A aviação do futuro passa por um laboratório português
Daqui a alguns anos, os aviões tal como os conhecemos hoje serão uma relíquia do passado. O convencional tubo com asas é um modelo de design com os dias contados, à medida que o setor da Aeronáutica vai explorando novos materiais que revolucionarão o modo de voar, a caminho de uma indústria mais sustentável.
Nesta revolução em curso, há um nome português que se destaca: nos laboratórios do INEGI, Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial, no Porto, Pedro Camanho lidera um projeto de investigação que testa uma nova geração de materiais compósitos não-convencionais fundamentais para esse futuro da aviação. O objetivo principal passa por “tornar mais leves aeronaves, satélites e lançadores espaciais”, uma evolução crucial para a necessária descarbonização de um dos setores de atividade mais poluentes do planeta.
O potencial transformador deste projeto foi reconhecido pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla inglesa), que lhe atribui recentemente uma das suas bolsas principais: o ERC Advanced Grant, no valor de 3,5 milhões de euros.
Pedro Camanho foi, de resto, o único investigador de uma instituição portuguesa a integrar e a merecer o principal reconhecimento científico do organismo que gere os programas da União Europeia em matéria de investigação. Nos próximos cinco anos, o investigador do INEGI e professor associado da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto vai procurar, então, validar uma nova geração de materiais que permitam alavancar a revolução aeronáutica, através da combinação de modelos físicos a várias escalas com programas de Inteligência Artificial.
Os chamados materiais compósitos são formados pela união de outros materiais com o objetivo de se obter um produto de maior qualidade. Neste projeto, explica Pedro Camanho, “os materiais utilizados são materiais poliméricos [plásticos] reforçados por fibras de carbono, que têm um diâmetro dez vezes inferior ao diâmetro médio de um cabelo humano”. “São materiais que têm características específicas, como boa rigidez, boa resistência mecânica, ao mesmo tempo que têm uma massa muito pequena, o que permite reduzir o peso da estrutura sem perder, ou até aumentando, a sua resistência”, acrescenta.
E reduzir o peso das aeronaves é uma evolução essencial para reduzir o consumo de combustível numa indústria que, com o aumento do número de voos previsto nos próximos anos, verá em 2050 as emissões de dióxido de carbono atingir um valor de cerca de 2000 milhões de toneladas, “o que não é sustentável”, frisa. Por isso, o setor aposta “em descarbonizar” até essa data. E para o conseguir, é “fundamental o desenvolvimento de novos materiais”.
Produzir aviões em metade do tempo
Com uma extensa carreira de investigação - que inclui uma ligação à NASA, onde foi, durante mais de 10 anos, cientista visitante do Centro de Investigação da agência espacial norte-americana -, o trabalho de Pedro Camanho é reconhecido internacionalmente, sobretudo na área dos mecanismos de deformação e fratura de materiais compósitos avançados em diferentes escalas temporais e espaciais. Ou seja, o investigador do INEGI estuda as causas e consequências do desgaste dos materiais para aferir o prazo de validade destes e o seu impacto no comportamento das estruturas.
“Quando os materiais vão ser usados na Indústria Aeroespacial ou Aeronáutica precisamos de ter uma certificação, perceber como estes materiais se vão degradar ao longo do espaço e ao longo do tempo, perceber a forma como eles vão partir um dia”, explica. Um trabalho especialmente sensível numa indústria que transporta vidas humanas uns bons quilómetros acima do nível do solo.
( Pedro Granadeiro / Global Imagens )
Tipicamente, esse trabalho é feito através de ensaios experimentais físicos. Mas Pedro Camanho desenvolve modelos computacionais que mimetizam os materiais e permitem simular digitalmente o comportamento destes perante diferentes eventos, “como o impacto de granizo ou de uma ave, por exemplo, para ver até onde pode ir o desgaste do material sem comprometer a sua eficácia”, ilustra ao DN, recorrendo a um pedaço de asa de uma aeronave exposto no INEGI.
“Uma empresa para poder usar isto num produto comercial tem de fazer um ensaio experimental e levar isto até à rotura. E todo este processo é muito caro, tem custos recorrentes associados ao desenvolvimento do produto que são muito elevados, porque é preciso adquirir o material, fabricar o produto, fazer os ensaios”, explica. Ora, transferindo uma grande parte desses ensaios para o modelo digital, “conseguimos agilizar o processo de desenvolvimento do produto”, diz. “É muito mais rápido e é muito mais barato.”
