A rua onde morreu o indiano Gurpreet Singh
A janela por onde entrou a bala que matou Gurpreet Singh tem no parapeito, a arejar, uma manta de criança e um urso de peluche. São de Elisabete, a menina que agora vive na casa, alheia ao crime e às motivações que levaram dois irmãos portugueses, de 22 e 29 anos, a disparar sobre a pequena moradia. O par estava decidido a assassinar os seis siks que, ainda há cerca de dois meses, moravam no n.º 20 da Rua Engenheiro Ribeiro da Silva, nas Praias do Sado, uma rua alheia ao drama ilustrado nos remendos de fita adesiva que escondem os dois buracos abertos nos estores pelos cartuchos certeiros da caçadeira. Maiores, ao tato, que uma moeda de dois euros.
"Mãe, estás a magoar-me", choraminga Elisabete. No cubículo que lhe serve de quarto, 7 ou 8 metros quadrados inundados de sol, a criança de 5 anos está ao colo do pai que a consola com gomos de tangerina enquanto a mãe lhe desembaraça, a custo, os cabelos tropicais. A família, chegada a Portugal de Fortaleza a 30 de novembro, e à vivenda forrada a azulejo há apenas dois dias, prepara-se para a inscrição no centro de saúde da freguesia.
H. e T. Moura, ele de 36 anos, ela de 46, são os pais de Elisabete. T. era professora e lojista num shopping. H., serralheiro e mecânico. Habitavam um pequeno apartamento em Setúbal quando souberam que vagara uma casa nas Praias do Sado. Maior e mais barata.
Não quiseram saber das circunstâncias. "Tirámos tudo o que estava aqui. Colchões, tudo. Sabemos o que se passou, mas não queremos pormenores", diz H, com os olhos na filha. Os Moura partilham a casa com uns primos: Paulo Sérgio, igualmente serralheiro, a mulher deste e os dois filhos -- Caio, de 12 anos, alto demais para a idade, e Lívia, bebé de ano e meio, olhos negros. Dividem a renda. 700 euros mensais por 3 quartos, sala, cozinha e casa de banho exíguos. O pequeno quintal é um bálsamo. "Isto é tão calmo e tão bonito. Parece o interior do Brasil", diz T..
H. Moura, o marido, ganha a vida na Lisnave. "Por uma hora posso receber de 8 a 14 euros, depende do trabalho." Paulo Sérgio, em Portugal há já um ano, elogia o patrão. Da serralharia, em certos meses, pode levar para casa 1200 euros. "Nem sempre foi assim", comenta. "Comecei por ser servente de obras, em Grândola; não foi legal. Não era bem tratado. Vivia mal demais."
Discriminado por colegas de trabalho, sim. "Davam-me as piores tarefas." Racismo? Xenofobia? "Não ligo a isso", diz Paulo Sérgio. Tanto mais que muitos desses "serviços" eram despachados para ele por outros imigrantes. H. Moura é de outra cepa. "Estou em Portugal há menos de um mês, ainda não senti racismo; mas não venho disposto a aceitar." Paulo Sérgio sorri com a resolução da prima e prevê um futuro feliz: "Em Praias do Sado isso não existe. Isto é muito bom. Daqui só saio para uma moradia própria."
A 5 de novembro passado, Gurpreet saiu dali para a morgue de Setúbal. O corpo do rapaz de 25 anos foi devolvido ao irmão, na Índia (os pais já morreram), para ser cremado segundo o ritual sik. "Dizem que custou 3500 euros, pagos pelo patrão. Um bom patrão, era ele que me pagava a renda, sempre a tempo e horas. Eram muito certinhos", comenta António Oliveira Teles, proprietário da casa. Lembra Gurpreet. "Um rapazinho tão educado, tão boa pessoa. Gente boa, melhor de que aquilo não há."
