Só PSD e Iniciativa Liberal não têm propostas: todos os outros partidos querem mexer na lei de 2007 que define os termos da interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher. Mas há dois grupos bem definidos de projetos de lei em discussão esta sexta-feira no parlamento: os que assumem a existência de sérias dificuldades no acesso à interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher - dificuldades essas comprovadas pelos relatórios da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), ambos de 2023 - e visam contribuir para as solucionar, e os que visam ou manter tudo na mesma ou dificultar ainda mais o acesso a um direito consagrado na lei há quase 18 anos.Assim, a esquerda propõe o aumento do prazo em que é possível interromper a gravidez: das atuais 10 semanas - o mais curto da União Europeia - para as 12 (PS e PCP, com a concordância do Colégio da Especialidade de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos), ou, seguindo o exemplo de Espanha e França (BE e Livre), para as 14. Elimina também o período de reflexão obrigatório de três dias (que a lei atual situa entre a primeira consulta, ou “consulta prévia”, e o procedimento abortivo) e a exigência de dois médicos no processo. Quer ainda (PS, BE e Livre) regulamentar objeção de consciência, também objetivo do PAN. A eliminação da obrigatoriedade de haver dois médicos no processo, com a qual quer o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida quer o Conselho de Ética da Ordem dos Médicos estão de acordo, poderá, desde logo, e num panorama em que mais de 80% dos médicos do Serviço Nacional de Saúde se declaram objetores, solucionar situações como a do Hospital da Horta, nos Açores, no qual, havendo só um médico não objetor, não é possível assegurar esse cuidado de saúde (o que implica que todas as mulheres que querem fazer uma IG tenham de se deslocar para fora da ilha).Outra alteração proposta pela esquerda com a qual os dois organismo de ética citados concordam é que a objeção de consciência declarada para a interrupção de gravidez (IG) só se possa aplicar ao ato em si, e não à assistência médica antes ou depois - isto porque, como o DN reportou, há profissionais de saúde que recusam até colher sangue a mulheres que vão fazer um aborto.Mas se os partidos de esquerda, conscientes de que o enorme número de médicos objetores é o principal obstáculo ao acesso das mulheres à interrupção de gravidez legal e segura, querem balizar a objeção de consciência - até hoje nunca regulamentada, à exceção da obrigatoriedade, definida na lei de 2007, de ser declarada formalmente e implicar a exclusão da consulta prévia à IG e qualquer acompanhamento informativo que a mulher solicite - a direita propõe o contrário.O CDS repõe, no seu projeto, normas que Paulo Núncio gabou, na campanha para as legislativas de 2024, como tendo “dificultado o acesso ao aborto”. Trata-se das alterações que em 2015, no último dia da XII legislatura, a maioria PSD/CDS efetuou na lei (alterações que estiveram apenas quatro meses em vigor; foram revogadas pela maioria de esquerda que resultou das eleições de 4 de outubro de 2015).Em causa no projeto do CDS está então a inclusão de objetores de consciência no processo de interrupção de gravidez, tanto na primeira consulta como no acompanhamento durante o “período de reflexão” imposto pela lei (na legislação em vigor, quem se declara objetor está, como já referido, excluído do processo), e obrigar as mulheres que querem abortar a apoio psicológico e acompanhamento por técnico de serviço social - desta vez, em vez de escrever a palavra “obrigatoriedade”, como fez em 2015, o CDS retirou a palavra “facultativo”, usada pela atual lei ao referir os acompanhamentos em causa. O CDS quer também, mais uma vez, impedir o registo das declarações de objeção e a existência de qualquer decisão administrativa baseada nas mesmas - o que, a suceder, tornaria impossível sequer saber-se quantos objetores existem no SNS, organizar os serviços de forma a certificar que não têm só objetores ou até, no limite, fazer escalas que permitam ter médicos não objetores disponíveis para efetuar interrupções de gravidez.Já o Chega, seguindo uma velha sugestão de Cavaco Silva (na mensagem que exarou na promulgação da lei de 2007, o então Presidente da República propunha que as mulheres tivessem de ver a ecografia), deseja pôr quem quer interromper a gravidez a “ouvir coração do embrião”. E ainda criar um novo crime, punível com pena de prisão até três anos – “Coagir profissional de saúde que alegou objeção de consciência a praticar aborto”.