"A atividade científica no século XXI deve reforçar e colocar a dimensão ética no centro das suas preocupações"

<em>Relações Ciência-Tecnologia</em> é o tema a debate no Ciclo de Conferências <em>Desafios da Ciência na Sociedade Contemporânea</em>, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A iniciativa conta com Luís Oliveira e Silva, professor catedrático do Departamento de Física do Instituto Superior Técnico, investigador do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear, sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, e decorre hoje via Zoom (18.00 horas).
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Há cerca de três anos, parecia-nos impraticável uma vacina para a covid-19. Hoje é uma realidade, fruto da relação entre ciência e tecnologia. É lícito afirmar que, presentemente, a tecnologia é a principal ferramenta de comunicação do valor da ciência junto da sociedade?
Existe uma perceção generalizada do impacto da tecnologia no nosso dia a dia. No entanto, não é totalmente evidente, para o público em geral, que os avanços tecnológicos se apoiam em descobertas científicas de caráter fundamental. Por exemplo, os computadores ou os telemóveis, em que muitos leitores estão a ler esta notícia, não seriam possíveis sem as equações de Maxwell, que descrevem as propriedades da luz, ou sem a mecânica quântica, com origem no início do século XX. É natural que, em situações de crise, esta ligação seja mais evidenciada. O caso das vacinas mRNA para a covid-19, é particularmente paradigmático: o conhecimento indispensável que lhe está subjacente remonta às descobertas fundamentais do mRNA dos Anos 60 do século XX. Esses pequenos passos permitiram o desenvolvimento das vacinas num curto espaço de tempo, demonstrando a capacidade da comunidade científica de responder a desafios globais. A intensidade da crise e o clima de incerteza que vivemos facilitou a comunicação do valor do conhecimento que conduziu à produção das vacinas em larga escala; da parte dos cientistas também houve uma preocupação acrescida em informar o público. É também natural que a valorização do impacto tecnológico, económico ou social dos avanços científicos, respondendo a questões como "Para que serve?", "Quais as aplicações?", "O que vai curar?", represente um canal importante para ligar o conhecimento científico, desenvolvido nos laboratórios pelos cientistas, com o dia a dia e com as preocupações dos nossos concidadãos.

Quais as principais consequências da forte interligação entre ciência e tecnologia, na forma como a primeira é feita no século XXI e nos seus avanços futuros?
É inevitável que muitos dos avanços científicos do século XXI venham a ser feitos com recurso a tecnologia e infraestruturas de complexidade sempre crescente. Sydney Brenner, biólogo que recebeu o Prémio Nobel da Medicina em 2002, afirmou que "o progresso da ciência depende de novas técnicas, novas descobertas e novas ideias, provavelmente nessa ordem". A primeira consequência desta forte interligação está associada aos recursos em que é necessário investir para sustentar o progresso científico - sem acesso a infraestruturas científicas e a instrumentos avançados, os cientistas, as instituições e os próprios países ficarão cada vez mais longe da fronteira do conhecimento que continuará em permanente expansão. Estudos recentes analisaram a evolução de diversos campos científicos e tecnológicos e mostram que é cada vez mais caro manter o progresso científico e tecnológico. Por exemplo, no caso da tecnologia associada aos computadores, o progresso é hoje assegurado por um número de investigadores 18 vezes maior do que o número necessário no início dos Anos 70 do século XX. A complexidade da tecnologia também cria, per si, desafios importantes. É cada vez mais difícil o seu escrutínio e validação, como se verifica na inteligência artificial; exige equipas com elevados graus de sobre-especialização, como acontece nas experiências com grandes aceleradores de partículas, como o CERN, mas a que, paradoxalmente, correspondem comunidades de dimensão reduzida, dado que o número global de instrumentos de grande escala também é reduzido. Estas problemáticas desafiam algumas das pedras basilares da ciência, como a possibilidade de replicação das experiências e o escrutínio pelos pares. Muitos subdomínios científicos já respondem a estes desafios, a que está associada uma dimensão ética muito importante, mas o século XXI alargará estas questões a muitas outras áreas científicas.