Foi Caio, o adolescente sempre agarrado à bola, quem nos indicou a morada do "sr. Teles", a primeira, e uma das poucas, moradias da rua com dois andares. O adolescente brasileiro sonha ser Ronaldo. "Talvez aconteça." Coloca as mãos no peito em oração e os olhos no céu. "Oxalá", reza. Caio tem jeito. Aluno da Escola D. Manuel Martins, aproveita o dia soalheiro e a pacatez da rua para dar "uns toques" defronte da porta onde parou, a 5 de novembro, a carrinha preta que transportava um encapuzado de caçadeira na mão.
"Noite fatídica", diz António Teles. "Cinco estavam cá há mais tempo, mas o rapazinho há apenas duas semanas. Trabalhava como os outros, em Pegões, (Montijo) na agricultura." A casa de António dista escassos metros do número 20. Ouviu tiros. Quatro, diz. "Talvez três", acautela Maria de Jesus, a mulher. "Viemos a correr. Entrei na sala e o rapaz estava deitado sobre o colchão, de barriga para baixo."
Os portugueses "atiraram à toa". Dois tiros através da janela virada para a rua. Um terceiro ficou marcado na porta nas traseiras. António avança uma teoria: "Cá para mim, foi engano."
Não foi. Diz a investigação da PJ que a tragédia começa no "café do Agostinho". Há dois "cafés do Agostinho" naquelas terras, praticamente contíguos. Um deles, frente a um dos campus do Instituto Politécnico, na fronteira que divide São Sebastião de Praias do Sado, tem a esplanada ocupada por jovens de iPad aberto, estudantes universitários que vão tomando notas. "Não foi neste, foi no outro", diz o dono, Agostinho, dizendo-nos como chegar ao Katekero.
Por caminhos rurais de terra batida, chega-se a uma praceta tranquila, decorada com motivos natalícios. Dois velhos conversam, sentados no banco de jardim. Talvez tenham sido drogas, dizem, pensando nos atacantes, dois rapazes com um historial de pequenos furtos, consumo e tráfico de estupefacientes. "Por serem indianos, não", desabafa uma vizinha, sob anonimato. "Nunca houve problemas. Temos muitos africanos, brasileiros, montes de miúdos estrangeiros do Politécnico, imensos indianos e nunca tinha acontecido nada", acrescenta o duo, abalado.
De acordo tanto com a PJ como com os vizinhos, a história começou no Katekero, espaço sombrio e pouco asseado, onde um único cliente toma café ao balcão. O dono, com cara de poucos amigos, não permite sequer que acabemos a frase. "Aqui não se passou nada. Se lhe disseram que sim, mentiram."
Ali terá começado a discussão entre os dois grupos, suspeitos e vítimas, naquele domingo trágico. A PJ desconhece o que motivou "as primeiras bocas". Mas, "de acordo com testemunhos", após muita exaltação, um dos rapazes indianos terá "insultado a mãe dos dois irmãos portugueses". A PJ acredita ser esse o móbil do crime. Homicídio consumado e homicídio tentado, uma prisão preventiva para o suspeito dos disparos e a obrigação de apresentações na esquadra para o putativo cúmplice. Quatro tiros disparados "ao calhas", com o aparente objetivo: o massacre dos 6 indianos.
Ainda assim, João Bugia, Diretor da PJ de Setúbal, descarta a possibilidade de se tratar de um crime de ódio. "É o que temos neste ponto das investigações." Com base, acrescenta, "em prova testemunhal". Depoimentos que garantem "não ter havido racismo; houve, sim, muito álcool".
Onde vivem agora os sobreviventes? Será que pensam o mesmo?
"Só o patrão pode saber onde moram", diz António Teles, indicando-nos a forma de o encontrar.
Amandeep Singh tem uma loja de telemóveis perto da Praça de Bocage, em Setúbal. Não é "patrão" de ninguém, diz. Afirma não saber onde estão os indianos que partilhavam casa com Gurpreet. Mas considera-se amigo da vítima. "Sim, conhecia. Muito boa pessoa. Não acredito que tenha insultado seja quem for. Nem falava português."
