"A sociedade só soube falar em rótulos". Dino D'Santiago lamenta mortes em triplo homicídio
O ativista e músico Dino D'Santiago acompanhou, na manhã deste sábado, o enterro do barbeiro Carlos Pina, no cemitério do Alto de São João. No seu perfil na rede social Instagram, o artista relatou como ficou a saber do crime, o triplo homicídio da última quarta-feira, lamentou pelas mortes e pela "indiferença" que "corrompe" a sociedade atual.
Dino D'Santiago contou que estava em Cabo Verde "quando a notícia desabou como uma tempestade". O artista descreve Carlos Pina como "um homem de sonhos, pai de cinco filhos, entre eles o nosso Gonçalo" e que a presença nas homenagens desta manhã foram um "último adeus" ao conterrâneo.
Para o músico, o triplo homicídio "não é apenas uma tragédia de sangue. É o fruto envenenado da nossa indiferença, o reflexo dos vales do silêncio onde temos escolhido viver, confortáveis na nossa cegueira".
De toda a repercussão sobre o caso, o activista aproveitou para condenar os estereótipos discriminatórios utilizados em relação às vítimas e ao suspeito do crime.
"Morreram três adultos e um filho que ainda repousava no ventre da sua mãe, mas a sociedade só soube falar em rótulos: 'um barbeiro africano', 'uma grávida brasileira', 'um taxista'. E para que a discriminação fosse ainda mais grotesca, o assassino foi logo identificado como 'um cigano'. Como se a tragédia pudesse ser explicada, como se as mortes pudessem ser justificadas com esses estereótipos. Um rótulo para cada vida, uma desculpa para a nossa indiferença", escreveu Dino D'Santiago.
O crime, considerado por fonte da PJ um "caso sem precedentes de violência gratuita", ocorreu na manhã da quarta-feira, 2 de outubro, na rua Henrique Barrilaro Ruas, entre a Penha de França e Santa Apolónia. O suspeito, identificado como Fernando, de 33 anos, terá reagido depois de ter-lhe sido negado um corte ao cabelo na barbearia de Carlos Pina.
Depois de disparar contra o barbeiro, Fernando, já na rua, atingiu mortalmente o casal Fernanda Julia, que estava grávida, e Bruno Neto. O suspeito continua foragido.
Veja a mensagem de Dino D'Santiago na íntegra.
“Lisboa já não é a cidade em que crescemos.“
Este foi o sussurro amargo que ouvi mal pisei o cemitério do Alto de São João, na fria manhã de hoje. Viemos todos dar o último adeus ao Pina, um homem de sonhos, pai de cinco filhos, entre eles o nosso Gonçalo. Era em Cabo Verde que me encontrava quando a notícia desabou como uma tempestade: uma tragédia pintada a sangue nas ruas da nossa cidade. Foi no dia 2 de outubro, e em plena luz do dia, pelas 13h25, numa pequena rua entre Santa Apolónia e a Penha de França, o horror encontrou três almas inocentes e apagou-lhes o brilho para sempre.
Oiço falar de falsos ajustes de contas, murmúrios de ódio que se espalham como erva daninha. Alguns tiram partido, alastrando a desunião entre os povos, como se o caos lhes desse alimento. Mas o que aconteceu não é apenas uma tragédia de sangue. É o fruto envenenado da nossa indiferença, o reflexo dos vales do silêncio onde temos escolhido viver, confortáveis na nossa cegueira. Morreram três adultos e um filho que ainda repousava no ventre da sua mãe, mas a sociedade só soube falar em rótulos: “um barbeiro africano”, “uma grávida brasileira”, “um taxista”. E para que a discriminação fosse ainda mais grotesca, o assassino foi logo identificado como “um cigano”. Como se a tragédia pudesse ser explicada, como se as mortes pudessem ser justificadas com esses estereótipos. Um rótulo para cada vida, uma desculpa para a nossa indiferença.
Vivemos numa era de redes onde a palavra “social” perdeu todo o sentido. Ignoramos a verdade que grita diante de nós: que isto foi o resultado de uma mente doente, negligenciada durante anos. Um homem que caminhava perdido pelas ruas da cidade, enquanto todos nós desviávamos o olhar. O que se passou em Lisboa é um espelho do que acontece pelo mundo fora, onde o ódio se replica, seja pelo poder, preconceito, machismo,xenofobia, ou por qualquer outro veneno que nos corrompe. Cada tiro disparado, cada vida ceifada, é o sintoma de uma doença mais profunda – nós, humanos, transformámo-nos no vírus mais letal deste planeta.