade sociofamiliar do passado que muito tem mudado ao longo das últimas décadas", sublinha a Comissão.

Destaquedestaque"Éramos 20 rapazes órfãos. Estava lá o frei W ... era sádico, porco, muito mau. Um dia, fui com ele a casa de um benfeitor e durante a noite disse para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes." Vítima: homem, 70 anos

O período com mais relatos de abusos ocorre nas décadas de 1950 a 1990, quando as famílias numerosas e pobres enviavam um dos filhos para o seminário, vendo aí uma forma de estudar e ter uma profissão que consideravam relevante: a de padre.

"Muitas vezes, esta era a única oportunidade apresentada como forma de continuar os estudos, pelo que nem sempre nela estava implícita uma vocação precoce. "Se for a vontade de Deus, logo se vê", dizia-se. Nos anos 50, 60 e 70, cada um destes seminários abrangia, em regime de internato, dezenas, às vezes centenas de rapazes, cujas famílias investiam, dessa maneira, na sua escolarização e eventualmente na sua carreira vocacional profissional".

Destaquedestaque"Éramos 20 rapazes órfãos. Estava lá o frei W ... era sádico, porco, muito mau. Um dia, fui com ele a casa de um benfeitor e durante a noite disse para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes." Vítima: homem, 70 anos

O universo dos testemunhos à Comissão é diferente. Falaram pessoas ativas, com profissões reconhecidas, integradas no mundo do trabalho. O grupo profissional mais representado é "especialistas das atividades intelectuais e científicas" (32%), seguindo-se "trabalhadores dos serviços pessoais de proteção e segurança e vendedores" (7,8%). Quase metade tem formação superior: licenciatura (32,4%), mestrado (12,9%) ou doutoramento (3,1%).

Destaquedestaque"Fui vítima de abusos por parte de freiras e do padre X. O meu pai era caixeiro-viajante, os meus pais nunca viveram juntos. Tive uma infância triste (....). Quando contei à minha mãe, ela não acreditou e, ainda pior, disse que eu era culpada!" Vítima: mulher, 50 anos

Um resultado que vai contra, sublinha a CI, "a ideia de que as vítimas seriam hoje exclusivamente pessoas pertencentes a universos de precariedade, pobreza e exploração social e económica. Pelo contrário: muitos estão no meio de nós, entre os leitores deste relatório e, os que não estão, importa continuar a conhecer de forma mais aprofundada, eventualmente em estudos posteriores". Pode indicar, também, que as pessoas com maior capital social denunciam mais as situações de abuso.

A CI deu a palavra a bispos e administradores diocesanos: 17 bispos (em 18) e três administradores (em 20 dioceses). O bispo de Beja e um administrador da diocese de Setúbal não responderam.

O bispo de Beja, D. José Marcos, alega que se esqueceu do pedido de entrevista, o que justifica com um AVC sofrido há anos. A Diocese de Setúbal, em comunicado, justifica que não recebeu os pedidos de entrevista, feitos por email a 25 de fevereiro e a 17 de março, datas que coincidiram com a saída de José Ornelas, nomeado a 28 de janeiro para a diocese de Leiria-Fátima, tomando posse a 13 de março. José Lobato tomou posse como administrador diocesano a 14 de março.

Desde logo uma contestação: "o fluxo, intensidade e gravidade dos sinais dados pelas pessoas vítimas pareciam não encontrar tradução nos testemunhos desta elite. Tratar-se-ia de uma posição defensiva perante a Comissão Independente, face ao risco de eventuais suspeitas e acusações de ocultação? Uma ilustração inequívoca de clericalismo e da prioridade concedida, antes de tudo, à defesa da reputação da instituição a que pertenciam", questionam os peritos.

A trajetória mais frequente dos bispos diocesanos é a entrada, entre os 7 e os 12 anos, num seminário menor. Têm origens idênticas às vítimas, revelando percursos de mobilidade social "notáveis"

Destaquedestaque"O Padre X (professor de português num colégio) mandava-nos ler um texto e ia passando entre as mesas das alunas. Punha-se por trás das nossas cabeças, metia a mão dentro das nossas blusas/camisolas e apalpava-nos as maminhas". Vítima: mulher, 50 anos «Avia as camaratas dos pequenos e dos grandes, onde tudo começou. A camarata dos pequenos tinha 20 camas alinhadas, face a face, separadas por divisórias muito baixas. Já as camaratas dos mais velhos tinham a mesma disposição, mas as divisórias eram de madeira e iam quase até ao teto, o que dava maior privacidade." Vítima: homem, 60 anos

"Pequenito", levantava-se cedo, ia vender leite à vila e voltava para a escola às 9, depois das aulas, trabalhava no campo com os pais. Andava-se descalço. "Era-se feliz com pouco. Toda a gente era pobre», conta um bispo, "uma das figuras proeminentes da Igreja portuguesa". Nasceu numa família muito pobre de agricultores, o quinto de oito irmãos vivos, «graças a Deus». Nem o pai nem a mãe sabiam ler, mas "juraram que nenhum dos filhos havia de passar pelas mesmas dificuldades".

Explica a CI: "A elite eclesiástica portuguesa (com raríssimas exceções) provém de famílias (muito) desfavorecidas de meio rural, numerosas, pouco escolarizadas, sobrevivendo do trabalho duro do campo: agricultores de subsistência, caseiros, pastores de ovelhas, pequenos artesãos ou mineiros. Esta "terra" "daqueles tempos" é quase sempre retratada como comunidade de "ambiente saudável e tranquilo", apagando-se na memória, com aparente naturalidade, os traços de grande privação e dureza de condições de vida".

Entre os de origens mais favorecidas, contam-se filhos de motoristas, professores primários, pequenos empresários ou comerciantes "de boas referências", não raro de meio urbano.

Quase todos os entrevistados veem na ação dos papas, desde João Paulo II até Francisco, mas particularmente deste, um elemento crucial para a viragem.

Revelam desconhecimento em relação ao que se passa na igreja católica portuguesa. Apenas oito referenciaram conhecer padres denunciados, num total de 13 casos.

Destaquedestaque"Padre jovem, considerado amigo da família, que vinha dar explicações às disciplinas em que tinha dificuldade e ajudar a organizar para o estudo, "pois era distraído e desorganizado"". Vítima: homem, 30 anos

"Existe, mas não comigo" ou, eventualmente "se aconteceu comigo (isto é, nalguma diocese por onde tenha passado), nunca fui informado". "Nunca lidei com nenhum caso de abuso".
"Curiosamente, [tal aconteceu] apenas a partir do momento em que se tornaram bispos (nunca como párocos ou simples sacerdotes) e bispos da atual diocese, portanto, com processos pendentes que vêm do seu antecessor", salienta o relatório.

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