Na pequena loja estão vários compatriotas. Todos eles siks, de turbantes e barba. Amandeep é claro: o caso "não meteu racismo e confiamos na investigação a PJ". Já o irmão é menos definitivo. Confrontado com a possibilidade de se tratar de um crime de ódio, encolhe os ombros.
Amandeep garante ter razões para não duvidar da versão da polícia. Está em Portugal há 8 anos, quatro deles em Setúbal: "Nunca me apercebi de discriminação alguma. Nem a minha mulher." Têm uma bebé de quatro meses, nascida em Portugal. Sabe que os dois portugueses iam dispostos a matar os seus compatriotas. "Matá-los a todos." Mas nem assim quer crer que se tratou de um crime de ódio.
De regresso a Praias do Sado, interpela-se Marlene Caetano, a presidente da junta de freguesia, eleita pela CDU. Estranha o argumento da barreira linguística. "Surpreende-me que se diga que não falavam português. Falavam. Talvez não fosse o caso de Gurpreet, porque estava aqui há muito pouco tempo. Mas os restantes arranhavam o português."
A autarca da CDU também duvida de motivações racistas. "A comunidade indiana, aqui, não é uma novidade. Estão em Setúbal desde 2015 e nunca houve problemas. Nunca senti comentários negativos da parte da população, do comércio, dos cafés." Para a autarca "tudo isto foi, sim, uma grande estupidez". Dá conta de uma comunidade integrada. "Alguns deles frequentavam as instalações do Instituto Politécnico de Setúbal, onde praticavam desporto." Estão "integrados", mesmo tratando-se de permanência de curta duração. Já os migrantes originários do Brasil chegam, por regra, em família. É o caso de Bebiana, 37 anos, de Charles, 35, e Pietro, de 8.
Bebiana desce uma via perpendicular à rua da tragédia. Traz o filho por uma mão -- a outra segura uma bola de futebol, vermelha e negra, as cores do Flamengo. Ao fim do dia, já sem sol, mãe e filho vestem anoraques, mas mantêm as havaianas. "O brasileiro não tem frio nos pés", assevera. Estão em Praias do Sado há 14 meses. O marido trabalha na manutenção de navios, e pagam 700 euros por dois quartos, uma cozinha e uma casa de banho. Também ela é inquilina de António Teles. "O senhorio paga luz e água. Nós compramos as botijas de gás. Acho um aluguer caro."
Pietro anda na Escola Fonte da Lavra. Sempre agarrado à mãe, só a ideia de poder vir a receber no Natal uma trotinete acende-lhe o sorriso. "Só quero viver em paz, com o meu filho e o meu marido e aqui vive-se em paz." O tiroteio de 5 de novembro "foi uma novidade para a gente". "Nunca aqui tinha acontecido qualquer violência." É uma família com um sonho, provavelmente comum a tantas outras famílias imigradas: "Obter a nacionalidade portuguesa, pelo menos para o meu filho; e queríamos ficar a viver em Portugal, pelos menos por uns bons anos."
Não há caminho para casa. E. Prates, em Portugal há 4 anos, vivia paredes-meias com os indianos. Ela, o marido e três filhos de 10, 6 e 2 anos. Paga a António Teles 600 euros mensais por um aluguer. Não assistiu ao assassinato: não saberia reconhecer Gurpreet. "São todos iguais, não os conseguia distinguir", acrescenta, no que será o único comentário xenófobo ouvido nestas ruas. E. Prates não trabalha. "Tenho de ficar com os meus filhos. Sai mais barato estar com eles em casa de que pagar uma escola." Um difícil acesso ao ensino pré-escolar é a queixa maior das famílias brasileiras com quem falámos. "Não há creches, e os jardins-escola estão lotados."
No Estrela do Sado, um café e restaurante com rodízio de peixe, encontrámos a romena Rodica Bodiano. Trabalha na cozinha do estabelecimento. Está em Portugal há 18 anos -- tem dois filhos portugueses. E declara: "Gosto muito desta terra."
