Abundam as tendas dos sem-abrigo nas noites de Lisboa

Baixa temperatura entre 24 e 31 de janeiro levou autarquia a abrir um espaço, que recebeu 162 pessoas. Mas muitos preferiram continuar na rua. As suas queixas não são por causa da geada.

Vivem debaixo da ponte, a de São João dos Portais, no cruzamento da Mouzinho de Albuquerque com a Infante D. Henrique, em Lisboa. Umas 25 pessoas, nove serão imigrantes, dormem em tendas iglu. A razão principal é a falta de trabalho, o que para muitos se deve a dependências e problemas mentais. Mas estão espalhados por toda a cidade de Lisboa, preferindo permanecer na rua a dormir em albergues, mesmo com o pavilhão que foi aberto para os dias mais frios.

Entre estes, há quatro pessoas com origens e histórias de vida bem diferentes. Mariana Vasco, 32 anos, da Figueira da Foz, a filha do meio de três, tinha tudo para ter outro percurso de vida, não fossem as "más escolhas". Veio para Lisboa aos 18 anos, estudar Terapia Ocupacional na Escola Superior de Saúde de Alcoitão, chegou ao 3.º ano e à altura de estagiar. Escolheu ir para uma Unidade de Comportamentos Aditivos. "Já tinha consumo de drogas à mistura, comecei a questionar o meu papel, acabei por deixar tudo", conta.


Foi toxicodependente durante seis anos. Entrou num programa de metadona (terapia de substituição opiácea), foi viver para a casa de férias da família em Peniche. Arranjou trabalho num hotel, veio a pandemia, mas não lhe interrompeu o percurso. "Comecei a 2 de março e veio a covid, fui despedida. Como tinha experiência de trabalhar com pessoas, entrei nos lares e refiz a minha vida. Tinha o meu carro."

Um primeiro obstáculo: os contactos familiares. Decidiu que era melhor regressar a Lisboa, o que diz ter tido a aprovação da família e da psiquiatra. Foi há um ano e começou a trabalhar numa fábrica. Procurou um albergue para os primeiros tempos, mas isso tornou-se um problema: "Muita gente com consumos, tive uma recaída."

Voltou a algumas das anteriores amizades, às drogas, ao ex-namorado com quem divide há três meses a tenda. Sublinha que não reataram a relação amorosa: "Somos o apoio um do outro."

Está a tentar sair dos consumos aditivos, outra vez num programa de metadona, mas confessa que ainda não deixou as outras drogas. Quer encontrar trabalho. Defende-se dizendo que lhe faltam as coisas básicas, por exemplo, um passe social. A seu favor, diz que procurou a associação Crescer, que "já tem uma grande lista de pessoas". Não tem qualquer apoio. "Na Santa Casa da Misericórdia dizem que não sou elegível." O companheiro recebe.

Laços que se criam

As tendas estendem-se por debaixo da ponte, com os comboios ao lado e os carros por cima. Não há um sono profundo. Mas não apanham chuva e, ali, chegam as carrinhas com comida, roupa, cobertores e outros bens. Sentem-se como uma família. E cada um partilha o que tem, por exemplo, o chocolate em pó que traz o companheiro da Mariana e põe no leite dado por Emanuel Carneiro depois de o aquecer na fogueira. Bebem os três.

Emanuel, 51 anos, é natural de Ponta Delgada, ilha que deixou com 10 anos para viajar com os pais para a América do Norte, primeiro o Canadá e depois os EUA, onde vivia há 32 anos. "Quis visitar a minha terra, não havia trabalho e há um mês resolvi vir para Lisboa, mas aqui também não há. Faço tudo, lavar loiça, chão, mas não consigo. Quero regressar à América, tenho lá a namorada e os filhos". Um rapaz e uma rapariga, cujos nomes tatuou nos braços.