Esse é precisamente um dos problemas que a indústria enfrenta neste momento: o tempo de desenvolvimento do produto, que é muito elevado. “Para um avião pode ser de nove anos, para um lançador de satélites pode ser até 12 anos”, esclarece o investigador, que com este projeto pretende “reduzir esse tempo para cerca de metade”, recorrendo à simulação digital, “desde a simulação do processo de fabrico do material até à simulação do processo de desgaste da estrutura”.
No projeto liderado por Pedro Camanho, o desenvolvimento do produto é suportado numa plataforma computacional em que vai ser feita a modelação desde a microescala até ao nível estrutural. “Essa otimização multiescala, hoje em dia, não é feita, porque falta este conhecimento de perceber de que forma alterações ao nível da microestrutura afetam um componente estrutural de grandes dimensões, como uma asa ou uma fuselagem.”
Esta ligação entre as escalas irá ser feita com a ajuda de máquinas de última geração, uma delas a adquirir propositadamente para este projeto e que custa cerca de um milhão de euros, 30% do total da bolsa atribuída pela ERC - “é um sistema de raio-X com grande resolução, microtomografia por raio-X computadorizado, que permite fazer uma observação com um grau de resolução muito, muito detalhado.”
Raias voadoras a caminho?
Além da redução do peso das aeronaves, com impacto direto nas emissões de carbono, esta nova geração de materiais compósitos não-convencionais permite também “novas soluções estruturais”, abrindo igualmente portas a uma revolução no design da aviação. Num futuro não muito distante, é provável que os aviões se aproximem mais da imagem de uma raia gigante voadora.
“Nós, neste momento, temos aviões convencionais que, em termos de design, são basicamente um tubo com asas. E essa geometria não é ótima sob o ponto de vista aerodinâmico. Há soluções alternativas, como por exemplo aviões com asas ultralongas, que permitem reduzir o combustível cerca de 10% relativamente às configurações atuais. Depois há outro design ainda mais radical, que é o wing body, um design em que não distinguimos praticamente a asa da fuselagem. E essa configuração pode reduzir até 30% o consumo de combustível, porque aumenta muito o quociente entre a sustentação e o arrasto”, explica o investigador do INEGI, enquanto mostra uma imagem de uma raia no computador, para evidenciar o modelo.
Depois, lembra Pedro Camanho, “o setor aeronáutico vai depender destes materiais para a eletrificação, porque as baterias têm um peso muito elevado e temos de compensar isso reduzindo peso da estrutura” e para a utilização do hidrogénio, pois “os motores que usam hidrogénio como combustível vão ser muito mais pesados e usam subsistemas mais complexos”.
Claro que esta revolução em curso tem os seus desafios, como reconhece o investigador português. Como o facto de esta ser “uma indústria altamente regulada”.
“Um dos principais desafios é desenvolvermos todo o conhecimento e metodologia de certificação que convença as autoridades reguladoras a aceitarem produtos que são desenvolvidos com base em simulação computacional. Nesta altura, as entidades aceitam uma certificação baseada em ensaios físicos e suportada por simulações digitais. Nós queremos inverter isso, para tornar o processo mais rápido e mais barato.”
Outro desafio, acrescenta, é “não condicionar muito o custo de fabrico com a introdução destes novos materiais”. Ou seja, “que as poupanças perspetivadas pela utilização de novos materiais não sejam anuladas pelo aumento dos custos de produção”.
Para isso, há que “automatizar cada vez mais os processos de produção com materiais avançados”. Como Pedro Camanho se propõe a fazer neste projeto, ao longo dos próximos cinco anos, aumentando o seu já vasto contributo para estas indústrias: o professor catedrático da FEUP, e presidente do Laboratório Associado de Energia, Transportes e Aeronáutica (LAETA), foi responsável pelo desenvolvimento de vários modelos computacionais atualmente usados pelas indústrias automóvel e aeronáutica, como o “Modelo Camanho”, integrado na versão mais recente do Digimat, um software de referência para engenheiros de todo o mundo.