A freguesia que recebeu Rodica em 2005 pouco tem a ver com a de hoje. "A população imigrante tem crescido. Há muitas casas ocupadas por estrangeiros, trabalhadores, mas também estudantes dos PALOP."
Nos últimos dois anos foram registadas 25 nacionalidades na freguesia. Os brasileiros lideram, com cerca de 300 habitantes. Depois, há indianos (30 a 40), romenos, angolanos, ucranianos, bielorrussos, argelinos, argentinos, bangladeshianos, búlgaros e cabo-verdianos. E uma família chinesa. Principais ocupações: agricultor, barbeiro, cozinheiro, serralheiro, servente, psicólogo, tatuador.
No Frutas & Legumes, minimercado da terra, não há vestígios dessa Babel. Nem especiarias orientais, quiabo, couve mineira. "Os imigrantes vão aos grandes supermercados. Aqui, só velhotas portuguesas", responde D. Célia, levando a que a anciã presente na loja erga o sobrolho.
A imigração tem ajudado a renovar uma das freguesias mais envelhecidas do concelho. A "tranquilidade" atrai imigrantes e descendentes de antigos proprietários. "Havia muitas casas devolutas e abandonadas que, nos últimos 3-4 anos, foram requalificadas e restauradas, com o regresso à freguesia de pessoas que aqui nasceram e cresceram."
Veem-se pequenas moradias geminadas pintadas de fresco. Nas portas, os sinos, laços, grinaldas natalícias. Presépios a céu aberto em alguns pequenos jardins. E laranjeiras. Em Praia do Sado, o aroma cítrico confunde-se com o odor proveniente da Portucel. "Nesta terra, se há terreno, por mais pequeno que seja, há laranjeiras", sentencia Liberta Silva. Tem 75 anos. Mora "há 30 e tal "na rua em que mataram" Gurpreet. E onde cinco crianças brasileiras jogam à bola. "Gosto muito destes miúdos." Como apreciava as famílias indianas "no tempo em que não vinham só homens", recordando como "as senhoras traziam uns vestidos muito bonitos". As diferenças não a assustam. Na rua, conta, vivem viúvas e imigrantes. "Só o António Teles tem quatro casas", diz.
António Oliveira Teles e Maria de Jesus, nascidos em Coruche há 79 anos, vivem na Rua Engenheiro Ribeiro da Silva desde finais dos Anos 70, era Praias do Sado então uma terra de salinas. A casa do casal, das poucas da rua com dois pisos, foi construída "pouco a pouco". Os primeiros anos foram vividos no número 20 da tragédia de novembro. "Fomos ali muito felizes; nasceu ali o meu primeiro filho", diz Maria de Jesus. A filha, juíza, já nasceu na nova moradia. Chegaram operários fabris. Hoje, os locais chamam-lhes ricos. "Ricos? Temos quatro casas, não é muito." Estão todas alugadas a imigrantes. "A vida melhorou com muito trabalho", diz Maria de Jesus, sempre desconfiada. "Para quê tantas perguntas?"
As habitações estão sempre alugadas, a procura é muita. "Não precisamos de anúncios. Não levamos muito dinheiro e ainda pagamos a água e a luz", diz António. Foi assim, de boca em boca, que poucos dias após o assassinato de Gurpreet e da saída dos sobreviventes, chegou a vez das famílias de Elisabete, de Caio e de Lívia.
Contratos? "Quando calha há contratos. É a minha filha que os faz", diz António. Quando fala dos netos, Maria de Jesus sorri finalmente, ao contrário de António, que não se ensaia em mostrar vezes sem conta um imaculado friso de dentes. Elisabete, Caio e Lívia poderiam ser seus netos. Caio, repete, quer ser estrela de futebol. E Elisabete: "Ve-te-ri-ná-ria." Revelado assim, com tamanha certeza.