Argumenta que lhe roubaram os documentos e que não tem dinheiro para a viagem. Um cartaz junto à tenda pede ajuda para regressar, "to my home". "Querem 60 euros pelo visto e 65 pelo passaporte, já consegui 30". Demos-lhe o contacto da OIM Portugal, onde poderá pedir ajuda no âmbito do Programa de retorno Voluntário, sem a certeza de que a irá procurar e/ou se é elegível.

Sentado junto à fogueira está Rupam Saini, 28 anos, natural da Índia. É ele quem alimenta o lume. Chegou a Portugal há dois anos, para trabalhar na agricultura em Peniche. Ficou doente, "problemas da cabeça", deixou o trabalho e veio até Lisboa. "Andei às voltas, perguntei onde poderia ficar, falaram-me deste sítio e deram-me uma tenda. Estou aqui há cinco meses e meio, estou melhor, mas ainda não me sinto capaz de trabalhar. Quero ficar em Portugal". Assegura que está medicado. Os companheiros dizem que nunca dali saiu desde que chegou: "Deve estar com uma depressão."

Muitas das tendas estão vazias durante o dia. Quem ali habita vagueia pela cidade, alguns a pedir moedas para "estacionar" os carros. Começam a chegar a partir das 19.00. Há quem passe pela carrinha que distribui metadona junto à Estação de Santa Apolónia, desde que tenham prescrição médica.

Mohammad Shabar, 31 anos, de Peshawar, Paquistão, deixou o país com 21 anos. Viajou pelo Irão, Turquia, Grécia, Alemanha, França e Itália, até chegar a Portugal, há oito meses. Trabalhou em Beja, na apanha da azeitona, mas acabou-se o trabalho e o sustento. "Pensava que havia trabalho em Lisboa, mas não consigo". Vive há quatro meses na rua.

Mais homens e estrangeiros

Entre os quatro, apenas Emanuel Carneiro pernoitou duas noites no Pavilhão Municipal Manuel Castelbranco, aberto entre 24 e 31 de janeiro, as noites mais frias até agora. Ficaram abertas entre as 23.00 horas e as 06.30 as estações do Metro do Rossio, Santa Apolónia e Oriente. Segundo a Câmara de Lisboa, acolheram 162 pessoas: 148 homens e 14 mulheres; 68 portugueses e 94 estrangeiros. E outras 54 foram encaminhadas para outras respostas. Dormiram e tiveram "acesso a banho, roupa, cuidados básicos de Saúde, rastreio de doenças infetocontagiosas e vacinação contra a gripe e a covid-19", além "de atendimento social individualizado".

O português Carlos Antunes, 54 anos, e o nepalês Lependra Karki, 33, são amigos há dois dias. Preferem ficar embrulhados em cobertores e tapados com cartões nas arcadas das lojas da Avenida da Liberdade, muitas delas de luxo, do que ir para um abrigo ou estação.
"Moro com os meus pais e chateei-me. Conheço esta zona e por isso vim para aqui. Também não sou muito bom da cabeça. Volto [a casa] quando me der na cabeça", explica. Vive com os pais perto do Saldanha. "Encontrei este rapaz, parece boa pessoa e é forte, para o caso de haver problemas."

Karki deixou Gorkha, a sua cidade, há dez anos. Esteve na Arábia Saudita, Turquia, Grécia e Croácia antes de entrar em Portugal, há 21 meses. Trabalhou na apanha de frutos vermelhos em São Teotónio (Odemira) e nos legumes nas Caldas da Rainha. "A empresa fechou, não havia emprego e vim para Lisboa. Mas aqui é muito difícil ter emprego. Posso trabalhar em restaurantes, tenho experiência."

Vive há três meses na Avenida e durante o dia recebe as moedas de quem estaciona. Mostra um cartão do Espaço Vasco Neves, da Comunidade Vida e Paz, que diz estar a acompanhá-lo. Quer trabalhar e regularizar-se para ficar em Portugal.

