A "multinacional sofisticada" e o rival que é "mais sanguinário do que organizado"

O paulista Primeiro Comando da Capital divide-se em braços jurídico, financeiro e até religioso, enquanto o carioca Comando Vermelho é desestruturado, dizem os perfis da polícia brasileira sobre as duas organizações, rivais desde 2016 por questões territoriais da Amazónia ao Paraguai.
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Enquanto no Dubai os países da ONU se reúnem numa conferência do clima, na maior floresta tropical do mundo, a Amazónia, realiza-se uma espécie de conferência informal do crime com 22 organizações criminosas de Peru, Colômbia, Venezuela e Brasil, entre as quais, claro, os gigantes Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), a disputarem, além do tráfico de drogas, novos negócios, como contrabando de minérios e madeira e pesca ilegal.

Segundo um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado a 30 de novembro, a taxa de mortes violentas na Amazónia Legal, área formada por nove estados brasileiros, é hoje 45% maior do que a média nacional em virtude da guerra entre PCC e CV iniciada no local em 2016, com rebeliões e massacres em prisões com centenas de mortes. "Sobre o rompimento, não há, além de investigações policiais, uma certeza do motivo, porque são empresas à margem da lei. Aqui, se algo não é cumprido, parte-se logo para o homicídio", diz Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing, ao DN.

Mas até àquele ano, PCC, fundado em São Paulo, em 1993, e CV, criado no Rio de Janeiro, em 1979, conviviam harmonicamente, com o Estado como principal inimigo de ambos. Hoje, o PCC, cuja organização sofisticada é comparada por especialistas às das grandes multinacionais, com departamentos financeiro, jurídico, de recrutamento, de relações institucionais e até de aconselhamento religioso, e uma hierarquia com líderes, dirigentes, soldados e associados, está em quase todos os estados do Brasil. O CV, descrito pelas mesmas fontes como "mais sanguinário do que organizado", está espalhado por 13 estados.

"Como outras organizações mafiosas, PCC e CV funcionam como empresas cada vez mais multinacionais e, numa economia globalizada e digital, é natural que recrutem pessoas noutros países, como qualquer multinacional", continua Crespo. "Ambos têm negócios milionários, difíceis de quantificar porque a maioria não são formais. Digo a maioria porque o PCC tem empresas legítimas, lojas, casas, camiões, aviões", conclui o académico.

No complicado xadrez do crime brasileiro, PCC e CV disputam poder em 11 estados e no Distrito Federal. Os paulistas, entretanto, operam sem a presença do CV em 13 estados e os cariocas sem a concor- rência do PCC em dois. Mas em quase todos eles ambos enfrentam inimigos locais, como a Família Terror, no Amapá, Bonde do Maluco, na Bahia, Família Monstro, em Goiás, ou os Amigos dos Amigos (ADA), no Rio, num total de 53 organizações secundárias.

Por sofrer essa concorrência no próprio Rio, o CV, ao contrário do PCC, monopolizador em São Paulo, perde o foco empresarial. "Eles preferem ficar se matando, no lugar de se unirem e lutar contra o Governo, porque a nossa guerra é contra o Governo, entendeu?", disse Fantasma, dirigente do PCC, numa escuta telefónica apanhada pela Polícia Civil do Rio, obtida pela edição brasileira do El País. Mesmo a cumprir pena de 20 anos, Fantasma conduz a área de recrutamento da organização.
No recrutamento de soldados e associados, o PCC tem avançado até no Rio, através dos seus aliados locais, Terceiro Comando Puro, por, ao contrário do CV, oferecer assistência jurídica, TV e comida de qualidade nas prisões e, segundo reportagem do site Ponte, serviço médico e funerário aos novos membros.

O PCC tem até braço político. "Em São Paulo eles já ousaram lançar um candidato: não prosperou, mas hoje são os candidatos que procuram o apoio do PCC", disse o desembargador Walter Maierovitch, estudioso das organizações criminosas, à BBC Brasil.

Fundado há 30 anos, como resposta da população carcerária ao massacre de Carandiru - ação policial que resultou no massacre de 111 detidos -, o PCC estará hoje no top-500 das empresas mais lucrativas do Brasil, segundo especialistas no grupo. O líder histórico da organização é Marcos Camacho, conhecido como Marcola, que chegou ao poder em 2002, após matar Cesinha e Geleião, os anteriores chefes, que por sua vez haviam estado por trás do espancamento até à morte de Sombra, o líder original.

Terá partido de Marcola, a cumprir pena de 342 anos em prisão de segurança máxima, a ordem para os aliados Nado e Cabelo Duro matarem Gegé do Mangue, o líder do PCC fora da prisão, num crime com recurso a helicóptero e rajadas de artilharia pesada em área rural do Ceará, em 2019. Segundo a polícia, Gegé estaria a faturar por fora, através da ligação a Fuminho, traficante exterior ao PCC que operava a partir do Paraguai.

Ainda no Paraguai, o traficante Jorge Rafaat foi morto dois anos antes pelo PCC e cerca de 100 mercenários, que usaram armamento antiaéreo e metralhadoras de uso exclusivo das Forças Armadas do Brasil na operação. Rafaat, contam as autoridades, comandava o principal corredor de transporte de droga na América do Sul desde a prisão, em 2002, de Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, líder histórico do CV, grupo fundado, tal como o PCC, para exigir melhores condições na cadeia.

Beira-Mar, que em 2002 matou Uê, o líder da ADA, dentro da prisão, para cimentar o poder do CV no Rio, formou-se, entretanto, em Teologia, em 2019, durante cumprimento de pena de 309 anos e garante ter abandonado o mundo do crime. Menos hierárquica do que o PCC, a organização criminosa carioca não tem um líder declarado desde Beira-Mar, optando por "donos de morro", como Johnny Bravo, na favela da Rocinha, ou Pezão, no Complexo do Alemão. Depois dos "donos do morro" existem os "frentes", os "gerentes", os "soldados" e os "vapores".

Segundo a Universidade Federal Fluminense, o CV domina 24,2% dos bairros do Rio, contra 8,1 sob o comando do Puro (aliado do PCC) e 1,9 do ADA. As milícias, entretanto, controlam 25,5% dessas áreas. Criadas nos Anos 90 por ex-polícias e ex-militares para, supostamente, combater os traficantes, hoje a maior dessas milícias, a Família Braga, mantém aliança com o CV no comércio de drogas.

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