Série 'Adolescência'. “A masculinidade mata os homens”
A violência de género, a misoginia e o bullying são tão antigos e ubíquos como a Humanidade. A minissérie britânica Adolescência, estreada em todo o mundo na plataforma Netflix a 13 de março, é a sequela temática de uma longa tradição ficcional, do cinema e da música à literatura, sobre os medos, ansiedades e fenómenos de exclusão típicos da passagem da infância à idade adulta. Só nos últimos anos, e apenas no universo televisivo, 13 Reasons Why, Sex Education (ambas também séries da Netflix), Defending Jacob (Apple+), We Are Who We Are (HBO) ou, sobretudo, Normal People (Amazon Prime Video), esta adaptada do romance de Sally Rooney, são exemplos mais do que competentes de uma abordagem madura aos abismos e ambivalências da vida durante a adolescência num período histórico onde, graças à Internet, aos smartphones, às redes sociais e ao ar do tempo social e cultural, nunca tantos estiveram tão ligados com tanta agressividade. A diferença reside no facto de Adolescência conseguir tomar, com grande inteligência formal e brilhantismo dramático, o pulso de um fenómeno do universo digital dos teenagers com repercussões potencialmente muito violentas no seu mundo real: os incel e a manosfera.
A nomenclatura, e os comportamentos a que ela se refere, têm mais de uma década, e designam o “celibato involuntário” do conjunto de rapazes que se considera excluído do desejo da larga maioria das raparigas, contra-atacando no mundo online com o ataque verbal, o machismo e o ódio sobre pessoas sexualmente ativas (sobretudo mulheres), comportamento que alguns gurus da hipermasculinidade defendem e estimulam. Um deles, o britânico de origem norte-americana Andrew Tate, explicitamente citado em Adolescência, é um ex-kickboxer transformado em influencer, suspeito e acusado de violação e de tráfico humano, com dez milhões de seguidores no Twitter - foi a terceira pessoa alvo de maior número de buscas no Google em 2023, de acordo com a sua página na Wikipédia -, conhecido pelas opiniões controversas sobre relacionamentos amorosos e sexuais. De acordo com Tate e outras figuras públicas de ideologia semelhante, a vida entre homens e mulheres - sobretudo numa idade crucial para a formação de identidade, entre os 12 e os 16 anos - rege-se por uma equação supostamente originária nas ciências económicas, a regra 80/20, segundo a qual 80% das mulheres sentir-se-iam atraídas por apenas 20% dos homens, aqueles que elas considerariam bonitos e de corpo musculado. Todos os outros, segundo a tese, estarão votados à invisibilidade e ao esquecimento: os incel (na realidade como na série, os membros masculinos da comunidade são etiquetados, por elas e pelos seus pares, através de bullying verbal e emojis). Nesta atmosfera dominada por ideais de masculinidade tóxica, onde as mulheres são, desde tenra idade, frias, interesseiras e calculistas, a única forma de os homens/rapazes ripostarem seria através da agressão, real ou virtual.
Sobretudo no mundo anglo-saxónico, Tate e outras figuras públicas com mensagens similares têm conquistado influência muito significativa junto de adolescentes do sexo masculino, e há pelo menos dois massacres associados à referida mentalidade: o de Isla Vista, na Califórnia, EUA, em maio de 2014, perpetrado pelo norte-americano de 22 anos Elliot Rodger, que nessa data matou seis pessoas e feriu 14, suicidando-se de seguida - havia passado os meses anteriores a escrever um manifesto de 140 páginas onde falava da rejeição feminina, manifestando a sua fúria por ainda ser virgem aos 22 anos; ou o atropelamento em massa no Canadá levado a cabo por Alek Minassiam, de 25, que feriu 15 pessoas e provocou a morte de outras 11. Ambos se auto proclamaram “revoltados incel”.
Do outro lado do espetro, o macho energético. Viril. Protótipo da masculinidade, rodeado de sucesso, mulheres, dinheiro, assumido porta-voz de uma retórica extremista a roçar o essencialismo biológico e racial, com recurso a poderosos difusores - o TikTok, por exemplo, tem mais de 1,9 mil milhões de utilizadores no mundo inteiro - para recrutamento de um exército de seguidores fiéis, que vampirizam, e de adolescentes solitários, naturalmente insociáveis. Ávidos de encontrar na internet uma comunidade. Prontos a ser radicalizados, a esculpir a martelo os próprios maxilares, na ânsia de “raça” e simetria. Disponíveis para desistir, pondo fim à vida ou, no apelo insidioso da cultura incel, a matar o inimigo supremo: as mulheres.