“Discriminação socioeconómica e territorial” entre mulheresNa verdade, nada podia estar mais longe da realidade portuguesa que um profissional de saúde que tenha declarado objeção de consciência para a interrupção de gravidez (IG) ser “coagido” a praticá-la.Como os relatórios da Entidade Reguladora da Saúde e da Inspeção Geral das Atividades em Saúde comprovaram, na sequência de uma série de reportagens do DN (“Como o SNS viola a lei do aborto”) publicadas em fevereiro de 2023, no que respeita ao cumprimento da lei em vigor o problema não é que haja objetores coagidos, mas sim mulheres coagidas, por existirem várias unidades públicas de saúde (quase um terço das 44 que possuem serviços de obstetrícia e ginecologia) nas quais o corpo médico se declarou universalmente objetor, a viajar quilómetros - por vezes milhares de quilómetros, como sucede com as residentes nos Açores - para conseguirem aceder a um cuidado de saúde que lhes é legalmente garantido pela República.Uma distância que, de acordo com o trabalho científico do economista António Melo (“Todas as estradas levam ao mesmo destino? Proximidade a serviços de aborto, abortos e respetivas condições em Portugal”), noticiado pelo DN em 2024, determina menos abortos legais: “Os municípios portugueses que estão a mais de uma hora do serviço de IG mais próximo têm menos 22% de abortos que municípios que estão a até 30 minutos do serviço”.Trata-se da primeira análise em Portugal (e, crê o autor, na Europa) do efeito da dificuldade de acesso, em função da distância geográfica/temporal, na taxa de interrupção de gravidez legal, na qual o prazo exíguo de 10 semanas é apontado pelo economista como um dos fatores de exclusão/discriminação: “Com apenas 10 semanas para se abortar legalmente, os atrasos que observamos na chegada aos serviços podem explicar por que motivo as regiões com menor acesso à interrupção de gravidez têm taxas mais baixas - as mulheres podem estar a requerer este cuidado de saúde demasiado tarde para ser autorizado e, consequentemente, levar as gravidezes a termo.” Ou - é outra hipótese - recorrerem ao aborto clandestino. Uma situação que implica, como o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida reconhece no parecer que exarou sobre o projeto de lei do PS, “uma discriminação socioeconómica e territorial de várias mulheres”.No seu projeto, o Livre tenta apresentar um remédio para esta discriminação económica e territorial, estatuindo que, “em caso de necessidade de transferência do processo de interrupção voluntária da gravidez entre estabelecimentos de saúde, oficiais ou oficialmente reconhecidos, o Serviço Nacional de Saúde assegura o transporte, e demais despesas de deslocação e estadia, da mulher grávida e da pessoa acompanhante por si indicada.” Este tipo de assistência é neste momento apenas garantida às mulheres que residem nas ilhas, no caso de terem de se deslocar ao continente ou a outra ilha; como o DN noticiou, as mulheres que vivem no continente e são, por inexistência de unidades com valência de IG, obrigadas a viajar dezenas ou centenas de quilómetros para um serviço que as receba, têm de o fazer por sua conta.Recorde-se que a discriminação socioeconómica e territorial no acesso à saúde que resulta da existência de zonas onde não há unidades que façam interrupção de gravidez implicou uma dupla condenação da Itália pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais, um organismo do Conselho da Europa que fiscaliza o cumprimento da Carta Social Europeia (considerada “a Constituição social da Europa”).Nas condenações – por violação do direito à saúde, discriminação no direito à saúde e discriminação no direito ao trabalho (aqui por o Comité ter concluído que os profissionais de saúde não objetores são discriminados) – o Estado italiano é instado a regulamentar a objeção de consciência de modo a que esta não ponha em perigo o direito das mulheres à saúde, considerado pelo Comité como estando num patamar superior de dignidade e garantia face ao direito dos profissionais á objeção. No mesmo sentido - de que o direito dos profissionais de saúde à objeção de consciência deve ceder ante o direito à saúde das mulheres - vão as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, cuja jurisprudência é vinculativa.“Sistema dificulta acesso de propósito”?Os problemas de acesso no SNS para quem quer aceder a um aborto legal e seguro não se restringem à existência de unidades que não o providenciam; há também, como os relatórios da ERS e IGAS demonstram, ineficiência nas articulações entre serviços, má informação e, como o DN constatou, má vontade e má prática - num dos hospitais contactados pelo jornal em fevereiro de 2023, quem atendeu o telefone, julgando estar a falar com uma mulher que queria interromper a gravidez, disse: “Nós neste hospital não fazemos isso, porque é um hospital amigo dos bebés”. Só descobrir onde a mulher se deve dirigir, o número para onde deve ligar, pode ser, como uma entrevistada disse ao DN, “uma corrida de obstáculos”, de tal modo penosa que outra entrevistada confessou ao jornal que tinha concluído que o sistema dificulta o acesso “de propósito”.Também os prazos de atendimento, como o DN reportou e os relatórios da ERS, IGAS e Direção Geral de Saúde confirmaram, levantam sérios problemas às mulheres que querem interromper a gravidez. Malgrado a lei determinar um tempo máximo de espera de cinco dias entre o primeiro contacto com o SNS e a primeira consulta, esse prazo foi em 2022, de acordo com o relatório da Direção Geral de Saúde (DGS) relativo a esse ano, ultrapassado em pelo menos 20% dos casos; para 5% das mulheres, a espera foi de mais de 11 dias, tendo para 307 mulheres chegado às duas semanas (ou mais).Por maior que seja a espera pela primeira consulta, porém, a exigência de que haja um período de reflexão implica aguardar pelo menos mais três dias – sendo que, segundo o relatório da DGS, o tempo médio entre a consulta prévia e o procedimento é de cinco dias.Pelo menos num caso reportado pelo DN, a espera por consulta foi tão extensa que a mulher em causa teve de ir, a suas expensas, à Clínica dos Arcos, a única unidade privada do país com licença para efetuar interrupções de gravidez – de outra forma ultrapassaria o prazo legal. Após a publicação da notícia, o conselho de administração do hospital que não tinha em tempo atendido aquela pessoa contactou o jornal para certificar que queria custear o procedimento (o que veio a suceder). O caso ocorreu em fevereiro de 2023 com o Hospital de Santa Maria, cuja presidente do conselho de administração era a atual ministra da Saúde, Ana Paula Martins.Até agora, e apesar da vasta informação existente sobre as dificuldades que as mulheres experimentam no acesso a este direito, a ministra nunca se referiu ao assunto. Já o seu antecessor, Manuel Pizarro, reconheceu, após a publicação da investigação do DN, em fevereiro de 2023, existirem problemas, garantindo que se resolveriam “em semanas”. Porém, ao longo do ano que decorreu até sair do cargo, em março de 2024, nem o ministério nem o PS apresentaram qualquer medida para resolver a situação. .Aborto: Colégio de Obstetrícia a favor de alargamento a 12 semanas e contra posição oficial da Ordem.Só 13% dos obstetras do SNS fazem IVG. Profissionais objetores são 993.Acesso ao aborto no SNS. Entre 2009 e 2023, sete hospitais deixaram de fazer IVG.Aborto. Portugal viola direitos sociais europeus.Quanto mais longe se está de um serviço de aborto legal, menos se aborta.AD e Chega querem “dar as mãos” contra “a esquerda marxista assassina”