A questão anterior leva-nos a uma outra realidade: na eventualidade de canalizarmos o grosso do financiamento para a ciência, dita aplicada, orientada em resolver as grandes questões da sociedade, poderemos estar a esquecer a ciência fundamental?
Existe um perigo real de esquecermos a ciência fundamental, com consequências imprevisíveis. Há questões societais a que a ciência deve dar resposta - alterações climáticas, energia ou saúde. Estes problemas globais afetam os nossos concidadãos e toda a nossa sociedade; a ciência pode dar resposta a estas verdadeiras missões, e é natural que sejam colocados recursos específicos para financiar os desenvolvimentos científicos que nos podem ajudar a ultrapassar, como comunidade, estas grandes questões da sociedade. No entanto, não devemos esquecer que é também na ciência fundamental que podemos encontrar as respostas a esses desafios. Quem imaginaria que o transístor poderia levar à revolução que hoje vivemos dos computadores, ou que os avanços teóricos do polímata Alan Turing [1912-1954] são fundadores e centrais para a inteligência artificial? O principal princípio que deveria guiar o financiamento, em minha opinião, é a qualidade -pode ser orientado para os grandes problemas societais, mas devem também existir oportunidades para as ideias melhores e mais inovadoras, independentemente da sua eventual aplicabilidade a curto prazo. Tal como na vida e na sociedade, a diversidade é aqui também fundamental e é importante a combinação virtuosa entre curiosidade e missão, entre descoberta e invenção. E, como afirmava o Prémio Nobel da Química George Porter: a dicotomia, a existir, é apenas entre "applied science and not-yet-applied science" [ciência "aplicada e ciência ainda não aplicada"]

Como cientista, quais lhe parecem ser os maiores desafios éticos e morais que se colocam como resultado da interdependência entre ciência e tecnologia?
Os maiores desafios éticos e morais desta interdependência entre ciência e tecnologia encontram-se, naturalmente, nos domínios em que afetam diretamente a vida das pessoas, o equilíbrio do nosso planeta, ou o futuro das nossas sociedades. Por exemplo, nos Anos 40 do século XX, o poder destrutivo dos testes nucleares levou o físico Robert Oppenheimer a citar o texto sagrado hindu Bhagavad-Gita: "Agora tornei-me a Morte, o destruidor de mundos". Ou a afirmar: "Os físicos conheceram o pecado, e este é um conhecimento que eles não podem perder". Hoje, como bem identifica Martin Rees no seu livro mais recente If Science Is to Save Us, estamos também perante grandes desafios éticos e morais associados ao equilíbrio entre alimentação e energia para toda a população mundial e a sustentabilidade do planeta, o impacto positivo da biotecnologia na saúde e na alimentação e as questões éticas e de segurança que lhes estão associadas, ou o impacto benéfico da inteligência artificial, ou as tecnologias da informação e comunicação na economia e na nossa sociedade, apesar das suas vulnerabilidades, que podem ter consequências globais, por exemplo, no funcionamento das nossas democracias. A atividade científica no século XXI deve reforçar e colocar a dimensão ética no centro das suas preocupações. Exige também um contacto mais próximo entre cientistas e decisores políticos.

No fundo, há que contemplar também a existência de confiança entre a sociedade e o trabalho dos cientistas...
A Academia das Ciências dos Estados Unidos publicou há alguns anos o relatório On Being a Scientist em que reforça a importância destas componentes: toda a atividade científica é sustentada pelo pilar da confiança - tem de existir confiança da sociedade no trabalho dos cientistas, na sua qualidade e na sua honestidade; tem de existir confiança entre os membros da comunidade científica, de que todos os cientistas seguem metodologias apropriadas, apresentam os seus resultados devidamente e respeitam os seus colegas. Quando esta confiança é quebrada, são as próprias fundações da ciência e da sua relação com a sociedade que são colocadas em causa. A interdependência entre ciência e tecnologia contempla assim duas dimensões. Por um lado, a complexidade da tecnologia requer práticas que permitam o seu teste, validação e escrutínio, por mais complexa que seja a tecnologia que suporta as descobertas científicas. É importante notar que as tecnologias são também um importante contributo para assegurar esta confiança - as ferramentas de comunicação quase instantânea e outras ferramentas automáticas permitem um escrutínio cada vez mais profundo do trabalho dos cientistas. Por outro lado, a sociedade espera também que as consequências morais e éticas da tecnologia que resulta dos avanços científicos sejam benéficas e em prol do bem comum. O diálogo entre os cientistas, envolvendo também as ciências sociais - capazes de avaliar os eventuais efeitos negativos das suas descobertas e invenções - e os decisores tem um papel central nos equilíbrios que será necessário estabelecer.