Como saem uns e outros deste beco impossível em que se encurralaram? Os fracos, feios, desistentes, solitários sem esperança. Os machos energéticos, viris. Todos violentos, todos misóginos. Todos, em simultâneo, carrascos e vítimas produzidos por uma construção social?
“(A masculinidade) que assumem passa pela repressão de algumas das suas emoções. Não estão bem consigo mesmos. É um mecanismo de defesa, mediante um paradigma imposto pela sociedade. Não é por acaso que muitos deles apresentam quadros ansiosos e depressivos.”
Júlio Machado Vaz, psiquiatra
“Tudo isto é muito prejudicial para os homens. Tudo isto tem a ver com a exposição e o sucesso nas redes sociais. Mas nem tudo tem a ver com as redes sociais. A masculinidade tóxica põe os miúdos a comportarem-se de acordo com um modelo de masculinidade que acarreta graves riscos em termos de saúde mental”, diz ao DN Júlio Machado Vaz. “O papel que assumem passa pela repressão de algumas das suas próprias emoções. Aquela gente não está bem naquele papel. Não está bem consigo mesmo”, explica o psiquiatra. Trata-se “de um mecanismo de defesa, mediante um paradigma, um estereótipo imposto pela sociedade”, acrescenta, para concluir: “Não é por acaso que muitos deles apresentam quadros ansiosos e depressivos”. Ao longo do percurso profissional encontrou pedidos de ajuda de homens que queriam sair desse lugar. O Lugar onde tem de ser-se homem’. “Aqueles que não se identificam com este tipo de imagem, passam uma vida a fugir. Alinham no insulto porque é suposto, porque têm de manter a imagem viril que deles se espera”, reforça Machado Vaz. Ameaça à virilidade. “Reagem violentamente a tudo o que ponha em causa o conceito clássico de masculinidade”. Construído por oposição. Ao feminino. Ao homossexual. “Repare-se: na violação, não é o prazer sexual o principal objetivo. É humilhação. Violar é mostrar quem manda, através do sexo. Em contrapartida, os homens com masculinidade subordinada são muitas vezes agredidos fisicamente. É importante mostrar que se é ‘um homem a sério’”, diz Machado Vaz, tomando como exemplo o crime de Loures, a violação de uma jovem de 16 anos por três menores, filmada e exibida na Internet pelos perpetradores. “Esse caso revela que três criminosos sentiram necessidade de recorrer ao maior mecanismo de reforço - a visibilidade”. Influencers reconhecidos pelos seguidores, Machado Vaz considera que aqueles não resistiram a mostrar a sua façanha, apostando na outra face da moeda - o voyeurismo. “Há cada vez mais crimes sexuais praticados por menores, e isso deve fazer-nos pensar e agir”, alerta o psiquiatra. De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, a delinquência juvenil mantém a tendência crescente desde 2021, registando uma subida de 12,5% desde então. Na análise da criminalidade nestes escalões etários, mantém-se também a predominância dos casos ligados à criminalidade sexual, nomeadamente o abuso sexual de crianças, cometido por ofensores menores, com idades compreendidas entre os 12 e os 16 anos.
“Na violação, não é o prazer sexual o principal objetivo. É a humilhação. Violar é mostrar quem manda, através do sexo. Em contrapartida, os homens com masculinidade subordinada são muitas vezes agredidos fisicamente.”
Júlio Machado Vaz, psiquiatra
“As raparigas não se apaixonam pelos bons rapazes. No meu tempo havia esta frase”, diz Júlio Machado Vaz. “Hoje como sempre”, poucas atitudes colocam mais em causa a virilidade e a masculinidade tóxica do que o riso. “Os homens não suportam que uma mulher se ria deles. Ou porque se sentem ameaçados, ou, horror dos horrores, porque podem estar a ser comparados com outros homens. A humilhação perante os outros homens é o mais insuportável”.