Lisboa não turística

A noite da Baixa de Lisboa é diferente do rebuliço turístico diurno, com mais lixo e maus cheiros. E muita gente a dormir na rua.

A Almirante Reis, é outra das zonas procuradas pelos sem-abrigo. Ricardo Teixeira, 32 anos, vive com a mulher numa tenda há quatro meses. Tudo por má compreensão dos Serviços Sociais, assegura. "Estávamos num quarto pago pela Santa Casa. Temos um animal pequeno, um cão, o Sonecas, que ficou muito doente, com parvovirose, e tive de o tratar. A Animal Life fechou e levei-o ao hospital do Arco Cego. Paguei 400 euros e tive de usar o dinheiro da renda. Expliquei à doutora onde gastei o dinheiro, fui sincero e vim para a rua."

A Animal Life fechou em junho para reestruturação, começam agora a fazer acordos com as Juntas de Freguesia para voltar a tratar dos animais, explicaram ao DN.

Ricardo e a mulher estiveram quatro meses num quarto. A renda começou por ser 550 euros mensais e estava agora em 750. Têm uma casa atribuída junto à Avenida de Ceuta. Está em obras e a conclusão prevê-se para abril. "Era uma questão de meses e foi a primeira vez que falhámos a renda. Comprei uma tenda e tivemos de trazer para aqui as nossas coisas todas, até a televisão." Outro problema , é o subsídio acabar logo que se começa a trabalhar. "Trabalhei numa empresa de alcatrão, comecei a 18 de agosto, cortaram-me o dinheiro a 19, quando eu só recebia no dia 31".

A pandemia é a razão de ter perdido o emprego e ficar sem teto, justifica Ricardo Teixeira, técnico de higienização (agora faz biscates). Recebe 164 euros de Rendimento de Reinserção Social (RSI). A mulher, vítima de violência doméstica do ex-companheiro, 189€. Não querem ir para um albergue. "Consumi drogas, deixei e não quero estar com pessoas que consomem. Além disso, fico eu num lado e a minha mulher noutro."

Caracterização social

A 31 de dezembro de 2021 estavam sinalizadas 9604 pessoas em situação de sem-abrigo, 4873 sem teto (na rua, albergue de emergência, etc.) e 4731 em habitação temporária. A AML e o Alentejo registavam as proporções mais elevadas de sem-abrigo por mil habitantes, respetivamente 1,57% e 1,74%, segundo a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo. Mas são realidades numéricas bem diferentes - Lisboa tinha 3326; a segunda maior concentração é no Porto, com 730. Antes da pandemia, a 31 de dezembro de 2019, registaram 7107 pessoas.

Na sua maioria são homens de nacionalidade portuguesa, solteiros, com idade entre 45 e 64 anos. com 2.º ou 3.º ciclo do Ensino Básico. Estão nesta situação entre um e cinco anos e apresentam como principal fonte de rendimento o RSI. "De notar que 1593 pessoas (17%) em situação de sem-abrigo têm uma relação com o mercado laboral, auferindo rendimentos provenientes do trabalho (salário regular ou ocasional) ou subsídio de desemprego", refere o relatório.

Os estudos sobre os fatores sociais são escassos. Paula Cristina Carrinho, na tese de doutoramento em psicologia, A Saúde Mental dos Sem-Abrigo em Comunidades de Inserção, no centro do país, publicada em 2012, concluía: "Os sem-abrigo são um fenómeno multicausal. Não são apenas fatores económicos que, de um ponto de vista subjetivo, causam e mantêm este problema. Do ponto de vista das pessoas afetadas, fatores pessoais, especialmente sentimentos de solidão e abandono, doença mental, problemas de drogas, abuso de álcool, junto com fatores relacionados a problemas interpessoais (divórcio, fim de amizades, etc.) desempenham um papel muito importante na origem e manutenção do problema".

ceuneves@dn.ptl

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