Os avanços em diversos campos, por exemplo na saúde e na alimentação, propiciados pela ciência e tecnologia estão a contribuir para mitigar as desigualdades socioeconómicas à escala global?
Os indicadores à escala global, como, por exemplo, a pobreza ou a mortalidade infantil, confirmam um progresso económico e social significativo. Segundo os dados de Our World in Data, a percentagem da população mundial em pobreza extrema diminuiu de 37,81%, em 1990, para 8,44%, em 2019, a mortalidade infantil reduziu de 22,4%, em 1950, para 3,71%, em 2021. Este progresso é impressionante e só possível graças às descobertas científicas dos últimos dois séculos. A esperança e o natural otimismo da ciência permitem-nos sonhar que também os Global Mega Challenges do século XXI identificados por Martin Rees poderão ser ultrapassados com mais ciência. Uma das lições da pandemia é o reforço do otimismo na capacidade da ciência para resolver problemas de elevada complexidade e com impacto social, e gerar tecnologias transformadoras da nossa sociedade. Em regiões remotas do mundo, as tecnologias da informação fortalecem ligações familiares, ligam comunidades, permitem o acesso generalizado a conhecimento, de forma inimaginável há 30 anos. Os avanços da ciência e tecnologia, em múltiplos campos, têm transformado a nossa sociedade e globalmente criado um mundo melhor para vivermos.

A tecnologia e a ciência são aceleradoras do bem-estar das sociedades. Partindo deste pressuposto, Portugal assenta a sua ciência/tecnologia numa estratégia articulada para o desenvolvimento?
A capacidade da ciência e tecnologia contribuírem de forma decisiva para o desenvolvimento económico e social exige, em primeiro lugar, a existência de uma comunidade científica com dimensão crítica. Uma medida desta capacidade é, por exemplo, o número de doutoramentos concluídos por 100 000 habitantes, que evoluiu, em Portugal, de 8,5 (2004) para 22 (2018), ainda longe da média europeia (16,8 em 2004 para 25,4 em 2018), mas em forte aproximação. O esforço dos últimos 40 anos contribuiu decisivamente para o desenvolvimento desta comunidade e para a criação de massa crítica. Este progresso foi acompanhado pelo reforço da perceção do valor da ciência e da tecnologia em toda a nossa sociedade. Este investimento, que começa agora a dar frutos, deve ser reforçado para nos aproximarmos dos países líderes na Europa - em muitas áreas já é evidente a capacidade da comunidade científica para responder às questões que lhes são colocadas pela sociedade ou pelas empresas. São cada vez mais numerosos os exemplos de novas empresas que nascem nas universidades ou nos projetos de investigação. Nos últimos anos foram criados mecanismos, como por exemplo os Laboratórios Colaborativos, que promovem a produção e transferência de conhecimento da ciência para as empresas. As Agendas Mobilizadores do Plano de Recuperação e Resiliência representam outro exemplo da capacidade da ciência para contribuir para o desenvolvimento económico e social do país. Importa é não esquecer que as fundações destas políticas devem continuar a estar alicerçadas numa comunidade científica norteada por padrões de qualidade e exigência cada vez mais elevados, em que descoberta e invenção sejam igualmente valorizadas.

ID da reunião: 923 7402 8924

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