A bósnia que veio vestir Portugal
Lidija Kolovrat entrou no país por Bragança. Foi em 1990. Vinha com a filha recém-nascida no banco de trás do carro. Ela e o marido vieram a conduzir desde a Holanda, terra natal dele. Os dois conheceram-se em Zagreb quando ele, músico, foi tocar à capital croata. Foi lá que Lidija estudou Cinema e Moda, já longe de Zenica, cidade onde nasceu e cresceu, na atual Bósnia e Herzegovina, então Jugoslávia, cerca de 80 quilómetros a norte de Sarajevo.
Foi há 26 anos que aquela mulher bósnia entrou pelo Norte de Portugal com a família e só parou quando se sentiu em casa. Por acaso, tal aconteceu numa aldeia do Ribatejo, a Louriceira. "Portugal era muito rural. Acho que era tudo biológico, era um sonho. Se chegas da Holanda, tudo tem sabor. Aquelas pessoas [da aldeia] não eram provincianas, não estavam preocupadas por estarmos ali, estavam naturais. Tenho uma memória delas muito gira. Ficámos lá cinco anos." Fez amigas, idosas sobretudo. Mesmo que ao início Lidija não falasse português.
Durante esse tempo, a bósnia ia regularmente a Lisboa, a Sintra ou ao Porto. Foi construindo o seu nome no país. "Fazia exposições, trabalhava com galerias e ateliês." Lembra que um telefonema do Ribatejo para Lisboa era "caríssimo". "E as pessoas gostavam muito de se fazer importantes. Agora já não fazem, e falam bem." Ri-se.
Rua D. Pedro V, Príncipe Real. Entram dois turistas e perguntam o preço de um par de sapatos. Tara, a filha de Lidija, a tal que era recém-nascida quando entrou no país, acorre e responde-lhes. É hoje uma jovem mulher e tem um irmão de 20 anos. Estamos no espaço Kolovrat 79: no andar de baixo, loja, e em cima, no sótão, o ateliê onde são feitas as roupas, os sapatos, e os vários acessórios da marca Lidija Kolovrat.
O primeiro ateliê e loja de Lidija em Lisboa não ficava longe dali. Era na Rua do Salitre. Mas esse tempo, sim, vai longe. Hoje, Kolovrat é um nome que poucos no mundo do design de moda não conhecerão. Fora de passerelles como a da ModaLisboa, a bósnia criou muitos figurinos para bailado - com coreógrafos como Olga Roriz, Clara Andermatt, ou Benvindo da Fonseca - e para cinema. "Trabalhei agora no último filme de Sérgio Tréfaut. Um filme de extrema pobreza: Seara de Vento [a partir do livro homónimo de Manuel da Fonseca]."
Dos portugueses, que há mais de duas décadas vai vestindo, diz que não os vê como especialmente conservadores no que diz respeito ao guarda-roupa. "Quem é insensível é insensível em todos os países. Acho que aqui é mais a questão monetária [que retrai as pessoas]. Hoje ainda mais. Há pessoas que sofrem isso mesmo...", comenta. Não o perguntamos por acaso. As peças de Kolovrat têm algo de arrojado, e como que um sentido de humor apurado, refinado. Tem clientes que sustentem essas peças, garante. Elogia-os, comenta que são "pessoas muito interessantes" e fala da atenção que gosta de dedicar a cada um deles, específica e demoradamente.
"Os turistas estão a construir Lisboa"
Ainda que reconheça que, se tivesse vivido fora de Portugal, "talvez tivesse tido sucesso mais rápido, e mais feedback", Kolovrat não se vê a despedir-se do Tejo. "Gosto cada vez mais de Portugal. Acho que Lisboa é muito bonita. Por mais que viaje, quando volto... Portugal está a renascer, a florescer. Acho que há um lado muito importante na vinda dos turistas. Acho que a autoestima portuguesa cresceu, está alta." Dá a vitória portuguesa no Euro 2016 como exemplo daquilo de que é capaz essa autoestima: "É uma questão de se saber fazer heróis."
Ainda sobre o aumento do turismo na capital de que fez casa, Lidija afirma: "Acho que os turistas estão a construir Lisboa." Satisfeita - e se dúvidas houvesse basta vê-los a entrar na loja -, ainda assim avisa: "Acho que temos de tomar conta de Lisboa para ela não se descaracterizar."
Acerca da escolha de Portugal como sítio para viver, para um pouco, e diz: "Lembro-me de um momento, na escola, em Geografia. Estávamos a falar de Lisboa e eu nunca me esqueci - nós temos memórias parciais. Pensei: bem, como é que seria isso? Imaginar uma cidade. Não é?"
Vai repetindo "não é", em tom de interrogação, no final das frases proferidas no português que foi aprendendo. E só se deu conta das saudades que tinha da sua língua quando voltou à Bósnia, há cerca de cinco anos. "Lá eu digo uma coisa e tudo viaja, como moléculas. É mágico."
Sobre a guerra de que o seu país foi palco anos depois de o deixar, entre 1992 e 1995, levando à morte de 200 mil pessoas, pouco fala. Anui apenas à impressão causada por visitar o país onde nascemos destruído. "Sim, sim. O mundo muda. Tudo isso nos ensina o que é uma guerra, o que é um conflito."
Quando a encontramos, Kolovrat voltara há pouco da Turquia, onde há dez anos algumas das suas peças são fabricadas por artesãos. Mostra aquilo de que fala. Um casaco feito de pele cortada de modo que quase a faz parecer composta por penas. Em Istambul, cidade que não encontrou igual depois do golpe de Estado falhado de 15 de julho, ficou num hotel próximo da Praça Taksim, onde "estavam dois ecrãs com aquela propaganda estúpida", afirma, referindo-se à propaganda do governo. Também os sapatos que usa foram feitos em Marrocos.
Várias peças suas mostram padrões ou estampagens com iconografia portuguesa, da monarquia a Os Lusíadas . Diz não ligar à nacionalidade. "Sinto-me bósnia no sentido de naturalidade. Mas não ligo à nacionalidade. Tenho o passaporte croata, porque na altura tinha o apartamento em Zagreb. Se queria ficar com ele, tinha de aceitar."
Para entender a Bósnia
Pirâmides › Em 2005, aquele a quem chamam o "Indiana Jones da Bósnia" disse descobrir pirâmides no país. Tal foi desmentido pelas autoridades científicas, mas há quem ainda as visite em Visoko.
Guerra › Cerca de 200 mil pessoas morreram, entre 1992 e 1995. "Uma amiga minha disse quando a guerra começou: se a Bósnia tivesse uma constituição artificial não partia com tanta dor."
Humor › "Rimos muito uns dos outros."
Paisagem › "É um país muito bonito, com muitas montanhas, florestas..."
Capital › "Sarajevo tem uma doçura. Acho que o lado humano é o que mais me atrai."