A guerra na Ucrânia na abertura das Novas Conferências do Casino

Inspirado pelas Conferências do Casino de 1871, um novo ciclo de conversas em torno de temas de hoje foi iniciado esta 4.ª feira, em Lisboa. Na primeira, Giuliano da Empoli e Bruno Maçães falaram sobre a Rússia, a Ucrânia e os diferentes matizes do conflito.
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"Os promotores da Conferência de 1871 pressentiram que o mundo estava a entrar numa fase desconhecida (...) E hoje acreditamos estar igualmente num desses momentos em que a roda do tempo vai alterar profundamente o funcionamento das coisas." Quem o frisou foi José Sarmento, secretário do Círculo Eça de Queiroz, na abertura das Novas Conferências do Casino, inauguradas na última 4.ª feira, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa.

"Fim da Paz - A Rússia, Último Império Colonial" foi o tema desta sessão inaugural, desenvolvido numa conversa entre Giuliano da Empoli e Bruno Maçães. Iniciativa conjunta do Círculo Eça de Queiroz, Grémio Literário e Centro Nacional de Cultura, estas Conferências, que procuram recuperar o espírito crítico das originais de 1871 em que participaram nomes tão essenciais para a nossa História como Eça de Queiroz, Antero de Quental, Oliveira Martins ou Manuel de Arriaga, procuram interpelar os participantes para a urgência de questões globais como a guerra, o surgimento de uma nova ordem mundial, a União Europeia e o futuro da Democracia.

Com a guerra instalada no continente europeu, Giuliano da Empoli e Bruno Maçães debateram então "O Fim da Paz - A Rússia, Último Império Colonial." Empoli, escritor e ensaísta (é autor de dois livros publicados em Portugal: O Mago do Kremlin e Os Engenheiros do Caos, ambos publicados pela Gradiva), foi também conselheiro político do primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, enquanto Bruno Maçães, secretário de Estado dos Assuntos Europeus de 2013 a 2015, é conselheiro na Flint Global em Londres e é também autor de vários livros, o próximo dos quais - Masters of the Metaverse - será publicado em breve pela Cambridge University Press. O ponto de partida da conversa entre ambos foi justamente o livro de Empoli, O Mago do Kremlin. Publicado antes da invasão da Ucrânia, mas depois das invasões, pela Rússia, da Geórgia, Crimeia e das regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk, o livro apresenta-se como "uma viagem ao coração da loucura humana, à vertigem do exercício da maldade como elixir da salvação." Quanto ao facto de se tratar de um romance (o que é algo inédito no estudo das Relações Internacionais), o autor explica que este género literário lhe permitiu "aproximar-se mais da realidade do que se tivesse ficado preso nos limites da não ficção."

Para Empoli, a invasão da Ucrânia corresponde "a algo muito mais antigo que existe na Rússia e que está para lá da figura de Putin. Tem a ver com a convicção enraizada de que a Democracia é o caos, capaz de fragilizar a Rússia e que o Ocidente rapidamente tiraria vantagem dessa fragilidade." O papel de Putin, que é um homem "sem ideologia ou base teórica significativa", salientou ainda o autor, foi "corporizar uma série de sentimentos que andavam dispersos na sociedade russa, como uma certa nostalgia do regime soviético ou o terror ao que se considera ser o caos." Discordando de Empoli em vários pontos, Bruno Maçães considerou que, na Ucrânia, o que está em jogo não é Putin, mas "um genocídio calculado, uma verdadeira guerra colonial." Isto porque, em sua opinião, "os acontecimentos recentes representam a sobrevivência de uma visão imperialista com 400 anos, segundo a qual a Ucrânia não existe e os ucranianos, enquanto nação, também não. São, quanto muito, uma boa gente rural e rude por oposição às elites intelectuais de Moscovo." Para Bruno Maçães, esta perceção étnica dos acontecimentos determina aquilo que considera ser "a inaudita violência dos ataques russos, em alguns casos superior à das tropas de Hitler no mesmo território." Nestes movimentos longos da História (como lhe chamariam, se ainda vivessem, grandes nomes da historiografia europeia como Fernand Braudel ou Vitorino Magalhães Godinho), que papel joga o indivíduo, ainda que investido de poder no limiar do absolutismo, como Vladimir Putin? Giuliano da Empoli pensa que este personifica o tipo de líder que os russos apreciam: "Embora ele tenha uma companheira há muitos anos, aparece sempre sozinho. Parte da impopularidade de Gorbachev na Rússia tinha a ver com o facto de ele aparecer muitas vezes acompanhado pela mulher, Raisa, o que, em contraste, era muito apreciado no Ocidente, onde acarinhamos o conceito da primeira-dama." No entanto, frisou ainda, "a existência de uma família e de um bom conselheiro podem ser antídotos contra os excessos egocêntricos de personalidades movidas pelo poder."

Estas novas conferências do Casino serão retomadas em junho. A 22 do próximo mês, o tema em análise será a Inteligência Artificial, com as participações de Arlindo Oliveira, especialista em temas relacionados com o mundo digital, Massimo Sterpi, advogado dedicado aos direitos de autor nestas novas plataformas e a artista plástica Joana Vasconcelos. Seguir-se-ão (a 19 de julho) "O futuro da União Europeia", com o antigo comissário europeu, o francês Pascal Lamy; "O futuro do sistema democrático" (com Martin Wolf, cronista do Finantial Times, que virá também lançar a edição portuguesa do seu livro A Crise do Capitalismo Democrático. Seguir-se-ão ainda as conferências (por agendar) dedicadas a temas como a transição energética, os assuntos de Defesa ou a crise de confiança na informação. Só se espera, brincou José Sarmento na apresentação da iniciativa, que, ao contrário do que aconteceu em 1871, estas novas conferências do Casino cheguem ao seu termo e não se vejam interrompidas por intervenção policial.

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