A ajudar também se aprende a ser médico

Estudantes de norte a sul do país utilizam o tempo livre para apoiar os outros e saber como lidar com os doentes. São unânimes: recebem mais do que dão e existe sempre tempo quando há vontade. Esperam não esquecer as queixas que agora ouvem
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Joaquina está à varanda do seu terceiro andar na Infante Santo, em Lisboa. Desculpa-se com o lindo dia de sol, mas na verdade está à espreita para ver quando chegam Marco Fernandes e Rita Silva, estudantes do 6.º ano de Medicina, voluntários do Saúde Porta a Porta. Dá-lhes conta das mazelas, dos remédios e da próxima consulta de dermatologia. Eles medem-lhe a tensão e a glicemia, auscultam-na. Mas do que ela mais gosta é daquele hora de conversa. Não é que foi a uma urgência e o médico mal a viu? "Nem olhou para mim. Nem cara bonita nem feia." Resultado: não comprou os medicamentos.

Marco e Rita, de 23 anos, são dois das centenas de futuros médicos que veem no voluntariado uma componente cívica, mas também uma aprendizagem. "Ajuda-nos, principalmente na relação médico-doente. A dona Joaquina precisa muito de falar e, quando saímos, diz-nos que já se sente melhor. Às vezes, telefona e fica mais tranquila. É bom sentir que fazemos alguma diferença na vida de uma pessoa", diz Rita para Marco, que acrescenta: "A vertente social é uma coisa com a qual não contactamos muito ao longo do curso, damos muita técnica e aqui confrontamo-nos com os problemas das pessoas. Faz-nos sentir um bocadinho mais médicos. E, como ela contou, foi a um médico com o qual não criou nenhuma relação e nem sequer comprou os medicamentos que lhe receitou."

Joaquina Vasconcelos, 80 anos, ex-modista, é natural de Marco de Canavezes, terra que deixou há 51 anos para morar na Estrela. Uma das duas freguesias (a outra é Campo de Ourique) que fazem parte do Saúde Porta a Porta, um projeto da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, da Universidade Nova, que já se autonomizou. Neste ano letivo dão apoio a 44 idosos.

Joaquina vive com o filho, de 53 anos, a quem uma esquizofrenia não tratada lhe complicou, e muito, a vida. A reforma é pequena e a visita dos voluntários é o único apoio que tem. "Gosto deles porque me ajudam nas minhas mazelas, falo-lhes das minhas doenças. E também lhes ligo quando estou mais aflita, para desabafar." No ano passado tinha a visita de duas estudantes, cujos contactos acabou por apagar do telemóvel, "não as ia chatear". Desta vez, promete manter os números do Marco e da Rita.

Marco faz voluntariado pela primeira vez, já Rita começou no 12.º ano em atividades para crianças. "Nessa altura, ajudaram-me mais eles a mim do que eu a eles." E nem o facto de terem exame final do curso em novembro os impediu de se inscreverem no programa.

Recebemos mais do que damos, é uma frase de muitos outros voluntários. Dizem, também, que, apesar de Medicina ser um curso difícil, há sempre tempo para fazer as coisas de que se gosta. "Há muitos estudantes de Medicina a fazer voluntariado, alguns bombeiros, etc. O voluntariado dá-nos outra sensibilidade e esta é, também, uma forma de retribuirmos o que a sociedade nos dá." Assim o entende Filipa Rodrigues, 21 anos, no 3.º ano da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Começou a "retribuir" quando estava no 5.º ano do liceu, mais a sério a partir do 7.º.

"O curso era muito teórico no início e senti necessidade de voltar a contactar com pessoas. É uma forma de contactar com realidades diferentes e isso é importante para um médico. Uma coisa é ver uma pessoa na consulta, outra é ter estado do lado de lá ", explica Filipa, vice-presidente do VO.U, uma associação de voluntariado universitário que nasceu com os estudantes de Medicina do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e se alargou a toda a Universidade do Porto. Inscreveu--se logo no primeiro ano de faculdade , no projeto VO.U Socorrer, onde continua.

É um projeto inicialmente destinado a jovens institucionalizados. Para saberem o que fazer numa situação de emergência, como identificar um enfarte ou um ataque de epilepsia, qual é a posição de segurança num caso de acidente, como ajudar alguém que se engasgou. "Um das situações que me sensibilizaram foi uma jovem grávida. Não imaginava a dificuldade que uma grávida que vive numa instituição tem para vir a uma consulta ao hospital. Não pode vir pelos próprios meios, nem a responsável da instituição se pode responsabilizar por a trazer num carro de serviço. Tem de vir de 112 e o 112 demora muito a atender." A equipa da Filipa alargou, entretanto, o projeto a outros públicos, incluindo universitários.

Pratiksha Panthee começou a fazer voluntariado no 10.º ano. Tinha 15 anos e chegava do Nepal, país de origem, com a família. O pai foi convidado para dar aulas na universidade e imigraram para Braga, onde, volvidos sete anos, ela é a única a manter-se em território português. Tem 21 anos e frequenta o 3.º ano da Escola de Ciências da Saúde, Universidade do Minho.

"Quando estava no colégio entrei no programa Habitat for Humanity, para reconstruir casas de pessoas pobres na Polónia. Entrei para a universidade e inscrevi-me em ações de voluntariado logo que tive oportunidade." A fazer rastreios e a prestar cuidados de saúde básicos em iniciativas locais.

Aquelas são atividades pontuais organizadas pelo Núcleo de Estudantes de Medicina da Universidade do Minho. Aldeia Feliz, uma espécie de Saúde Porta a Porta mas no meio rural e realizada numa semana por ano. É a de que Pratiksha mais gostou. Tanto que espera conseguir um lugar na próxima iniciativa, mas são muitas as inscrições. "São idosos que estão isolados e que ficam muito felizes quando os visitamos. Fazemos rastreios, sensibilizamos para uma alimentação saudável e, no último dia, fazemos um piquenique. Foi uma experiência incrível." Recorda em particular a receção de uma velhinha de Sistelo, aldeia de Arcos de Valdevez. No ano passado a jovem foi portadora dos donativos dos estudantes portugueses para ajudar as vítimas do terramoto no Nepal.

Bárbara Mota atropela-se nas palavras para contar o que tem sido a experiência de voluntariado internacional. Atravessar fronteiras parece ser o seu lema. Fez Erasmus em Génova, Itália, e estagia, agora, na Roménia em pediatria e cirurgia. Tem 25 anos, frequenta o 6. º ano da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Daí que as suas apostas sejam a nível do voluntariado internacional, mais propriamente em Cabo Verde, há dois anos, e em Timor, no ano passado. Isto depois de ter participado em ações de voluntariado no secundário e de ter trabalhado com crianças. Gostou tanto que pensa especializar-se em pediatria.

"O curso de Medicina é exigente, temos de estudar muito, mas nunca é por falta de tempo que não fazemos voluntariado. As pessoas dizem-me que estrago as minhas férias para ir para África, mas não estou a estragar, estou a aproveitar bem. Pode parecer cliché, mas fazer voluntariado em África é uma das razões pelas quais entrei para Medicina." Bárbara explica que é difícil fazer um resumo do que aprendeu. "A experiência clínica que encontrei em Timor num mês suplantou a falta de prática clínica nos seis anos de curso. Por outro lado, descobri o empenho, a coragem, como é trabalhar em equipa, lidar com situações de emergência e sem ter os meios necessários, aprender a lidar com a morte. Aprendi tanto. Não há palavras."

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