Os feminismos e o politicamente correto
Em novembro de 2022, o jornal britânico The Guardian publicou o depoimento de um “incel”, que confessava nunca ter tido uma conversa adequada com uma mulher adulta para além da mãe. “Como se sente com a ideia de falar com uma senhora?” perguntaram-lhe. “Acho que pode haver um pouco de preocupação com a segurança no sentido de falsas acusações de violação. Pelo que li na internet, é inseguro até estar no mesmo ambiente que uma mulher sem uma terceira pessoa”, respondeu. Referiu ainda que ao abordar uma mulher, ela pode começar “a bater-se para o acusar falsamente de abuso doméstico ou agressão”.
Não faltou quem, de imediato, ligasse estes receios ao movimento #MeToo, e encontrasse justificação para os medos verbalizados. De facto, a oposição ao feminismo e aos direitos das mulheres é comum nestes movimentos, e há quem encontre explicação para o regresso em força do macho misógino em certos movimentos feministas. “Muitos feminismos integraram os homens na luta, e essas são as correntes maioritárias”, começa por esclarecer Júlio Machado Vaz. Porém, o psiquiatra reconhece “correntes diversas”. “Há quem veja os homens, e até as mulheres heterossexuais, como inimigos”. Mais. Recorre à sua experiência clínica: “As questões do politicamente correto e de género são sentidas por muitos homens, mais do que por mulheres, como um ataque à sua liberdade”. Vistas como um ataque à ordem estabelecida.. “Basta ver como a Igreja Católica utiliza até a exaustão o seu conceito de ideologia de género para alertar para destruição da Família e da Ordem Natural”. Para o médico, “a ascensão dos movimentos LGBTQ+, a luta justa pela diversidade, são sentidas pelos homens, muito mais do que pelas raparigas, como ‘ao que isto chegou’. E têm motivado uma reação”. Recorda Trump e como o presidente dos EUA “ tem cavalgado bem essa onda”.
As redes sociais amplificam o problema: “O pêndulo está do outro lado.” Como se combate? “Antes de andar à cata de emojis estranhos, a família e a escola devem apostar na educação”. Para Machado Vaz estas são questões da civilização: “Basta ver o que se está a passar em Portugal com as aulas de cidadania”. Esta semana, Keir Starmer, primeiro-ministro britânico, anunciou na rede social X que Adolescência será transmitida em todas as escolas secundárias do Reino Unido.
Masculinidade: “São poucos, mas muito poderosos”
“Sempre foi assim”, começa por dizer Gabriela Moita. “Tenho no meu consultório homens mais velhos com problemas destes”. Porque “segundo o modelo de masculinidade ser homem é ser homem é ser masculino e ser masculino é ser desejado por muitas mulheres, quantas mais, melhor”, diz a psicóloga clínica. Ora, “o não ser, debilita a sua masculinidade”. Faz dele menos homem.
O que leva um adolescente a matar à facada uma colega? Por que razão o ódio dos incels vai para as mulheres e não para os homens belos e com sucesso? “Porque os outros homens vão vê-lo como pouco másculo”. Assim, o ataque às mulheres “ deveria dirigir-se a esse conceito mortífero, letal, e não em relação a raparigas e mulheres, em nada responsáveis pela existência dessa visão social”. Para Gabriela Moita, “a masculinidade mata os homens, os homens que não consegue corresponder a esse estereótipo, mas também aqueles que o fazem, obrigados a essa construção social”.
Discordando “em absoluto” dos que atribuem culpas “aos feminismos”, Gabriela Moita explica o ódio a estes movimentos: “São movimentos que valorizam as mulheres, logo é bom que sejam atacados, para que se mantenha a ordem que a masculinidade tóxica, em si um pleonasmo, quer preservar a toda a força. Felizmente, a maior parte dos homens não é assim”, diz, defendendo a importância de lembrar “os avanços extraordinários” em matéria de direitos humanos conquistados nos últimos anos. Porém, “tem havido um recuo”. Esperado: “Este recrudescimento faz parte do momento histórico em que se ganham eleições porque se defendem estes estereótipos sociais que levam à destruição e à morte, em vez de defenderem o combate à pobreza e à fome, a educação e a saúde para todas as pessoas.” “Talvez a terceira Web nos ajude a sair disto”, deseja a psicóloga. Porque “sendo poucos, estes homens, esta gente, recorrendo à força e à brutalidade, são muito poderosos”.